Os fios invisíveis entre minha mãe e eu
TEXTO Lubi Prates
02 de Maio de 2023
Imagem Laura Morgado
[conteúdo na íntegra | ed. 269 | maio de 2023]
Escrevo enquanto minha mãe me observa. Seus olhos escuros sobre mim parecem procurar alguma resposta. Esta é uma das poucas fotografias que tenho no meu escritório, navega numa imensidão de autorretratos.
Nesta fotografia, minha mãe está congelada na idade que eu tenho hoje: 35 anos. Àquela época, eu tinha sete. E, àquela época, a fotografia era para poucos e nós não pertencíamos a esses “poucos”. Por isso, meu álbum de infância é curto, retrata apenas alguns momentos célebres nos quais fotógrafos estavam a postos para oferecer os seus serviços.
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Lembro que minha mãe ficou surpresa ao se deparar com a sua fotografia, numa visita à minha casa, alguns anos atrás. Com as nossas fotografias 3x4, uma ao lado da outra. Questionou o motivo de eu tê-la roubado. Eu não me recordo o que lhe respondi.
Mas o que eu lhe responderia hoje, compartilhando a mesma idade?
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Além da idade, atualmente, eu trago o mesmo corte de cabelo que a minha mãe nesta fotografia.
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Era de tarde e eu, atentamente, assistia ao ritual da minha mãe se arrumando. Era algo que me interessava e eu ainda me recordo de cada gesto. Depois da lingerie, minha mãe vestia a meia-calça – São Paulo é sempre fria para aqueles que nasceram no Nordeste do país. A meia-calça era marrom ou preta e eu aprovava a firmeza que ela emprestava às pernas da minha mãe. Em seguida, ela vestia a blusa, a calça e algum casaco. Só então penteava os cabelos – curtos e cacheados, colocava brincos que balançavam e passava lápis de olhos e batom vermelho.
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Foi naquela tarde que eu presenciei mais uma das brigas entre os meus pais. Meu pai exigia que minha mãe tirasse o batom vermelho. Mulher minha… E, após o “tira – não tiro” traumático demais para uma garotinha, minha mãe não cedeu e saímos.
Não me lembro qual foi o nosso destino naquela tarde, mas sei que resultou nesta fotografia 3x4 para a qual eu olho diversas vezes. Inclusive, agora.
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Desde aquela época, eu amo o fato de a minha mãe ser uma mulher que usa batom vermelho, embora eu não entendesse o que isso significava.
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Foi quando eu tinha sete anos que meus pais se separaram.
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Hoje, eu tenho 35 anos e o meu filho tem sete meses. Talvez, sete seja um número que também queira me dizer algo.
Não há nenhuma fotografia do meu filho aqui, embora tudo denuncie a sua existência. Algo de brinquedos espalhados pelo chão, mesmo neste espaço que é meu e do meu trabalho (ao escrever, noto que meu não existe mais) e de uma urgência por escrever antes que ele acorde antes que ele chegue antes que ele chore antes que ele peça pela minha presença. A presença da mãe.
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Minha mãe não escrevia. Tampouco tinha, nessa mesma idade que compartilhamos, um espaço para chamar de seu.
Em vez disso, ela limpava as casas de mulheres muito parecidas comigo – exceto pelo tom de pele.
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Quando eu tinha sete anos, minha mãe trabalhava na casa de uma professora que, assim como ela, tinha três filhos. A professora nunca estava em casa. Minha mãe era quem sempre estava. Limpando, lavando, cozinhando, servindo, escutando, aconselhando, cuidando. Era quase da família.
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Minha mãe era “quase-da-família” daquela família branca. Quase. E era muito, da minha – embora seu tempo se dividisse de forma tão injusta entre eles e nós, entre eles e eu. O que lá era trabalho, na nossa casa era laço: diariamente, desfeito pela estrutura social e refeito.
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Ser de/era de: a fala denuncia uma herança escravocrata. Aquele alguém que não é alguém, que é coisa que pertence a alguém que é, de fato, alguém.
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Durante a escravidão, era o ventre de onde havia saído que determinava se aquele bebê negro que nascia seria ou não escravizado. Isso significava que: se a mãe era livre e o pai escravizado, o bebê seria livre; se a mãe era escravizada e o pai livre, o bebê nascido seria escravizado. Em ambos os casos, o bebê herdaria o destino de sua mãe.
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Recentemente, conheci a história de Ambrosina, uma mulher escravizada durante o século XIX. Ambrosina era uma ama de leite e foi acusada de não amar o filho do patrão, que faleceu aos dois meses de idade, e de não amamentá-lo suficientemente, reservando para o seu próprio filho uma porção do leite que saía dos seus seios. Ela disse, em sua defesa, que só amamentava seu filho à noite; durante o dia, ele mamava na mamadeira. Mesmo assim, Ambrosina foi condenada. Por coincidência, os dois bebês se chamavam Benedito.
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Muitas vezes durante o dia, eu paro e olho a fotografia da minha mãe. Às vezes, quando meu filho está aqui, nos meus braços, e eu o amamento. Forço a mirada para encontrar aqueles fios invisíveis que nos mantêm e nos separam. O que me fez não cumpridora do destino da minha mãe?
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Numa tarde, eu caminhava com o meu filho, colado ao meu corpo com a ajuda de um sling, pelas ruas do bairro onde moramos. Quando avistamos uma das senhoras brancas tão comuns por aqui, ele ficou curiosíssimo. Nos cruzamos em direções opostas, ele sustentou o olhar. A senhora, então, empreendeu uma conversa de muitas perguntas sobre o desenvolvimento e os hábitos do meu filho, que eu respondia com a verdadeira paciência que eu não tenho, mas firme, até que sua última questão me acertou em cheio e a minha voz saiu da boca como um fiapo.
Ele é seu?
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Isso aconteceu dias após um rapaz negro, que recolhe doações para uma clínica que acolhe pessoas que querem se libertar do vício em drogas, tocar a campainha da nossa casa. Prontamente, saí do escritório onde estou agora e onde guardo tanto de mim, me desvencilhando dos brinquedos pelo caminho, e o atendi. Ao me ver, ele pediu: posso falar com a dona da casa?
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É nesses momentos, principalmente, em que me volto à fotografia 3x4 da minha mãe. O que é ser mãe? E além: o que é ser uma mãe negra? É esta a pergunta, específica, que eu me faço há sete meses. É esta a pergunta, específica, que eu faço quando te encaro, mãe. Aparentemente, não é tão simples. Ter um filho não basta para respondê-la.
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Olho o passado para me fixar ao presente e ao futuro. Se encontro os fios que nos mantém, eles parecem ultrapassar, sem fim, a nossa idade, o nosso corte de cabelo, o nosso batom vermelho e os brincos que balançam. Se o que encontro são os fios que nos separam, rompidos, a memória me leva para alguns versos de Lucille Clifton me lembrando de que eu não tive modelo. Que nós não tivemos modelos. Estamos nos tornando a resposta.
Extra:
Leia também os textos Poetas negras brasileiras e O corpo na poesia de Lubi Prates.
LUBI PRATES, poeta, tradutora, editora e curadora de Literatura. Tem quatro livros publicados (coração na boca, 2012; triz, 2016; um corpo negro, 2018; até aqui, 2021). um corpo negro foi contemplado pelo Proac com bolsa de criação e publicação de poesia. Além de ter sido finalista do 4º Prêmio Rio de Literatura e do 61º Prêmio Jabuti, ele foi traduzido e publicado na Argentina, Colômbia, Croácia, Estados Unidos e França; com publicação na Alemanha, Itália, Suíça e Portugal prevista para 2023 e 2024. até aqui foi finalista do 64º Prêmio Jabuti. Tem diversas publicações em antologias e revistas nacionais e internacionais. Coorganizou os festivais literários para visibilidade de poetas, [eu sou poeta] (São Paulo, 2016) e Otro modo de ser (Barcelona, 2018). Também participou de outros festivais literários no Brasil, em outros países da América Latina e da Europa. É sócia-fundadora e editora da nossa editora e ocupou a mesma posição na nosotros, editorial entre 2016 e 2022. Traduziu Poesia completa, da Maya Angelou, e Zami: uma biomitografia, da Audre Lorde, entre outros livros. Dedica-se a ações que combatem a invisibilidade de mulheres e negros. Atualmente, é doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento Humano, na Universidade de São Paulo.