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Antes do império já havia o traço crítico

Trajetória do humor gráfico no Brasil teve início com a chegada da família real lusa, em 1808, e contou com a participação de vários estrangeiros

TEXTO Débora Nascimento

01 de Abril de 2016

Jornal O Maribondo foi publicado no Recife em 1822, ano da Independência

Jornal O Maribondo foi publicado no Recife em 1822, ano da Independência

Imagem Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 184 | abril 2016]

Em 1808 –
Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil, publicado em 2008 pela editora Planeta, o escritor e jornalista Laurentino Gomes resgata a sucessão de fatos que culminou na vinda da família real lusa para a colônia. Conta Gomes que, quando o príncipe regente Dom João e sua esquadra aportam em Salvador, em 23 de janeiro de 1808, o panorama do Brasil era, no mínimo, alvoroçado: “De cada três brasileiros, um era escravo. A maioria era analfabeta e pobre – o índice de analfabetismo era estimado em 99% da população. Havia pouca comunicação entre as províncias. Não havia livros nem imprensa, porque, por uma decisão da Coroa Portuguesa no século 18, eram proibidas manufaturas no Brasil, o que incluía a indústria gráfica”.

Dom João, menos por gratidão e mais por necessidade, inicia a transformação do país para que pudesse seguir a governar o império colonial português a partir do Rio de Janeiro. Abre os portos, ordena a construção de escolas, cria o Banco do Brasil e funda a imprensa régia. A história do humor gráfico em traços e solo brasileiros tem início nesse ato administrativo de um regente que só deixara sua pátria por temer a invasão de Napoleão Bonaparte. “Com o início da imprensa régia, começam a ser publicados jornais no país e, neles, vem uma parte de humor gráfico. Como o acesso às letras ainda era pequeno, a ilustração passa a ocupar espaço. E como a família real estava no Brasil, o humor político era muito forte. Muitos cartunistas, todos oriundos de Portugal, chegam para fazer a crítica política da época”, situa o professor Waldomiro Vergueiro, da pós-graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicação e Artes da USP.


Datado de 1831, O Carcundão traz a primeira charge do Brasil, segundo Lailson. Imagem: Reprodução

Por décadas, contudo, a difusão da comunicação era prerrogativa exclusiva do governo. “Qualquer outra publicação era clandestina. É nesse contexto que, em 1822, ano da Independência, surge no Recife um jornal chamado Maribondo. O termo era usado para descrever os nativistas, aqueles que defendiam uma nacionalidade brasileira, enquanto as pessoas que defendiam o regime absolutista português eram apelidadas de corcundas – talvez por viverem conspirando, com a espinha curva”, contextualiza o cartunista, jornalista, chargista e escritor pernambucano Lailson de Holanda Cavalcanti. No frontispício do jornal, o humor gráfico consiste “não necessariamente numa charge”, segundo Lailson, mas já numa representação crítica da realidade: um corcunda aparece sendo picado por marimbondos.

Nove anos depois, o Carcundão, rodado na Tipografia Fidedigna, no centro da capital pernambucana, traz o que ele considera a “primeira charge brasileira”. “O jornal sai como um papel A3 dobrado, mimeografado, com um desenho na capa e outro na contracapa. As páginas externas eram impressas em xilogravura e a parte de texto, em tipografia. Na capa, um homem corcunda é apresentado com uma cabeça de asno, simbolizando a ignorância das elites como sendo um Goya, que é o santo padroeiro dos cartunistas ibero-americanos”, comenta Lailson, referindo-se ao pintor e gravador espanhol Francisco Goya (1746-1828). Na contracapa, o homem asno é soterrado por uma coluna, numa alusão à Sociedade Colunas do Trono, que defendia o absolutismo de Dom Pedro I. Na legenda, a expressão latina non plus ultra, que significa “não mais além”, era empregada recorrentemente na navegação.

“Não é o primeiro desenho de humor produzido no Brasil, mas é a primeira charge brasileira, datada de 1831. Traz elementos alegóricos e cifrados em um contexto logo em seguida à abdicação de Pedro I, quando o conceito de uma república já existia, mesmo que em um movimento por um rei brasileiro”, argumenta. Em 1832, é a vez d’O Carapuceiro, obra do frei Miguel do Sacramento Lopes Gama, circular pelo Recife. Durante 15 anos, por vezes com tiragem esparsa, a publicação atiçou a vida cultural e a crônica social e política de Pernambuco. “O Carapuceiro não trazia ilustração a não ser no frontispício. Tinha uma pior resolução de desenho se comparado ao Carcundão, que era muito provavelmente obra de algum frade habilidoso, mas era um jornal sempre crítico”, acrescenta o caricaturista e chargista pernambucano.


O cartunista italiano Angelo Agostini impulsionou a crítica em
várias publicações. Imagem: Reprodução

Com a coroação do imperador Pedro II, irrompe um período que o professor Waldomiro Vergueiro descreve como o “grande desabrochar” do humor gráfico. “A caricatura e, principalmente, a história em quadrinhos florescem durante o Segundo Reinado. Dom João VI havia criado também a censura régia, mas Dom Pedro II era mais liberal e, embora tivesse o poder de censurar eventualmente, e de fato tenha havido um ou outro caso de caricaturista que sofreu represália, o humor gráfico era praticado com bastante liberdade no país”, aponta Vergueiro.

ANGELO AGOSTINI
É no Segundo Reinado que sobressai a figura do caricaturista, desenhista, ilustrador e pintor italiano Angelo Agostini (1843-1910). Ao se mudar para o Brasil, funda, em 1864, o primeiro jornal ilustrado de São Paulo, o Diabo Coxo. “Agostini foi o grande nome do humor gráfico no Brasil no século XIX. Ele cria vários jornais satíricos e passa a explorar muito esse aspecto da crítica política, mas também envolvendo a crítica social. Ao longo dos anos, por exemplo, o trabalho dele foi se destacando por ser favorável à abolição da escravidão e à proclamação da república”, explica o professor da USP. Em 1866, um outro periódico, O Cabrião, leva a assinatura do italiano e se torna o primeiro jornal a sofrer um processo judicial no país.

Em concomitância, no Rio de Janeiro é criada a Semana Illustrada, que, concebida e gerida pelo alemão Heinrich Fleiuss, circula de 1860 até 1876. “Nela circulou o primeiro personagem fixo da charge brasileira, o Dr. Semana, criação do próprio Fleiuss, que com ele buscava satirizar o cotidiano político da então capital do Império. Com essa publicação, o humor gráfico passou a participar da realidade política e social brasileira como antes nunca havia feito”, sintetiza o professor Waldomiro Vergueiro. Lailson de Holanda Cavalcanti cita dois jornais pernambucanos da mesma época – Diabo a Quatro e América Ilustrada – como importantes nessa consolidação do humor gráfico na rotina do brasileiro.


Criado em 1969, logo depois do AI-5, O Pasquim revolucionou o contexto da imprensa nacional e incentivou a resistência à ditadura. Imagem: Millôr Fernandes/Reprodução

A queda da monarquia acontece com perda de liberdade para os humoristas. “Não há liberdade de imprensa alguma. A República, quando nasce, é militar. Deodoro da Fonseca governa por um tempo muito breve, Floriano assume e governa praticamente em estado de sítio. Quase não existem caricaturas dele, por exemplo. Quem não concordava com o positivismo era preso, execrado e retirado do posto de trabalho. A imprensa opinativa cai”, rememora Lailson. “Nesse primeiro momento, há uma amainada na crítica política e vários desenhistas da época apostam num humor de cunho social”, acrescenta Vergueiro. É a geração dos cartuns de costumes de J. Carlos (1884-1950) e Calixto Cordeiro, o K-Lixto (1877-1957). Nesse ínterim, ocorre a ascensão ao poder de Getúlio Vargas (1882-1954), documentada e saudada no momento da Revolução de 1930, mas de escassos registros no período ditatorial do Estado Novo.

O PASQUIM
É a erupção do maior conflito armado na Europa que deflagra uma nova fase no humor gráfico brasileiro. “Com a Segunda Guerra Mundial, a charge política é liberada e volta muito forte”, recorda Lailson de Holanda Cavalcanti. Sua maior prevalência e ressonância, entretanto, dá-se durante os tenebrosos 21 anos do regime militar. “É na ditadura que se vê o viés político mais forte do humor gráfico brasileiro. O Pasquim é o grande jornal desse humor político. Henfil, Ziraldo, Fortuna e Jaguar passam a trabalhar com as minúcias e a sutileza da crítica na síntese e na potência alegórica da imagem. É muito difícil o governante fazer o cerceamento do humor gráfico. O que não se podia falar no editorial, por exemplo, falava-se através de um desenho, da charge. Na época da ditadura, essa forma de comunicação era emblemática”, condensa o professor da USP Waldomiro Vergueiro.
Criado em 1969 por Jaguar, O Pasquim teve êxito imediato. “Ainda escaldado pela meteórica trajetória do Pif-Paf, do Millôr (oito números antes de ser inviabilizado pela ditadura), achava que 5 mil (exemplares) era mais do que suficiente. Resolveram lançar 14 mil. A edição esgotou em dois dias. Rodaram mais 14.000 exemplares”, conta Jaguar, em texto de apresentação no primeiro volume da antologia, que compreende os anos de 1969 e 1971. “Um grupo de jornalistas e cartunistas se reuniu em pleno AI-5 para falar mal do governo. Só tem uma explicação: privação coletiva dos sentidos”, adiciona o mesmo Jaguar, dessa vez em um cartum publicado na mesma antologia.

O Pasquim durou até 1991. Foi em suas páginas, e graças a essa “privação coletiva dos sentidos”, que a resistência à ditadura ganhou força e eco. Não somente isso: em cada número, problematizava-se a própria nação brasileira. Bem ou mal, em tom leve ou pesado, mas sempre com ironia, perspicácia e sagacidade, era o Brasil que se via ali – um país que, nas brechas de uma repressão violenta, ainda achava a estranha mania de ter fé na vida e no humor. Talvez esteja no humor, e na sua capacidade de propiciar reflexão, uma das chaves de compreensão, e salvação, neste confuso e conturbado momento sociopolítico do país. 

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente.

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