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Criminalizar para salvar vidas

TEXTO Rhemo Guedes

01 de Fevereiro de 2015

Imagem Arte sobre reprodução de jornais

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 170 | fev 2015]

Diante do bárbaro legado cultural, machista e discriminatório,
que oprime e incita o ódio em razão da orientação sexual e identidade de gênero, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) são vítimas de intenso preconceito e violência. Isso faz da homo-lesbo-transfobia uma das realidades que resistem e desafiam a Justiça e os Direitos Humanos na atualidade.

As mortes do jovem Kaique Augusto Batista dos Santos1 e Alexandre Ivo2 revelam a dimensão da discriminação experimentada por homossexuais na tradição brasileira, através de sucessivos e cruéis crimes. Essas histórias têm em comum com as situações de discriminação vivenciadas no dia a dia dessa população o discurso fundamentalista e conservador. O preconceito contribui para a vulnerabilidade social LGBT.

São muitas as mortes com um padrão de ódio motivado por crenças culturais ou preconceitos, como um caso em que a vítima foi assassinada com 24 tiros, sendo a maioria na região das nádegas e um disparo identificado no ânus. Vinte e quatro é um número que representa a homossexualidade para o senso comum – referente ao “veado”, no jogo do bicho.

Assim, o princípio da igualdade, por mais amplo que seja, não garante, por si só, a cidadania material da população LGBT. A lei é esvaziada pela invisibilidade do direito à livre orientação sexual no imaginário da sociedade. A ausência de uma postura afirmativa da lei brasileira perante esse direito tem contribuído para que a homo-lesbo-transfobia não seja reconhecidamente proibida pela sociedade e, muitas vezes, sequer considerada uma forma de violência.

Sabe-se que a reprodução das tradições judaico-cristãs pelo mundo ocidental também fundamentou codificações repletas de valores morais religiosos e heteronormativos. A Constituição Brasileira seguiu essa tendência. Portanto, não é suficiente afirmar que “todos são iguais perante a lei” para o combate efetivo do preconceito e da discriminação.

O (re)conhecimento detalhado dos assassinatos contra LGBTs é um instrumento para o estabelecimento de indicativos da aprovação de um dispositivo legal que criminalize esses atos violentos no país.

A reflexão aqui proposta tem como base os 122 casos de assassinatos contra LGBTs que foram registrados pelo Movimento Gay Leões do Norte (2002-2010). A pesquisa considerou matérias dos principais jornais de Pernambuco e outros meios de comunicação, destacando-se, entre as múltiplas faces da homo-lesbo-transfobia, aquela em que se chega a matar.

No âmbito nacional, pesquisa equivalente é realizada pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). Segundo o Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais no Brasil (LGBT), relativo a 2013, escrito pela entidade, “o Brasil é campeão internacional de homicídios de gays, travestis e lésbicas. Em 2013, foram registrados 312 assassinatos, incluindo uma transexual brasileira morta no Reino Unido e um gay morto na Espanha. Um assassinato a cada 28 horas”.

Está aí o grande desafio para o enfrentamento da vulnerabilidade social LGBT no Brasil: quanto mais o país estiver imunizado contra a interferência fundamentalista e conservadora, mais preparados estaremos para responder ao preconceito e à discriminação.   

1. Adolescente de 16 anos que foi encontrado morto na madrugada do dia 11 de janeiro de 2014 (sábado), na Avenida 9 de Julho, região central de São Paulo-SP. Segundo pessoas da família de Kaique, que fizeram o reconhecimento do corpo, não havia dentes na boca do garoto, que tinha sinais de tortura, como uma barra de ferro dentro da perna. Dados disponíveis AQUI. Acessado em 21 de janeiro de 2014.

2. Alexandre Ivo Rajão, de 14 anos, morreu no dia 21/06/2010, depois de participar de uma festa. Ele voltava para casa sozinho, quando desapareceu. O corpo foi encontrado horas depois num terreno baldio, com marcas de espancamento e tortura. No laudo pericial, consta que ele foi morto por asfixia mecânica, enforcado com sua própria camisa, com graves lesões no crânio, provavelmente causadas por agressões com pedras, pedaços de madeira e ferro. Dados AQUI. Acessado em 21 de janeiro de 2014. 

RHEMO GUEDES, advogado, especialista em Direitos Humanos (UFPE) e gerente do Sistema Estadual de Proteção às Pessoas - SEPP.

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