CONTINENTE Se observarmos as diversas expressões da cultura atual, a felicidade é quase onipresente. Somos assim tão felizes?
FILIPE CAMPELLO Uma das observações mais recorrentes e discutidas em relação à felicidade consiste na atribuição de um modelo imperativo, facilmente diagnosticado na sociedade contemporânea. A imposição do “ser feliz a qualquer custo”, que já em si mesma é contraditória, conduz a uma percepção – a meu ver, equivocada – de que a dor ou a imperfeição seriam estranhas à existência.
CONTINENTE Como se vivêssemos dentro de uma virtualidade eterna, compartilhando e curtindo sorrisos o tempo inteiro.
FILIPE CAMPELLO Nas redes sociais, o imperativo é ainda mais pernicioso, passando a falsa impressão de que todos são ou estão felizes (são raros os posts sobre frustração, sobre estar triste). O não estar feliz, portanto, é sinônimo de fracasso – ou o sentido recorrente de looser dos norte-americanos – e, em alguns casos, conduz a sintomas mais sérios, como a depressão. Ao contrário disso, é preciso assumir que momentos de dor e tristeza ou a vulnerabilidade e fraqueza do ser humano são próprios à existência, às histórias de vida individual, de modo que é preciso lidar com isso não como sintomas de fracassos, mas como sentimento comum. Mas eu gostaria, aqui, de destacar outro problema em relação ao sentido de felicidade, a meu ver mais importante e filosoficamente mais denso. A dificuldade sobre este conceito pode ser resumida na questão provocativa: um escravo pode ser feliz?
CONTINENTE A pergunta remete à subjetividade, quando se trata do tema felicidade, inclusive em sua versão publicitária?
FILIPE CAMPELLO Sim, a questão já aponta para a dificuldade de um critério objetivo e da maleabilidade em lidar com um sentimento fundamentalmente subjetivo. A resposta, pelo que parece, pode ser sim e não. A resposta afirmativa deve-se a um sentimento que pode ser vivenciado pelo escravo e que, portanto, não pode ser negado por um interlocutor. É quando se pergunta ao escravo: você é feliz? E ele responde: sim. A possibilidade de uma resposta afirmativa já evidencia o significado relativo do conceito de felicidade.
CONTINENTE Em que consiste essa relatividade?
FILIPE CAMPELLO Ela pode ser considerada em dois sentidos. No primeiro, há estudos que mostram que a felicidade não é um sentimento meramente subjetivo, mas possui um alto grau comparativo: ela depende de uma sensação duradoura de bem-estar mediada por relações de reconhecimento recíproco, ou seja, a felicidade refere-se à medida que o indivíduo é estimado e respeitado pelos demais. Ela também é relativa porque há uma propensão em tomar um padrão de felicidade intersubjetivamente compartilhado, em que este padrão é difícil de ser valorado objetivamente. Um exemplo disso são estudos sobre a felicidade em economia, que sugerem que ela pode depender do grau de bem-estar proporcionado pela renda (e esta depende do contexto), mas chega a um determinado ponto em que ela não mais depende da variável econômica.
CONTINENTE O que isso aponta?
FILIPE CAMPELLO Põe ainda mais em xeque o uso objetivo do conceito de felicidade. Em uma das diversas (e controversas) pesquisas sobre índice de felicidade, foi apontado recentemente que o terceiro país mais feliz do mundo é a Arábia Saudita! Este é mais um claro exemplo do conflito subjetivo/objetivo expresso na situação hipotética do escravo feliz, em que um sentimento subjetivo pode ser articulado como felicidade (e até mesmo esta articulação subjetiva é bastante controversa), enquanto várias outras evidentes pré-condições não são preenchidas, tais como violação sistemática de direitos humanos, opressão da mulher, falta de liberdade de expressão etc.
CONTINENTE O que resta para a felicidade – e para o escravo feliz?
FILIPE CAMPELLO É por essas ambiguidades e dificuldades de se atrelar um sentido objetivo de felicidade que filósofos como Hegel chegam a mencionar este conceito, mas, em seguida, defendem que não o conceito de felicidade, mas o de “liberdade” é o mais adequado para estabelecer uma reflexão sobre o sujeito. Aqui, a pergunta central não é se o escravo é feliz (e pouco importa se a sua resposta seja sim – como também no anômalo caso dos sauditas), mas, antes, se estão asseguradas condições “objetivas” e socialmente mediadas de realização da liberdade individual. Não quer dizer que essa concepção de liberdade satisfaça todos os critérios de felicidade, senão que somente a partir dela faz sentido questionar, num segundo momento, se o sujeito é ou não feliz.
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