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Humor gráfico em questão

Polêmicas em torno de charges, como as do semanário francês Charlie Hebdo, reacendem discussão acerca do papel do gênero como propagador de ideologias

TEXTO Débora Nascimento

01 de Abril de 2016

Charge sobre o tema viralizou nas redes sociais

Charge sobre o tema viralizou nas redes sociais

Imagem Laerte/Reprodução

“Você quer fazer um serviço realmente importante à humanidade? Conte piadas mais engraçadas”. A frase, dita por um marciano a Sandy Bates, personagem de Woody Allen na comédia Memórias, de 1980, continua bastante atual e evidencia o quão relevante é o riso para os habitantes da Terra. O humor funciona tanto como forma de diversão e válvula de escape à realidade quanto como meio para enxergar criticamente o mundo. Em toda a sua história, o humor nunca encontrou, como agora, tantas formas e canais para ser expressado, usufruído e… criticado. Como disse Laerte, que assina a charge de abertura desta matéria, antigamente “veados e pretos” não tinham como e onde se queixar, “mas isso não significa que não se sentissem humilhados”. A chargista referiu-se à fala do comediante Renato Aragão em entrevista à Playboy, em janeiro do ano passado: “Naquela época, essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais não se ofendiam. A nossa intenção não era ofender ninguém. Hoje, todos ganharam a sua área, a sua praia, e a gente tem que respeitar muito isso”.

São variados os espaços de reação para as vítimas do humor, inúmeras as discussões acerca dos limites da comicidade, do que pode ser considerado humorístico. O debate em torno do “politicamente incorreto” nunca esteve tão em evidência. O II Salão Internacional de Humor Gráfico, que acontece entre os dias 3 de abril e 1º de maio, na Torre Malakoff, no Bairro do Recife, reunirá importantes nomes nacionais e internacionais como Cau Gomez, Amorim, Duke, Marilena Nardi e Angel Boligán, para discutir a relação entre cartum e direitos humanos. O realizador do evento, o cartunista Samuca Andrade, afirma que é preciso repensar conceitos e refletir sobre o assunto. “Vivemos em um período em que o ódio às diferenças culturais e de gênero vem sendo manifestado física e verbalmente nas formas de discriminação étnica, homofobia, violência contra a mulher, intolerância religiosa, exploração da criança e do adolescente, xenofobia, entre tantas outras atitudes que ferem os princípios dos Direitos Humanos”, argumenta.


Charges referentes a Aylan Kurdi publicadas no Charlie Hebdo geraram polêmica.
Imagem: Reprodução

O evento terá como ponto de partida as polêmicas recentes envolvendo o humor gráfico, a exemplo das várias charges ao redor do mundo que retrataram Aylan Kurdi, o menino sírio que morreu afogado no mar da Turquia, cuja imagem de seu corpo inerte, de bruços, sensibilizou a comunidade internacional para a questão urgente dos refugiados na Europa. Dentre os cartuns mais criticados, estavam os dos franceses Emmanuel Chaunu e Laurent “Riss” Sourisseau. O primeiro postou em sua página no Facebook o desenho do garoto com uma mochila nas costas e sob a inscrição “Volta às aulas”. O chargista recebeu inúmeras reclamações e até ameaças de morte. Diante da repercussão negativa, teve que se explicar: “Este não é um desenho humorístico. Quis apenas dizer: ‘Esta criança nunca irá para a escola’”.

As que mais provocaram controvérsias foram as publicadas pelo Charlie Hebdo, em setembro do ano passado e em janeiro deste ano, num total de quatro charges. E, então, o mundo se viu diante de uma difícil situação, ter que criticar o pasquim, vítima da maior represália ao humor, o assassinato de 12 pessoas, dentre elas cinco cartunistas, em 7 de janeiro de 2015, como vingança às charges irônicas ao profeta do islamismo, Maomé.


Primeira edição do Charlie Hebdo: "Não existe censura na França". Imagem: Reprodução

Na ocasião da chacina, já havia um início de celeuma em torno do perfil do semanário, após vir à tona o resgate de suas antigas capas. Muitos que não conheciam o Charlie Hebdo ficaram chocados com diversas charges, como a que satiriza a Santíssima Trindade da Igreja Católica: o Pai, o Filho e o Espírito Santo foram retratados numa orgia sexual. Embora considere o estilo do Charlie Hebdo muitas vezes “excessivo”, o cartunista carioca Carlos Amorim defende que “era direito deles decidirem a linha editorial a ser tomada”, e continua: “Acompanhei muitas discussões posteriores e a maioria se perguntava se o humor deveria ter limites. Pouquíssimos se perguntaram se as pessoas em nome da religião deveriam ter limites”.

GAROTO SÍRIO
Até então, nenhuma dessas charges tinha dividido tanto a opinião dos chargistas como as do garoto sírio. Um dos desenhos mostra o menino ao lado de um cartaz publicitário com a imagem do palhaço da McDonald’s anunciando uma promoção de dois cardápios infantis pelo preço de um. A frase diz: “Tão perto de ter conseguido…”. O segundo desenho recebeu o título A prova de que a Europa é cristã e traz um indivíduo usando um longo manto caminhando sobre o mar ao lado de uma criança afogada. Um balão de diálogo aponta para o homem e diz: “Cristãos andam sobre a água”. A outra seta: “Crianças muçulmanas afundam”. O terceiro e mais polêmico mostra o que aconteceria, se o menino não tivesse morrido afogado, “teria se transformado num apalpador de mulheres”. A charge fazia referência ao ataque sofrido por cerca de 90 vítimas de assalto, atentado ao pudor e estupro, na noite do Réveillon, em Colônia, no oeste da Alemanha, o que atiçou ainda mais a xenofobia naquele país.

Essa edição do dia 13 de janeiro do semanário francês foi a que mais repercutiu no mundo. “A morte de Aylan Kurdi ridicularizada por Charlie Hebdo”, comentou o Toronto Sun, do Canadá. Na França, a revista L’Obs chamou os desenhos de “insensíveis” e “repugnantes”. O diário francês de direita L’Express mencionou a reação nas redes sociais. Os principais jornais do país tiveram abordagens diferentes: o Le Figaro noticiou a charge-resposta do cartunista jordaniano Osama Hajjaj, com o menino crescendo e se tornando em um médico; o Libération explorou a repercussão da notícia no mundo e o Le Monde evitou o tema, já havia repercutido as charges de setembro de 2015.


Charge de Cau Gomez gerou reclamações de leitores do Jornal A Tarde, da Bahia.
Imagem: Cau Gomez/Reprodução

Para os defensores do humorístico, as caricaturas foram publicadas com o intuito de escancarar as falhas europeias na crise migratória, denunciar a hipocrisia na Europa e ironizar a visão xenófoba que os europeus têm dos refugiados. Mas o mundo não entendeu assim. O jornalista francês Gilles Klein observou no Twitter que o desenho parecia perdido na tradução (“lost in translation”) no momento em que cruzou o canal e chegou aos tabloides britânicos, os quais propagaram a revolta que o cartum tinha gerado ao “zombar da morte” do garoto. “A charge foi extremamente equivocada, preconceituosa e de mau gosto. Uma charge como essa, além de mostrar desrespeito à dor de todos os que sofreram com o ocorrido, não acrescenta em nada nem promove a paz entre as nações. Pelo contrário, incita o ódio e a discriminação”, aponta Samuca.

O cartunista pernambucano Miguel Falcão observa: “O chargista não precisa abandonar o seu senso de humanidade para ser engraçado. Aliás, é também desse sentimento que ele se alimenta. Mas a questão do Charlie Hebdo é um pouco mais complexa. Não creio que os artistas que fazem essas charges sejam desumanos ou meros porras-loucas que queiram chocar a qualquer custo. O que eles atacam nessas charges iconoclastas é o patrulhamento politicamente correto da sociedade europeia, em geral, e da parisiense, em particular. O problema é que, a partir dos ataques terroristas à redação do Charlie, a exposição deles cresceu exponencialmente e, vistas num contexto mundial, as charges muitas vezes parecem provocações gratuitas”.


Cartunista Jaguar, oriundo de O Pasquim, explica-se para evitar polêmica.
Imagem: Reprodução

Assim como O Pasquim, surgido, em 1969, num ambiente de ditadura militar, o Charlie Hebdo despontou em 1970 como resposta à censura do governo francês, que baniu a circulação de seu antecessor, o Hara-Kiri (fundado em 1960), após este ter minimizado, em sua capa, o falecimento do general De Gaulle em comparação à morte de 146 jovens, após um incêndio numa boate, uma semana antes. O Charlie do título faz referência a Charles de Gaulle e a Charlie Brown, de Peanuts. O jornal descreve-se como “laico, ateu, far-left-wing (extrema esquerda) e antirracista”. No entanto, algumas charges causaram tanta dubiedade de interpretações, que já chegaram a ser usadas em manifestações por integrantes do Pegida (Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente).

Se uma charge gera dubiedade, equívoco de interpretação, ou precisa ser explicada, significa que ela não cumpriu com seu papel? “Às vezes é deficiência do profissional que a executou, às vezes é deficiência do leitor que entendeu tudo da maneira que mais lhe apeteceu. Por isso, o lugar mais propício ao desenho de humor sempre foi a imprensa, pois necessariamente os chargistas e os leitores deveriam abrir o jornal para ler. Se nem sempre isso ocorreu, imagina agora…”, reflete Amorim, que, em 2007, foi acusado de racismo por causa de uma charge. “Eu me posicionava contra a redução da maioridade penal e acabei mal-interpretado. O processo ainda está em andamento no Supremo Tribunal de Justiça (há nove anos, o processo tramita) e não gostaria de emitir opinião sobre isso. Fui absolvido em primeira instância, em segunda instância com serviços comunitários e agora estamos recorrendo no STJ”, relata.

O DONO DA PIADA
Além do contexto, a noção de identidade seria também crucial para não somente se entender, mas para se praticar determinado tipo de humor? Por exemplo, alguns defendem que só deveria contar piadas sobre um determinado grupo quem pertencesse a ele, como Woody Allen ironizando os judeus, Amy Schumer, a sexualidade feminina, ou Chris Rock, os negros. Para o professor de filosofia David Benatar, da Universidade de Cape Town (África do Sul), essa opinião é correta no sentido de afirmar que a identidade de quem conta a piada é relevante para uma avaliação moral do ato de contá-la.

“Dependendo de quem conta uma piada, ela é ou não é uma expressão de defeito de quem a conta. Entretanto, onde a opinião erra é ao alegar que apenas membros do grupo possam contar a piada sem que ela seja uma expressão de uma atitude defeituosa ou ser vista como uma expressão de tal atitude. No entanto, nenhuma dessas suposições se sustenta. Primeiro, é possível que membros compartilhem de atitudes defeituosas sobre o grupo. Não é incomum que pessoas internalizem preconceitos ou outras atitudes negativas para com o grupo do qual façam parte”, expõe no artigo Taking humor (ethics) seriously, but not too seriously.


Cartunista Samuca organiza o II Salão, que discute o desenho
humorístico e os direitos humanos. Foto: Divulgação

Sobre a questão de gênero, Miguel Falcão se viu, em outubro de 2015, numa situação não muito agradável: uma de suas charges gerou crítica nas redes sociais, principalmente pelas mulheres que a rotularam de “misógina”. O chargista afirma que não costuma explicar-se ou desculpar-se com os leitores que reclamam: “Como escreveu Umberto Eco, uma obra de arte, qualquer uma, é uma obra aberta, que, quando é publicada, não pertence mais só ao autor e está aberta às mais variadas interpretações do público. E, como vovó já dizia, filho se cria pro mundo. Então é natural se esperar que, especialmente, se a obra de arte for uma sátira política, excite as mais variadas, e, às vezes, mais desvairadas reações. O ideal para o chargista, em se tratando de redes sociais, é não se envolver em querelas e questiúnculas e deixar o público brigar com a charge, não com você”.

Outros cartunistas brasileiros também foram alvo de contendas. Em junho de 2015, uma charge do mineiro, radicado na Bahia, Cau Gomez gerou um certo mal-estar na própria redação do jornal e, depois, quando foi publicada, resultou em vários e-mails e cartas enviados por leitores. Era um desenho que traçava um contraste entre a agressividade terrorista dos membros do Estado Islâmico e a sutileza de um beijo entre homens. “Muitos colegas jornalistas da redação ficaram inquietos e inseguros quando decidi publicá-la na capa. Eram bandeiras antagônicas, amor e ódio, mas que geravam uma sombria união impactante naquele momento. Notícia e humor a serviço dos desavisados na mesma temperatura. Detalhe: isso aconteceu quando a corte americana aprovou o casamento gay e, no mesmo dia, em outra parte do mundo, um grande ataque do Estado Islâmico deixou o mundo atônito. Afinal, o que aterrorizara mais?”, questiona.

CAUSAS NA JUSTIÇA
Em 2010, o chargista mineiro Duke e o jornal O Tempo foram processados pelo juiz de futebol Ricardo Marques Pereira, por conta de uma charge relativa a um jogo entre Cruzeiro x Ipatinga naquele ano. Em janeiro de 2014, finalmente saiu a sentença. Os réus foram obrigados a pagar R$ 15 mil de indenização. “Ele entendeu que eu o havia chamado de ‘ladrão’. Infelizmente, o processo, na minha opinião, foi manchado por questões burocráticas, pois o árbitro em questão é assessor jurídico do desembargador presidente da Câmara em que meu caso foi julgado em 2ª instância. Enfim, perdemos a causa, eu e o jornal”, relata.

Se Duke perdeu na justiça, ganhou o apoio do público. “A repercussão na imprensa, para minha surpresa, foi muito grande. A opinião pública esteve majoritariamente ao meu lado. Esta foi a parte boa, pois deu uma ideia da dimensão que meu trabalho tem hoje no meu estado. Logo após a notícia da condenação, passei um ou dois meses com dificuldades de exercer o trabalho. O emocional fica abalado e o processo inegavelmente fica comprometido”, revela. Além de afetar temporariamente a criatividade do cartunista, a sentença abriu um perigoso precedente para os profissionais de humor no país.


Chargista mineiro Duke  foi obrigado a pagar indenização a juiz de futebol.
Imagem: Duke/Reprodução

Estaria, então, o politicamente correto afetando ou matando a liberdade criativa, como dissera o publicitário Washington Olivetto? “Não diria matando, mas transformando; as redes sociais deram voz a muita gente que, tempos atrás, não tinha a possibilidade de se manifestar a respeito de qualquer assunto. O humorista tem de ficar atento a isso. Sou a favor da completa e ampla liberdade de expressão, mesmo os mais preconceituosos devem ter esse direito. A linha tênue que separa o discurso de ódio da verbalização do pensamento pobre e conservador tem de ser muito bem-analisada, para que não entremos em uma zona de censura, que é sempre um grande risco”, pondera o próprio Duke.

“Durante um debate em que participei num canal de televisão de Belo Horizonte, ouvi do Duke, um jovem e talentoso cartunista: ‘Toda forma de humor vale a pena’, o que foi avalizado pelo Ziraldo, um mestre admirado e uma referência valiosa para várias gerações de cartunistas. Apesar de concordar inicialmente, desconfiei um pouco, pois, mesmo abominando regras para a criação e expressão, creio que precisamos de bom senso e de um aprofundamento maior na leitura histórica dos fatos antes de publicar os desenhos de humor. Mas o curioso é que essa discussão precedeu em alguns anos a celeuma originada no massacre aos cartunistas do jornal Charlie Hebdo, todos covardemente assassinados no ambiente de trabalho, em Paris”, pontua Cau Gomez.

Essa reverberação das charges, para o bem ou para o mal, vem trazendo o humor gráfico de volta aos holofotes e contrariando as frases pessimistas de Jaguar (“O humor não serve mais para nada. Quando uma charge, hoje, vai ser um acontecimento?”, em fevereiro de 2014) e Laerte, em fevereiro de 2015: “Há muitos anos, a charge e o cartum não são material polêmico no Brasil. Porque eles, que estão mais ligados ao jornalismo, perderam em matéria de material explosivo, provocador, expressão de uma linguagem necessariamente agressiva. A produção de humor e comicidade necessariamente é agressiva. Sem essa agressividade, ela não se realiza. O discurso humorístico é bastante esquivo pra ser pego assim, porque existe o direito de sátira, o direito de paródia, sem isso, uma cultura não respira”.

Essa agressividade vai ao encontro do que dizia Millôr Fernandes: “Não existe humor a favor”. Samuca redefine o pensamento: “O humor é realmente muito utilizado com a intenção de criticar ou ridicularizar. Mas acredito que, quando voltado contra figuras, grupos ou ideologias opressoras, o humor está sendo a favor. A favor das minorias, dos oprimidos, da paz e da liberdade de expressão. Além de provocar o riso, uma boa charge faz pensar, refletir. A relevância do tema também é um fator levado em conta na avaliação da qualidade de uma charge, que é uma crônica da sociedade em forma de desenho”.

“Uma boa charge é sempre aquela que o leitor olha e de imediato pensa: ‘Puxa, é isso mesmo! Como é que eu não vi isso antes!!!’”, descreve Amorim. “Uma boa charge muitas vezes não provoca o riso…”

O psicólogo paulistano Mateus Pranzetti, que analisou o humor em seu doutorado na Universidade Estadual Paulista (Unesp), destrincha a complexidade do seu objeto de estudo: “É universal e particular, pois é encontrado em todas as sociedades. Porém nem todo mundo ri das mesmas coisas; o humor é social e antissocial, por ser gregário quando propõe diversão conjunta. Contudo, excludente ao zombar de determinados grupos sociais; e o humor é passível de análise e concomitantemente resistente a ser analisado, uma vez que existem diversos trabalhos teóricos que tratam e intentam explicá-lo”. 

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