Arquivo

A multiplicidade de gêneros e sexualidades

Ainda que continue como referência, a união heterossexual convive com relacionamentos que questionam o status quo, como os casamentos poligâmicos e transgêneros

TEXTO Chico Ludermir

01 de Fevereiro de 2015

A luta LGBT dá cada vez mais visibilidade às suas demandas, com alguns avanços concretizados

A luta LGBT dá cada vez mais visibilidade às suas demandas, com alguns avanços concretizados

Foto Fernando Frazão/Agência Brasil

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 170 | fev 2015]

Caio não se identifica como ser binário,
Maria Clara é uma mulher transbissexual. Artur milita pela possibilidade de ser gay afeminado e Juliana tensiona lugares comumente ocupados por homens. Situações como essas indicam que certas categorias não são suficientes para classificar nossas preferências sexuais e identidades de gênero.

No fértil terreno dos comportamentos humanos, não existe assunto mais inquietante do que a sexualidade. A expressão sexual e as identidades de gênero são plurais, conflituosas, diversas e, ao mesmo tempo, fontes de prazer e sofrimento. Como algo intrínseco à nossa existência – e a de todos os animais –, o tema está posto e sempre presente. É verdade, no entanto, que as questões referentes ao sexo são fruto de um contexto histórico e social, assim como sua abordagem e teorias respectivas.

A concepção moderna de sexualidade, segundo Michel Foucault, nos três volumes de A história da sexualidade, designa uma série de fenômenos que englobam tanto os mecanismos biológicos da reprodução como as variantes individuais e sociais do comportamento. Da mesma forma, relaciona-se com a instauração de regras e normas apoiadas em instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas e médicas, e também com as mudanças no modo pelo qual os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua conduta, seus deveres, prazeres e sonhos.

Ao longo da história, a atividade sexual sempre foi objeto de preocupação moral e, por isso mesmo, submetida a normas de controle das suas práticas e de seus comportamentos. Como esses dispositivos são construídos com base nos valores e ideologias predominantes na sociedade, eles assumem formas diferentes, à medida que mudanças ocorrem.

“Foucault nos mostra como o mecanismo da incitação ao discurso como a prática confessionária, por exemplo, é reformulada por várias instituições, como a ciência, a psiquiatria, a medicina, para controlar e regular as atividades sexuais dos indivíduos”, explica a socióloga Fernanda Ribeiro (UVA–CE), que tem a sexualidade e o gênero como objetos de pesquisa. Ela diz que essa incitação ao discurso do sexo cria mecanismos cada vez mais sutis do poder, em que sexo, corpo e prazer se tornam constitutivos da subjetividade dos indivíduos. “O poder não está nas mãos de um ou mais indivíduos e de uma ou mais instituições; o poder está difuso pela sociedade e é nela em que as relações pelo poder têm lugar. Nas palavras de Foucault, onde há poder, há resistência”, completa Ribeiro.

A história da sexualidade, vista como uma construção social, aponta mudanças importantes tanto no comportamento sexual como no significado que lhe atribuímos. Por isso não se pode explicar suas formas e variações sem examinar o contexto em que se formaram.

A construção de relações amorosas e sexuais mais democráticas e igualitárias é uma conquista que tem permitido o surgimento de outras formas de relacionamento amoroso, no contexto heterossexual e fora dele. O casamento entre pessoas de sexos opostos continua sendo referência importante, mas convive com outras formas de relacionamento conjugal – as uniões consensuais, os casamentos sem filhos e as uniões homossexuais, poligâmicas e transgêneras. Nesse processo de transformação da intimidade, dos valores e das mentalidades, a tendência da sociedade é tornar-se cada vez mais flexível para acolher essas novas configurações das relações amorosas.

“A luta e a visibilidade da população LGBT é imprescindível para repensarmos as formas duais de pensamento que estão em vias de extinção. Nada é definitivo, tudo está em constante transformação, e a sexualidade humana não foge disso. Quem sabe, em um futuro breve, poderemos ter uma sociedade mais plural e igualitária em suas diferenças”, complementa a socióloga.

DESNATURALIZAÇÕES
Caminhando lado a lado com as discussões de sexualidade, a temática do gênero levanta outra gama de reflexões – em especial, evidencia as possibilidades de desnaturalização das masculinidades e feminilidades hegemônicas. Segundo Denise Silva Braga, autora da tese em Educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Novos/outros corpos, gêneros e sexualidades: experiências de lésbicas, gays e transgêneros no currículo escolar, trabalhar com a categoria gênero implica rever sua gênese no movimento feminista, principalmente no final da década de 1960, quando elas incorporaram às discussões políticas e sociais as primeiras construções teóricas nas quais seria forjado o conceito de gênero. “Partindo da denúncia da segregação social e política a que as mulheres estavam submetidas, estudiosas, docentes e pesquisadoras feministas enunciaram em seus trabalhos no campo acadêmico a ausência das mulheres como sujeitos ativos da história”, contextualiza.


A socióloga Cristiana Cavalcanti transita por identidade híbrida. Foto: Chico Ludermir

A proposição desse conceito, a partir das ativistas das décadas de 1960-1970, realçava que o gênero não poderia ser restrito a uma ligação direta com o sexo biológico, mas com aquilo que socialmente se construiu e representou sobre os sexos. Nesse sentido, centrava-se em pensar os sujeitos – masculinos e femininos – como produtores dos processos históricos. A rigidez dos “papéis” de homem e de mulher, ainda presente na sociedade, fixou essa oposição binária entre um e outro. Portanto, desconstruir o gênero impõe rever os conceitos de masculinidade e de feminilidade. “A estratégia adotada por Foucault e Judith Butler problematiza as construções identitárias binárias, colocando em relevância o poder e as normas sociais na constituição da subjetividade dos indivíduos na sociedade atual”, explica Fernanda Ribeiro.

Quando tinha 6 anos, Caio de Oliveira (nome fictício) costumava usar, escondido no banheiro, as roupas e maquiagens da mãe. Certa vez, pintou as unhas de esmalte vermelho e, sem saber como tirar, foi flagrado por ela. Ao encontrar o filho chorando, a mãe perguntou se ele gostava de meninos ou meninas. “Eu lembro que percebi na hora que não era sobre isso. Ela estava confundindo minhas questões de gênero com minhas questões de sexualidade”, relata.

A confusão da mãe de Caio é bastante comum. Mesclar gênero e sexualidade talvez seja dos enganos mais recorrentes. Por isso, cabe uma explicação. A sexualidade se refere à atração sexual. Se gostamos de alguém de um gênero diferente, somos heterossexuais; se gostamos de alguém de gênero semelhante, somos homossexuais. Se gostamos dos dois, somos bissexuais.

Já em relação à identidade de gênero, o que importa é com qual gênero nos identificamos: com o feminino, mulheres; com o masculino, homens. Se a autoidentificação de gênero entra em confronto com o que o sexo representa socialmente, a pessoa é trans, podendo se identificar com o gênero oposto ou com nenhum (neste caso, trans não binária). Se a pessoa se identifica com o gênero designado quando nasceu, é cisgênera.

Caio tem 23 anos e já se relacionou com pessoas de vários gêneros (ele acredita que existem mais do que os instituídos). Além de bissexual, define-se como uma pessoa trans não binária, o que significa dizer que não se vê encaixado em nenhum dos gêneros preconcebidos. “É frequente escutar que nós somos uma comunidade indecisa, que temos vergonha de sermos gays, que somos uma população promíscua, mas não é isso. Acredito que a sexualidade é mais complexa que o momento presente que estamos vivendo”, afirma. Para ele, viver sem rótulos é uma forma de viver com “fluidez” e “intensidade”.

Maria Clara é mulher trans e se relaciona com mulheres e homens. Aos 18 anos, combina diversas questões em sua existência. Por vivenciar o amor sem padrões estabelecidos, já protagonizou, por exemplo, relações com homens trans – o que se configura como uma relação heterossexual – e poderia, portanto, engravidar o parceiro. “Não interessa com quem eu me relaciono, sou uma mulher e quero ser tratada e respeitada como tal”, exige ela, que sempre se viu como menina. A mudança, que já estava na sua cabeça, se deu no seu corpo aos 16, quando mudou seu nome no Facebook e começou a tomar hormônios femininos.


AFEMINADOS E MASCULINAS
Quando, em 2014, o produtor cultural cearense Thomas Saunders, 25, voltou a paquerar depois de um ano e meio de relacionamento, reconheceu uma nova cena gay – a dos que gritam aos quatro ventos que não são e nem curtem afeminados. Em conversa com amigos, Thomas percebeu que o preconceito entre os próprios homossexuais contra os afeminados, como ele, estava mais forte do que nunca.

“Nos aplicativos de encontro, é sempre aquele texto de perfil: ‘não fico com afeminado’.” Incomodado com a situação, o produtor cultural postou no Facebook: “Sou afeminado, sim, curto afeminado, sim. Mas, além de tudo, sou humano”. Ao fazer o protesto na rede social, Thomas descobriu que não estava sozinho. Outros gays partilhavam o mesmo sentimento. Além de receber muitos comentários, o post foi compartilhado 367 vezes, o que deu início a uma página na mesma rede social. “Sou/Curto Afeminados”, iniciada em abril daquele ano, hoje conta mais de 7 mil seguidores.

Artur Maia, recifense de 19 anos, não é um dos curtidores da página, mas também se sente incomodado com esse preconceito que os afeminados sofrem. Aluno da Faculdade de Direito do Recife e militante do Coletivo LGBT Toda Forma e do Movimento Zoada, acredita que a discriminação tenha uma herança muito forte no patriarcado e no poder do homem na nossa sociedade. “O conceito de masculino está atrelado à virilidade, à negação e à inferiorização do feminino. Por isso, ‘dar pinta’ seria um ato político e contra-hegemônico, no momento em que nega o masculino padrão. Isso tem um potencial combativo, revolucionário e de desconstrução da hierarquia de gêneros”, defende.

Ele acrescenta que a opressão de gênero incide também no campo das práticas sexuais. No caso do homem, especificamente, isso resulta no que chama de “castração anal”, “uma lógica que proíbe e abomina o prazer anal, por estar relacionado à submissão, sendo esta uma característica do feminino”.


O estudante Artur Maia se incomoda com o preconceito que os afeminados sofrem entre os próprios gays. Foto: Chico Ludermir

No blog Os entendidos, referência internética na discussão de assuntos de sexualidade, o autor Fabrício Longo adiciona alguns elementos que ajudam a compreender a inaceitação do afeminado, mesmo entre homossexuais. “Que ‘gosto’ é esse, que se molda em uma cultura de opressão?”, questiona retoricamente, preparando suas hipóteses.

Segundo ele, a busca por “machões, bem-dotados, dominadores” faz jus à criação dos homens. “Somos criados para continuar comandando o mundo. Da mamãe que faz questão de estender a toalha largada na cama, passando pela educação sexual que manda ‘pegar geral’. Pelo salário superior no mercado de trabalho, até o ‘direito’ de reagir violentamente, quando suas vontades ou crenças são desafiadas. Tudo gira em torno do macho.”

A construção da masculinidade segue padrões rígidos que, segundo ele, vão da primeira roupinha azul até a obsessão pelo tamanho do pênis. O problema é que essa construção é frágil, ameaçada por qualquer demonstração de “fraqueza”. E nesse idioma, o afeto – e qualquer coisa que seja lida como “feminina” – vira sinal de fragilidade ou emasculação. “É por isso que o papel da ‘bicha’ é tão ‘baixo’ e tão ofensivo. É como se a bicha desafiasse a estrutura de poder somente por existir”, argumenta.

Também desafiando as normas, Juliana Carvalho se deparou com a resistência de homens ao seu comportamento. Desde pequena, a estudante adorava ir a estádios de futebol e fazia parte de torcidas organizadas. Relacionava-se com meninos e era vista apenas como acompanhante deles, jamais como torcedora de fato. A partir do momento em que passou a ir aos jogos sozinha, não era tratada com respeito. “Ficavam me olhando como se eu só estivesse ali para paquerar.” Mas Juliana insistiu em fazer parte do grupo. Quis tocar bombo na banda da Torcida Brava da Ilha do Sport Clube do Recife e teve que “falar grosso” para poder ser escutada. “Me mostrei extremamente masculina e, só assim, consegui permanecer. Ainda hoje, em certos lugares, só homens são aceitos.”

Passando na rua, a socióloga Cristiana Cavalcanti atrai olhares. Por transitar numa identidade híbrida, é muitas vezes confundida com homens, mesmo não se percebendo encaixada nesse papel. “Não quero ser menino, nem estou em processo de transformação. Apenas transito nessa androginia que talvez ainda não tenha um nome ou categoria definida”, diz. Ela tampouco se incomoda com a confusão que causa em alguns. Militante do movimento feminista, acredita no corpo como agente político no processo de aceitação de cada um como é. “As posições de gênero e de sexualidade são múltiplas. É impossível lidar com elas, apoiadas em sistemas binários. O lugar social no qual alguns sujeitos vivem é exatamente a fronteira”, diz.

Apesar de não se referir diretamente às mulheres, o blogueiro Fabrício Londo expressa uma preocupação comum a todos os gêneros: para ser “aceito” como homossexual, ainda é necessário encaixar-se em um padrão. “Reprimir trejeitos, não fazer alarde e jamais ofender a sociedade com demonstrações públicas de afeto”, ironiza. Segundo ele, a homofobia é a culpada por privar os sujeitos de sua identidade. “Ninguém foi educado para aceitar o diferente. Fomos educados para temer e reprimir – às vezes com violência – o que ameaça a nossa zona de conforto. É por isso que nem os próprios gays aceitam sua diversidade. Acontece que nós somos muitos, todos diferentes.”

A não aceitação das diferenças coloca o Brasil no ranking dos países que mais matam lésbicas, gays, travestis e transexuais no mundo. O relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), de 2013/2014, revela que um LGBT é assassinado a cada 28 horas, no país. Pernambuco lidera, ao lado de São Paulo, a lista dos estados onde mais LGBTs foram assassinados. É nesse contexto que se insere a discussão de políticas públicas voltadas para tal segmento da população.

Ao lado das demandas afirmativas, como o casamento igualitário, a aceitação do nome social de travestis e transgêneros e uma série de inovações propostas pela prefeitura de São Paulo – que incluem, por exemplo, bolsas para travestis voltarem a estudar e inserção de gays expostos a situação de violência e travestis moradoras de albergues nas prioridades programa Minha Casa Minha Vida – está a questão da criminalização da homofobia. A lei ainda não foi sancionada, mas já tem apoio declarado da presidenta Dilma Roussef.

Se, de um lado, existe uma corrente conservadora empenhada em negar direitos aos homossexuais, do lado da militância LGBT, dois grupos se diferenciam. Um defende que a punição pode atenuar o problema, o outro acredita que muito se gasta e pouco se resolve com essa estratégia. Esses são alguns dos embates que ocorrem neste momento histórico, em que as várias representatividades de gênero e sexualidade ocidentais põem em xeque valores há muito arraigados. 

Leia também:
Criminalizar para salvar vidas
Criminalizar não é a solução!
Relatos: Eles só queriam ser elas
Religião: Deus é amor

veja também

Pesquisa: Teatro para a infância

“Não tive tempo de ser cinéfilo”

“Mesmo um filme que não fale diretamente de política, é político”