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Marketing: E tome (in)felicidade!

A publicidade alimenta de modo sistemático a sensação de insatisfação, pois o terror para o mercado é a ideia de um consumidor (realmente) satisfeito

TEXTO Fábio Lucas

01 de Junho de 2015

Foto Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 174 | jun 2015]

Nas telas da vida virtualizada, a exacerbação
da cena feliz transborda nas aparências e está em quase tudo o que se vende. Como se a felicidade fosse um objeto de consumo acessível, permanentemente. No anúncio do crédito parcelado do Banco HSBC, a pergunta estampada destaca a facilidade de qualquer conquista: “Por que você ainda não começou a fazer tudo aquilo que realmente quer fazer?” Na reportagem de capa da edição de maio da revista Vida Simples, a conclamação é direta: “Veja o lado bom da vida – Aprenda a reconhecer os momentos perfeitos do seu dia a dia e traga mais felicidade e satisfação para perto de você”. Sobram exemplos, para onde quer que se olhe, desse tipo de chamamento, parte indissociável de nossa cultura.

Eis que, num passe de mágica, o consumo imediato vira a felicidade sonhada. Mas, no ato da aquisição comercial, a essência da troca simbólica continua sendo o consumo, a urgência do objeto vendido, e não a felicidade cambiante que pode ser tudo e, de fato, não chega a ser nada, trazendo no fim da transação um gosto de decepção. “Na verdade, o que a publicidade precisa tentar produzir de modo sistemático é a insatisfação. O terror para o mercado é a ideia de um consumidor satisfeito. Seria o fim das empresas”, diz a professora do Departamento de Ciências Sociais e da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, mestre e doutora em Sociologia da Cultura pela USP, Maria Eduarda da Mota Rocha. Segundo ela, à publicidade cabe tentar alimentar as expectativas em relação ao bem e ao serviço que, de todo modo, nunca serão totalmente atendidas. “Nosso modelo de sociedade nos faz projetar nossas carências nas mercadorias, quando também precisamos de outras coisas, principalmente de afeto e segurança, o que somente outras pessoas podem nos ajudar a ter.”

A menção ao modelo de sociedade remete à ideologia presente tanto nas formulações conceituais quanto nas práticas coletivas. Para a professora do Departamento de Letras Clássicas e Linguística da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS), Caciane Medeiros, o conceito de felicidade a que temos acesso está embalado em uma ideologia do ter e não do ser. “Dessa forma, todos os dispositivos sociais, entre eles os informativos e publicitários, são constituídos de sentidos que trabalham para manter a condição de felicidade aliada a uma formação ideológica consumista e compulsória. O imaginário coletivo da felicidade tem na mídia uma das suas instâncias mais significativas de constituição de sentido. Somos incitados a compreender a felicidade como uma espécie de dever. E, para atingir este objetivo “maior”– ser feliz –, movimentamos uma série de ações que conjugam sentimentos, expectativas e sensações a valores materiais e ideais de consumo. O imperativo é o da satisfação!”, diz Caciane Medeiros.

Para a jornalista com especialização em Propaganda e Marketing, Leide Franco, não devemos esquecer, contudo, que o sentido de felicidade é individual, daí o desencaixe, quase tão compulsório quanto o desejo vendido, entre a realização e as carências. “O que pode me fazer feliz pode não trazer felicidade para mais ninguém. Mas essa satisfação encontrada no consumo compulsório e renovável vejo como a cura paliativa para vazios mais complexos. Um tipo de falta que o lançamento de tal smartphone não vai completar – ou melhor, completa, sim, pelo menos até o próximo novo modelo estar disponível no mercado.”


Ideal de felicidade é atrelado ao consumo de bens. Foto: Divulgação

De acordo com Leide Franco, além do falso preenchimento dos vazios existenciais de cada um, as pessoas têm se deixado levar pelo status social. “Ninguém mais quer aquele celular para fazer apenas ligação, por exemplo. Ele tem que, no mínimo, acessar o mensageiro top do momento (WhatsApp). Mas só isso não basta. O aparelho precisa ser grande o suficiente para que quem esteja ao redor possa ver e desejar, quer dizer, são valores agregados em um objeto que, no final das contas, existe para facilitar a vida e ser útil – o que não está ligado diretamente à felicidade.” Assim, a utilidade do aparelho comprado e exibido para os outros como um troféu de consumo se confunde com um instrumento indispensável para ser feliz, no manual não escrito da felicidade consumada. “Se pararmos para pensar que nem todo consumo é racional, e que a maioria dos produtos é bem não durável e ainda carrega toda a história da obsolescência programada, o que tem de felicidade concreta nisso? O tempo de garantia?”, ironiza a jornalista.

HEDONISMO LIBERTADOR
“Vivemos numa ditadura do gozo, transmitida pelas imagens que a publicidade nos vende como imperativos do consumo. É como se estivéssemos sempre em débito com nós mesmos, porque não podemos usufruir o suficiente, não podemos ser tudo o que queremos e estar onde queremos estar. E a nossa culpa não se relaciona mais com o que fizemos, mas com o que deixamos de fazer. Não nos consideramos bons o bastante para sermos hedonistas”, avalia o escritor Tiago Novaes.

A professora Maria Eduarda Rocha também credita ao hedonismo um papel importante. “Se vivemos em uma sociedade na qual a infelicidade é proibida, é porque caminhamos na direção de um hedonismo que transforma a vida terrena na razão maior de nossa existência. Por um lado, isso é liberador, quando nos impele a buscar uma vida prazerosa, em vez de apostar em uma existência depois da morte sobre a qual não podemos ter certeza. Mas, por outro lado, isso amplia a angústia em relação ao sentido desta vida mesma, porque, se tivermos uma trajetória considerada bem-sucedida segundo essa cultura, quanto mais acumulamos propriedades e reconhecimento, mais estamos próximos de deixar tudo isso para trás.” A vertigem da morte é maior por causa da antecipação da falta do que se acumulou, e até, quem sabe, do vício de consumir sempre mais. “Se o historiador britânico Erick Hobsbawn tiver razão, é mais difícil para um contemporâneo se despedir da vida do que uma pessoa da Idade Média, justamente porque vivemos em uma sociedade afluente, que aposta suas fichas neste plano da existência”, pondera Maria Eduarda.

“O que se perde nessa visão é justamente a ideia de que a felicidade se realiza coletivamente. A felicidade ‘exclusiva’ é uma denegação. Toda felicidade genuína é inclusiva; é uma entrega e um desapego. Uma responsabilidade, e não um gesto leviano”, define Tiago Novaes.

A responsabilidade em busca da felicidade genuína pode se deparar com o problema da elaboração de um projeto de vida desatrelado dos apelos consumistas que pregam o imediatismo de ser feliz. Um desafio e tanto, como aponta a professora do Departamento de Letras Clássicas e Linguística da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS), Caciane Medeiros. “Vivemos em tempos em que conceitos como realidade e consumo se misturam e delimitam nossos projetos de vida em sociedade. Entre a realidade e o consumo, há um discurso hegemônico que nos impele na busca da felicidade como condição de plenitude, realização, como ideal de ser/estar no mundo. Uma espécie de ‘conspiração social’ que deflagra o sujeito como sendo refém da premissa de felicidade como constante ideal a ser perseguido.”


No romance Documentário, psicanalista e escritor Tiago Novaes explora o sofrimento na era da superexposição. Foto: Divulgação

Sequestrados pelo ideal imediatista do consumismo, a normalidade é o atendimento ao frenesi dos desejos à disposição na vitrine do mercado. Até a saúde de cada indivíduo é pautada pela premissa de um ser feliz de acordo com a plenitude jamais alcançada – e daí as doenças da infelicidade, causadas pelo choque de realidade da vida longe do ideal. Para Caciane Medeiros, só somos “normais” e saudáveis se sonhamos com esse ideal de felicidade. “O caminho para alcançar tal intento é…? O consumo. Somos defrontados com a permanente criação de necessidades. Precisamos de muitas, literalmente, muitas coisas para termos felicidade e proporcionarmos a felicidade de outrem. Na ótica social do século 21 e suas contradições, o consumo se apresenta para além dos aparatos materiais. Consumimos ideias e, por nos sujeitarmos a elas, agregamos outras necessidades materiais ao nosso cotidiano, e o círculo realidade-consumo-felicidade não se encerra”, afirma a professora da UFSM.

UMA ABSTRAÇÃO
O resultado decepcionante da ilusão desfeita – ou remontada a todo instante pela voracidade consumista e pela cultura midiática – não deve afastar a noção de que a felicidade é uma abstração, sim, mas pode ser uma vivência verdadeira. “Creio que a felicidade seja um horizonte: um pressentimento impalpável e de definições cambiantes. Claro, com sorte teremos a oportunidade de viver alguns momentos sublimes ao longo de nossa história. Um encontro amoroso, a experiência de ter filhos, uma realização política ou profissional, o contato com uma obra de arte, a beleza, um meio natural exuberante”, afirma Tiago Novaes. “Mas a vida é feita de perda e impermanência. E um homem poderá desgraçar-se querendo atingir esse horizonte. O fato é que, se o horizonte serve para caminhar, ele também existe para oferecer-nos um vago contorno, uma paisagem do possível, uma contemplação. A felicidade sem esperanças, a felicidade do hábito, e, inclusive, a felicidade de enfrentar as misérias pessoais com um certo grau de sabedoria.”

Então é preciso mudar o horizonte dominante. Caciane Medeiros recorda que o discurso do consumismo se assenta no ideal de que a principal finalidade da vida dos sujeitos é comprar. “Nas sociedades contemporâneas, esse comportamento foi naturalizado e tornou-se a ideologia predominante. A contradição é constitutiva dos sujeitos e da sociedade como um todo. Nosso ideal de felicidade precisa ser revisto, na medida em que estamos presos a uma ordenação perversa, que nos incita a desejar o que não precisamos, mercantilizar trocas afetivas e condicionar nossas ações cotidianas a um estado permanente de insatisfação e de incompletude. O vazio existencial de nosso tempo não se esgota, não pode ser preenchido e tampouco compreendido. Não podemos sequer refletir sobre ele… Mas podemos camuflar sua existência sob aparente efeito de prosperidade e contentamento nas redes sociais, mesmo que na brevidade de um like. Nosso vazio não dá lugar ao sofrimento, ao desgosto, à melancolia. Mas estamos quase lá, rumo à felicidade que logo vamos ‘comprar’, digo, conquistar!”

Como a felicidade consumida, de fato, não se consuma, a lógica da felicidade neurótica se alimenta de uma ilusão infinda. Para sair dela, talvez necessitemos mudar o foco da vida, como sugere o professor Marcelo Pelizzoli (leia artigo dele a seguir), ou tirar a felicidade do foco social, em favor de um conceito como a liberdade, de acordo com o que expõe Filipe Campello, na entrevista que deu à Continente

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