Expoente de uma nova geração de artistas que adensou as discussões sobre corpo, gênero e sexualidade no Brasil, Linn critica o modo como a mídia e o mercado excessiva e continuamente demarcaram a sua música com rótulos como arte trans, negra, periférica e marginal. Para ela, esse modus operandi não apenas limita a potência de seu discurso como reencena dinâmicas escravistas. “Fica indissociável separar o meu corpo do meu trabalho, ao ponto em que meu corpo se torna um trabalho. É o meu corpo, a minha vida que se torna vendável, rentável e lucrativa. Assim como os corpos da população negra que estavam ali rendidos nesses campos escravistas, agora é o meu corpo vendido nesse terreno de uma plantação cognitiva”, analisa.
Essas vivências e reflexões perpassam Trava Línguas, o novo álbum da artista, realizado ao lado da produtora musical Badsista e da percussionista Dominique Vieira e lançado com patrocínio do edital Natura Musical. Com faixas em homenagem à poeta Stela do Patrocínio e Xica Manicongo (considerada a primeira travesti do Brasil), o disco traz novamente a linguagem como um campo de batalhas. Uma imersão poética que busca construir novos falares para inventar as possibilidades de uma vida para além dos limites da violência colonial e patriarcal.
CONTINENTE Muitas pessoas – que gostaram do disco – comentaram nas redes sociais que Trava línguas é “mais macio, mais leve”, como se fosse um trabalho menos incisivo. O que você achou dessa recepção? Gostaria também que comentasse sobre a associação entre a Linn artista e a Linn militante/ativista política. Parece que você ocupa um lugar em que a representatividade às vezes pode ser um peso, no sentido de que as pessoas esperam um certo discurso seu. Em algum momento você sente que essa expectativa bloqueia o seu fazer artístico? Até que ponto a Linn militante informa e nutre a Linn artista e vice-versa?
LINN DA QUEBRADA Sobre essa recepção, eu questionei no Twitter tentando entender do que é que as pessoas estavam gostando no álbum e com o que elas estavam mais surpresas. E por mais que eu soubesse que de alguma forma a recepção fosse vir por essas direções, confesso que eu fiquei ainda surpresa pelos comentários que dizem respeito a uma “evolução musical” que vem acompanhada de uma linguagem que usa menos palavrão. Eu acho que algumas vezes essa ideia parte de um pensamento elitista, no qual não usar palavrão seria estar mais inserida em uma linguagem formal e formalizada, que de alguma forma suaviza o discurso. Mas eu não sinto necessariamente a suavidade por esses lugares. Na verdade, eu sinto que há mais uma capoeira mental e uma capoeira musical, sonora, em uma dança que se estabelece como luta – e numa luta que se estabelece como dança. Porque eu sinto que o que estou dizendo é tão cirúrgico e necessário quanto o que foi dito com Pajubá. Só que aquilo que eu disse com Pajubá estava em um outro momento, em um outro lugar, em um outro portal de entrada. Acho que essa maciez pode ser lida por conta de um desconforto menor na recepção de quem ouve por parte de uma linguagem que soa menos agressiva. Mas acredito que eu esteja dizendo coisas cortantes mesmo, agudas, envolvidas em uma sonoridade um pouco mais leve.
Por exemplo, em I míssil, em que eu falo da minha relação com o mercado, por mais que eu esteja cantando isso de uma forma “doce”, estou falando de uma relação de ansiedade. Uma ansiedade que deixa a minha boca seca, que deixa a sensação de vazio, de uma relação que dói e que corta… Não é uma relação gostosa. E a maioria das pessoas que ouve essa música traduz isso numa relação amorosa, numa relação afetiva. Eu procurei jogar muito com a contradição neste álbum. A contradição me interessa. A contradição das coisas que eu estava trazendo no álbum, envolta numa sonoridade que estrategicamente procura aproximar quem ouve, para que com essa aproximação eu fizesse com que as pessoas me escutassem e, então, se perguntassem e percebessem o que é isso que elas estão ouvindo. Porque eu percebo uma certa aversão da maioria das pessoas, que quando ouve o palavrão já se recusa a ouvir o resto das músicas e entrar em contato com a obra.
Linn da Quebrada em cena do documentário Bixa travesty (2018)
CONTINENTE Você pensou o disco como uma espécie de Cavalo de Troia.
LINN DA QUEBRADA Meio como um vírus… É, seria como esse Cavalo de Troia sim, porque é um presente. E com uma aproximação que não fosse uma relação enganosa, porque está tudo ali, já está tudo dito. Mas é necessário uma atenção e ouvidos atentos também para que a gente perceba a linguagem. A linguagem é um campo em que me interessa batalhar. É na linguagem e é pela linguagem. Tanto que os meus dois álbuns já trazem essa conotação linguística no título. Pajubá enquanto uma linguagem de resistência das comunidades TLGB e Trava Línguas como essa língua onde se trava uma batalha. Por isso o meu objetivo em jogar esse jogo de uma outra forma e com outras estratégias.
E isso tem a ver também com esse lugar que de uma certa forma é lido como militância. Por quê? Eu entendo que há cinco anos, com o Pajubá, eu utilizei minha narrativa, minha história, nossas feridas e tudo aquilo que nos era apontado como fragilidades – a marginalidade, a precariedade, ser preta, trans, travesti, o feminino no meu corpo, todas essas marcações – eu usei para criar fissuras. Encontrar brechas e criar rachaduras para que a gente pudesse adentrar esse mercado de trabalho. Daí o mercado age pela lógica da inclusão pela exclusão. Ele permite – entre aspas – que a gente adentre esse terreno e crie um novo território. Um pequeno território onde ele coloca toda a diversidade ali, para que não circule por todo o mercado. Nos coloca dentro de um pequeno cercadinho para que as trans, pretas, LGBTs disputem entre si esse espaço, essa representatividade – que foi justamente uma das principais ferramentas para que a gente entrasse nesse mercado.
E é uma inclusão pela exclusão porque nos mantém marginalizadas, nos mantém isoladas desse mercado e cria essa categorização que nos limita e que limita também a escuta de quem nos ouve. Porque então quem nos ouve, não ouve como música – ouve como militância, como música LGBT. Isso é uma hipocrisia porque, se a gente aceita essa categorização de música LGBT, é necessário uma música cis heterossexual. E, se há uma categorização de música negra, é preciso ter uma categorização de música branca. Senão, o que acontece é um centro universal que permanece sem nenhuma marcação. É um centro que se supõe universal, neutro, que consegue circular por todos os territórios livremente. E nós somos marcadas e categorizadas. Para mim, é de alguma forma hipócrita ou no mínimo ingênuo nos marcarem enquanto arte política, porque todas as coisas são políticas, tudo que está se fazendo está inscrito em um terreno de disputa política. E eu acho que estar nesse lugar é um fardo. Não é um fardo pesado, necessariamente. Porque eu me inscrevo para isso. Mas em algum momento isso passa a ser limitador, sabe? Porque é como se nos sublinhassem e nos deixassem circunscritas e enclausuradas pela nossa própria identidade. Então eu só posso ser isso e essas pessoas esperam que eu faça isso. E não se permitem ouvir o meu trabalho ou ter uma relação com o meu trabalho que foge também dessas categorizações e desse lugar redutor.
Porque eu entendo que o principal privilégio que a branquitude tem é esse privilégio à abstração, esse privilégio de criar qualquer outra coisa. Esse privilégio de criação a partir da imaginação e que, a partir disso, tem a possibilidade de instaurar os seus projetos de mundo de forma muito dissimulada, pois não está circunscrita num terreno reconhecido como algo que é branquitude que produz, que tem projeto político. E ela nos mantém distraídas e ocupadas justamente nos categorizando, enquanto eles são livres para dizer que o que eles fazem não é ideologia de gênero, sendo que o que eles fazem é justamente nos coagir a um projeto político e a um modo de existir no mundo – e quando a gente inscreve as nossas histórias, o que a gente quer, os nossos desejos, os nossos afetos, isso é rotulado e limitado a partir de um olhar.
CONTINENTE Em Enviadescer, um dos seus primeiros sucessos, você criou um verbo que descreve o tornar-se viado e um outro modo de ser, de existir e de produzir saberes. Depois veio o álbum Pajubá e agora o Trava Línguas, que não é só a língua travada, mas também a língua das travas (travestis). Poderia ser dito que você trabalha numa lógica da poesia concreta, mas vai além disso, quando se pensa a partir da transexualidade e da negritude, não? A Jota Mombaça (artista interdisciplinar não binária de Natal) tem um texto em que ela comenta sobre isso. Ela escreve: “Eu quis queimar a língua que me havia sido ensinada. Essa língua na qual toda palavra está mancomunada com a reprodução de nossa ininteligibilidade. Somos simultaneamente tornadas incógnitas e levadas a lutar pela linguagem”.
LINN DA QUEBRADA Eu acho que o terreno que eu instauro no Trava Línguas é justamente tentar travar essa batalha numa linguagem que foi construída pelo colonizador para nos colonizar – só que ao mesmo tempo criar essa fissura na linguagem. É justamente trabalhar na linguagem, mas criando outros terrenos e outros imaginários. Porque é como se essa linguagem que nos foi dada e que nós temos incorporada (que nós temos não só nas nossas mãos, mas no nosso corpo todo) fosse a nossa arma pra falar sobre nós mesmas, para criar esse outro terreno e esse outro imaginário sobre os nossos corpos, tentando subverter de alguma forma. Tentar fazer a linguagem dizer outras coisas.
O que eu tento no Trava Línguas é justamente um jogo que parte da repetição, tentando entender se é possível encontrar a repetição na diferença. Mas também – e principalmente – onde que a diferença se torna também uma repetição. E eu vou tentando investigar na linguagem essas possibilidades. Encontrar essas chaves que abrem outros portais, que possam ser por um outro tipo de conexão e por um outro tipo de saber que não só a inteligibilidade, não só esse lugar do discurso que passa pelas academias, pela universidade, mas um discurso que se comunique com todas nós e se comunique com o máximo de pessoas que puder, de forma acessível – eu tenho tentado também buscar isso e construir outro tipo de acessibilidades, outros entendimentos.
E acho que a linguagem nasce como interesse em mim desde quando eu era muito pequena. Lembro de quando estava no pré-escolar e a professora perguntou o que eu queria ser quando crescesse e eu já dizia que queria escrever. De lá pra cá, sinto que eu dei um mergulho muito grande no corpo e teve um momento na vida que entendi que eu escrevia o meu próprio corpo. Que o meu corpo era não só a matéria com o qual eu escrevia, mas a matéria também na qual eu escrevia. É no meu corpo, entendendo meu corpo como um texto e entendendo como eu poderia borrar esse texto. Como eu posso criar outras histórias com esse corpo e ser a dona dessa própria história?
Quando eu era testemunha de Jeová, até os meus 17 anos, a oralidade foi muito presente na minha trajetória. Eu pregava de casa em casa, a gente estudava textos bíblicos, tinha aulas e práticas de oratória. E acho que foi todo esse meu percurso que me aproximou da palavra, mas a palavra que se torna a carne em mim. O verbo que se torna carne em mim. Também foi algo que me amedrontava muito porque os textos que eu li, os discursos aos quais eu tinha acesso, me afastavam do meu corpo. Eles culpabilizavam os meus desejos, os meus afetos. E acho que quando eu vou percebendo a minha possibilidade de escrever e de criar essas entrelinhas, de entender, borrar e criar essa outra escritura, isso me interessa muito. Isso me interessa desde Pajubá, onde eu venho entendendo a necessidade de criar outras palavras. A necessidade de me comunicar com a minha mãe e entender que eu poderia criar com ela o vocabulário comum para que ela entendesse o que eu estava querendo dizer sobre o que eu estava sendo naquele momento. Como eu me explico para minha mãe e como eu confundo a minha mãe também. O que eu faço, a partir do vocabulário dela, daquilo que a gente tem acesso dessa rede de palavras que a gente tem disponíveis. Como eu utilizo essas palavras pra embaralhar esse conhecimento também. Eu acho que assim nasce o cultivo a esse interesse pela linguagem.
Capa do disco Pajubá (edição independente, 2017)
CONTINENTE É que você também teve a linguagem como uma forma de se inventar, não é? Você recebe um nome e um gênero com os quais você não se identifica e desconstrói isso: você foi o Júnior, você se tornou Lina, e você inventa a Linn da Quebrada. No documentário Bixa travesty (2018) você fala como ficou interessada pela forma como o funk produzia um desejo, com suas letras e batidas. Tenho a impressão de que você usa a palavra para se inventar e projetar novas imagens com determinados fins.
LINN DA QUEBRADA Acho que eu utilizo muito a palavra como feitiço. Um feitiço que pode se voltar contra a própria feiticeira. Porque a palavra te diz ser uma reprodução do mundo tal qual ele é. Então, em tese, a gente estaria falando das coisas como elas já são. Mas, na verdade, a gente está instaurando e convocando essas coisas para que elas continuem sendo. Então eu crio o desejo pelo feminino, eu crio uma coragem, eu invento forças, eu invento coletividade. Eu crio a possibilidade do encontro e essas coisas passam a acontecer. Acredito muito nessa instauração do feitiço.
CONTINENTE Uma das faixas mais marcantes do disco é Eu matei o Júnior. Ao mesmo tempo, em Pense & dance, você exalta o ser travesti, mas também comete um “deslize”. Você fala: “Ai, que voz de doido… De doido não, voz de doida!”. Você contou que uma proposta do disco também é trazer a contradição. O quanto de fato você “matou o Júnior”?
LINN DA QUEBRADA Eu não tenho raiva nenhuma do Júnior, ele foi ótimo. Tenho fotos dele aqui, guardo ele com muito carinho. Mas o Júnior se ofereceu em sacrifício. Ele oferece o seu corpo para incorporação e para que eu possa continuar existindo e estar aqui hoje presente. Há coisas que morrem para que outras possam vir a nascer. Júnior morre e, a partir das suas cinzas, acredito que posso existir. E com certeza há muita coisa do Júnior em mim. Mas o Júnior mesmo deixou de existir. É preciso encarar o fim das coisas e também tenho pensado muito nisso. Encarar o fim sem finalidade alguma, assim como o fim do mundo como nós o conhecemos. É preciso que a gente encare esse fim, que a gente veja, que a gente consiga imaginar esse fim sem pensar no que vai vir depois. Porque só assim eu acho que é possível haver um movimento, sabe? Só assim é possível que a gente, de alguma forma, destrua os pilares que mantêm o mundo como ele se sustenta hoje.
CONTINENTE Nesse disco você fala de ancestralidade e resgata figuras como Xica Manicongo (considerada a primeira travesti do Brasil). Mas a ancestralidade também tem sido essa cerca pela qual o mercado inclui e exclui artistas negros, limitando a obra deles. E na música Dispara, você canta: “Nem tudo que vende vem de mim ou vem de nós – é ancestral”. Me parece uma crítica a esse ideal mercantilizado de ancestralidade.
LINN DA QUEBRADA Sabe o que me lembrou isso? O texto da Jota Mombaça, o Plantação cognitiva. Eu até abri aqui (no computador). Ela cita um verso do Baco Exu do Blues, em que ele fala: “Meus ancestrais todos foram vendidos, deve ser por isso que meu som vende”. E deve ser por isso que o meu som vende também. Esse verso que você citou é um que eu gosto muito. “Nem tudo que vende vem de mim ou vem de nós” Gosto muito da impossibilidade da linguagem traduzir isso. Porque eu quero realmente dizer que eu não sei se vende a mim, se vende eu, se é capaz de me vender e se é capaz de nos vender. Porque eu quero instaurar o terreno do mistério…
Eu percebo que, quando nos atribuem todas essas categorizações – negra, trans, travesti, marginal, periférica –, o que está à venda não é a minha música. Quando eles falam de música LGBT, música trans, música negra, eles não estão falando da minha música. Qual é a característica dessa música que faz ela ser trans? Essa música fala da minha narrativa, assim como as músicas heteronormativas falam das narrativas deles. O que eles estão categorizando e marcando com ferro em brasa mais uma vez é o meu corpo: trans, travesti, marginal periférica. E mais uma vez, então, o que está à venda sou eu. Nessa espiral do tempo, nessa ancestralidade presente que se traduz em mim, é o meu corpo que segue à venda. E, por isso, isso é tão cruel. Porque fica indissociável o meu corpo do meu trabalho. O meu corpo se torna um trabalho. É o meu corpo, a minha vida, que se torna vendável, rentável e lucrativa. Assim como os corpos da população negra que estavam ali rendidos nesses campos escravistas de plantação de algodão, de cana e tudo mais; agora é o meu corpo vendido nesse terreno de uma plantação cognitiva. E por isso essa reencenação escravista.
É isso que eu nego. E é isso que estou dizendo, quando canto que “nem tudo que vende vem de mim ou vem de nós”, porque eu me recuso a ser vendida nesse lugar, porque eu preciso viver! Eu amo o meu trabalho, mas eu não sou o meu trabalho. Eu tenho muitas outras frequências e possibilidades para além do meu trabalho. Eu não quero ser esgotada. Se os nossos ancestrais sonharam com esse lugar que estamos ocupando hoje, eu não vou me permitir ser vendida mais uma vez e ser a minha própria moeda de troca. Eu preciso que a minha obra seja a tradução da minha generosidade para o mundo. É a minha obra, que não sou eu. E acho que, de alguma forma, é isso que eu tento instaurar com esses versos.
CONTINENTE Era isso que estava tentando dizer no começo da nossa conversa, quando falei de uma certa trava e do que se espera de uma Linn “militante” e da imagem que se cria disso.
LINN DA QUEBRADA E o que se espera da militância, né? As travas das quais a gente fala fecham, mas elas também abrem portais. Trava não é só o que tranca. A trava é aquilo que tem a possibilidade de abrir. A trava é aquilo que protege, como a trava de segurança, ou seja lá o que for. Mas é aquilo que tem a possibilidade de abrir. E o que eu estou querendo abrir é a possibilidade de compreender que a militância não tem de ter uma fórmula. Não existe uma forma estabelecida para que eu lute pelas coisas nas quais acredito. A militância em que acredito se faz justamente numa reelaboração de estratégias que consigam fugir à captura desse capitalismo, que é um capitalismo elástico, que tenta capturar tudo à sua volta para fazer que se torne um outro produto, e que se torne rentável. A minha militância se faz nessa capoeira física e mental de conseguir driblar essa captura, de fugir dela.
O que eu sinto vontade de tatuar agora no meu rosto é o “F” de fujona (hoje, Linn tem “Ela” tatuado na têmpora), assim como foi queimado em brasa na pele da população de pretos fujões e das pretas fujonas. Estou fugindo e continuo fugindo a essa captura do mercado. Quando o mercado tenta me capturar enquanto militância para me limitar, me reduzir e me enclausurar mais uma vez – porque o que eles tentam fazer é nos enclausurar mais uma vez – e dizer: “Aqui é o terreno para você fazer a sua militância, o lugar onde você pode fazer a sua revolta”, eu digo: “Não, não é aqui”. Então eu vou dar um jeito de fugir. Eu não vou deixar de fazer militância. Mas você não vai conseguir entender o que é isso que eu estou fazendo, porque o que estou fazendo é um mistério. E por isso preciso continuar elaborando esse mistério.
CONTINENTE E, para você, qual lugar estratégico que a arte ocupa na reelaboração desse mistério?
LINN DA QUEBRADA Este ano entendi que a arte é uma desgraça. A arte é uma desgraça porque não existe a arte enquanto uma entidade. Existe o meu fazer artístico. A arte é uma indústria e agora, dentro dessa indústria, percebo o quanto a arte, na verdade, é mais uma ferramenta dessa captura. Ela é mais uma dessas ferramentas de manutenção desse sistema. Por muito tempo eu falei que a arte salvou minha vida, que a música salvou minha vida. Não, o meu fazer artístico salvou minha vida. A arte tirou muito de mim. A arte enquanto indústria me adoeceu mentalmente e psicofisicamente. A arte, que não estava preparada para o meu corpo e para as coisas que eu estava inaugurando (não no sentido de pioneirismo, mas inaugurando porque era o meu corpo inaugurando naqueles lugares), fez com que acreditasse que eu estava despreparada para ocupar aqueles espaços. Criou inseguranças em mim e criou essas engrenagens, essas armadilhas que foram me adoecendo. E por isso hoje eu entendo que a arte é uma desgraça. E por isso estou aqui para inaugurar o meu golpe dentro dessa indústria das artes. Para fazer da arte um salto… Ou melhor, para dar um salto sobre a arte, sabe? Eu não consigo nem elaborar isso porque estou exatamente nesse movimento. Esse é o movimento em que estou agora. Acabei de entender que a arte é uma desgraça e eu estou querendo elaborar agora o meu golpe sobre essa indústria para tomar de volta aquilo que é meu.
CONTINENTE Algum ou alguns eventos em particular lhe despertaram essa noção de que a arte é uma desgraça?
LINN DA QUEBRADA Vou falar uma coisa bem sincera: nem sei se eu posso falar todas essas coisas… Porque é duro dizer tudo isso, né? E acho que eu tenho que ter um cuidado, e você também vai ter que ter um cuidado na elaboração de tudo isso, porque a gente não pode revelar todo o mistério. Essa é a coisa. A gente não pode revelar todo mistério. Assim como na diáspora, nós fomos separadas e toda essa confusão se dá em torno da comunicação da linguagem que a gente teve que elaborar – assim como Pajubá e assim como várias outras coisas – para que a gente conseguisse se comunicar em segurança, eu sinto que, de alguma forma, é isso que a gente tem que criar. Porque tudo que a gente dá em uma linguagem inteligível para todas, o mercado captura. O mercado prevê os nossos movimentos e controla os nossos passos.
Por isso que tenho acreditado tanto no mistério, nesse mistério que está dentro da cabeça, que continua a se movimentar. E esses meios artísticos, todas essas indústrias… O que eu sinto é que eu fui terceirizada. Até hoje a gente não entende, a gente não sabe qual é exatamente o jogo que se estabelece. O que sinto é que tomam a minha narrativa, tomam o meu discurso. Alguém assume ser patrono desse discurso e viabiliza. Mas essas coisas não são minhas, eu passo a receber um cachê por elas. Eu me sinto uma escrava de ganho também de alguma forma, porque eu saio, trabalho, recebo uma forra e outra pessoa recebe a partir de tudo isso que eu falo. Eu não tenho esses meios de comunicação. Outras pessoas detêm os poderes sobre tudo aquilo que eu produzi.Nada é meu. Eu sou a pessoa que é o canal de tudo isso. E recebo apenas uma pequena parcela terceirizada por tudo isso que o meu capital intelectual e criativo produz.
CONTINENTE Você costumava dizer que fez da música a sua arma e que o seu primeiro alvo era você mesma. I míssil, música que foi o single do disco, tem um jogo de palavras que transforma a arma (o míssil) em uma saudade ou sentimento de falta (do inglês “i miss you”), que é um afeto que atravessa os clichês da música pop mainstream. Essa inversão – da arma para o sentimental – é sintoma de uma transição na sua carreira e na sua poética?
LINN DA QUEBRADA Acho que o disco, como um todo, marca um novo momento de como uso a palavra, onde chego e de onde quero chegar com a palavra. E I míssil traduz essa minha relação com o mercado. Antes de tudo, me lanço para esse mercado como um míssil, e um míssil também pode destruir.
Foto: Divulgação
CONTINENTE Só um parêntese: você falou que essa música era sobre a sua relação com o mercado da arte, mas eu não tinha percebido isso ouvindo o álbum. Então essa minha pergunta surge da escuta prévia do disco.
LINN DA QUEBRADA Exatamente. Já no começo, ela fala sobre divagar mais e divulgar menos. Eu já falo sobre o lugar que meu corpo ocupa e de como quero inventar um outro lugar. Eu quero poder divagar mais e construir outros pensamentos, divulgando uma outra coisa que não eu. A música é uma descrição desse adoecimento pelo qual fui atravessada. A confusão mental de como o mercado me atravessou e de como fui atravessada por ele – e de poder fazer da pausa um pouso, entender que a pausa também é movimento, que não é só essa superprodutividade. E eu me lanço pra esse mercado porque, contraditoriamente, preciso desse mercado, preciso ganhar dinheiro. Mas me lanço como um míssil. E, ao mesmo tempo, quando não estou trabalhando, sinto falta disso. Porque esse mercado cria essa sensação em nós de que, para existir, você precisa ser alguém. E o que você faz da sua vida? Geralmente, a gente responde: eu sou cantora, eu faço isso, eu faço aquilo. E eu não sou só isso, a minha vida não é só isso. Eu cuido da minha cachorra, tenho uma relação… Mas o que a gente fala que a gente faz da vida é o nosso trabalho. A nossa vida se resume a esse trabalho e, se a gente não trabalha, sente falta disso. Acho que essa música trata dessas contradições.
CONTINENTE E tem Medrosa, uma música que foi gravada por Maurício Pereira e que você regrava fazendo uma ode a Stela do Patrocínio…
LINN DA QUEBRADA (Interrompendo) Primeiro vamos falar sobre Stela do Patrocínio.
CONTINENTE Já ia falar sobre ela, mas fica à vontade!
LINN DA QUEBRADA Stela do Patrocínio é tida como poeta, como artista. Mas, na verdade, Stela do Patrocínio foi psiquiatrizada, patologizada e encarcerada pelos últimos anos da sua vida na colônia Juliano Moreira. Stela do Patrocínio e os seus falatórios são registros da violência psiquiátrica e de toda a violência colonial pelo qual o seu corpo foi atravessado também. As falas de Stela que foram registradas por psiquiatras, denotam toda a violência à qual o corpo dela foi submetido e pelo qual a branquitude produz livros, produz peças de teatro, produz música, álbum e tudo mais a partir desse registro de violência.
Eu conversei muito com a Diane Lima e com algumas pessoas que estavam envolvidas no seminário A História que fala da Stela, sobre a Stela do Patrocínio. E o grande dilema no qual eu me coloco é justamente como que a gente pode falar de uma obra da Stela se, quando em vida, ela não estava produzindo obra – ela estava encarcerada. Isso foi tirado da Stela violentamente, ainda que numa dissimulação de violência. Então, como que a gente pode falar que esses ditos são obras da Stela, se ela nem sequer sabia que ela estava sendo artista? Ela foi transformada em artista depois da sua morte.
Entrei em contato com os falatórios da Stela pela obra da (atriz e diretora) Georgette Fadel, que era musicada pelo Lincoln Antonio, que registrou as melodias para a peça Entrevista com Stela do Patrocínio e o Maurício Pereira gravou. Tanto que, quando eu vou registrar a música, quem eu tenho que colocar no registro junto comigo é o Lincoln, que é outra pessoa branca que detém um desses direitos da música. Apesar de a música ser muito diferente, ele vê a música dele ali e isso faz com que esses registros ainda tenham que passar por ele. O que me deixa mais angustiada é justamente que toda branquitude detém os direitos dos falatórios da Stela. Transforma os falatórios da Stela em obra, modificam e constroem sobre isso um olhar romântico, quando na verdade ninguém esteve interessado necessariamente no corpo da Stela.
Estou dizendo tudo isso porque tive muito cuidado em pensar como registraria isso de uma forma para mostrar que essa canção que estava fazendo vem dos falatórios da Stela. Eu me comprometi a voltar o dinheiro das plataformas dessa música para a luta antimanicomial e para esses grupos de escuta que têm se debruçado sobre Stela do Patrocínio. Me comprometo a continuar caminhando com Stela, e não utilizar a Stella de forma extrativista, fazendo essas músicas a partir do que ela disse e de toda violência a qual ela foi submetida, para depois abandonar a Stela. Acho que é preciso deixar a Stela descansar também. É preciso que a gente deixe de hipervisibilizar a Stela do Patrocínio também, em algum lugar. Porque, como a própria Stela fala, ela falou em excesso sobre acesso. Foi examinada, iam lá e conversavam com ela para que ela falasse mais e mais e mais… E eu decido andar junto com a Stela porque o meu corpo também ocupa um lugar parecido com o dela, que é esse lugar hipervisibilizado. É esse lugar em que eu sinto que fui estuprada midiaticamente durante estes últimos cinco anos em que sou posta para falar em excesso sobre acesso, a me mostrar, a falar sobre as minhas feridas, sobre as minhas marcas, sobre quem eu sou, sobre o que eu penso, sobre quais são os meus planos, sobre o que eu imagino… Sobre o caralho a quatro. E isso é o que vai me adoecendo também nesse mercado das feridas coloniais. E é nesse lugar radicalmente oposto, mas complementar, de diferença, que eu me encontro com a Stela. E por isso decido caminhar com ela.
CONTINENTE Um verso que me chama atenção nessa música, ainda mais depois de saber da sua relação com Xangô, é o “eu não sei fazer justiça”, que é como um impasse diante do mundo e das complexidades da vida. O que você sentiu gravando esse verso tão forte?
LINN DA QUEBRADA Esse verso e essa música dizem respeito principalmente a essa maldição da representatividade. Nunca prometi a salvação. Não acredito em salvação. Nunca acreditei e não acredito em pretos no topo, em travas no topo ou em traviarcado, porque eu entendo que o topo é muito problemático. Se há um topo instaurado é porque há uma base que o sustenta. E, ainda assim, contraditoriamente, todo o nosso trabalho nos leva a acreditar que, se eu conseguir, outras como eu também podem conseguir — e isso é uma mentira! Isso é uma mentira e nós somos cobradas por isso! Porque as imagens e as empresas nos usam para amenizar a raiva, para distrair. As empresas, as instituições e as corporações nos usam e se apropriam da nossa imagem. E a gente de alguma forma se permite, contraditoriamente, acreditar que eu não estou depositando o meu corpo inteiro nesse lugar. Eu sinto que se cria essa imagem de que agora você tem que levar todo mundo junto. “Você prometeu e agora você tem que dar conta da gente.” Mas a gente não dá conta! Mal dá conta de se manter! “Mas e aí, e agora que você tá aí, Linn da Quebrada? E eu que tô aqui precisando de não sei o quê? E a gente, que continua na situação mais marginal? E aí, Linn da Quebrada?” Essa é a contradição.
E eu não sei fazer justiça. Não sei como fazer essa justiça, principalmente porque essa justiça, essa estrutura, não nos quer. Ela é uma estrutura que, mais uma vez, funciona sob a ordem da inclusão pela exclusão. Uma de nós vai passar, mas as outras, não. Por isso essa fronteira intransponível a qual eu me coloco.
Tem coisas que a gente não dá conta. Eu não quero dar conta, eu não posso dar conta, eu preciso assumir que eu não dou conta. Isso também tirou muito da minha sanidade mental, de alguma forma. Porque parece que a gente se mantém em dívida. E essas são coisas que a gente não fala, porque o sistema também nos desarticula. Ele vai nos isolando, ele vai nos afastando. Ainda que eu sinta que o nosso pensamento.... Eu não sei, todo momento eu fico pensando sobre isso, porque a gente tá articulando o nosso pensamento, a gente está falando. Mas, quando a gente vai adentrando em determinados espaços midiáticos, a nossa fala também vai sendo moldada para que caiba ali. Alguns programas me chamaram e falaram assim: “Se você for cantar essa música, você vai ter que tirar isso. Você escolhe: ou você muda essa palavra e entra na casa de milhares de pessoas em pleno horário nobre ou você não entra. O que você prefere?”. Então são escolhas e negociações que a gente vai tendo que fazer e vai tendo que aprender a driblar e jogar um jogo para o qual a gente não foi preparada – e que eles também não estão preparados para a gente. É um jogo de risco.
A produção musical do álbum Trava Línguas foi compartilhada com Linn, a DJ BADSISTA (acima) e a percussionista Dominigue Vieira (abaixo). Fotos: Divulgação
CONTINENTE E você nem sempre quer entrar, certo? Aí entra uma outra questão, que é o fracasso, que você já mencionou algumas vezes ser um interesse seu. Qual a sua percepção sobre o fracasso?
LINN DA QUEBRADA Meu interesse no fracasso é justamente a falha, o erro. Como eu já disse algumas vezes, não sou filho, nem sou filha – sou a falha. A falha desse sistema. E foi justamente através de todas as coisas que me eram apontadas enquanto fragilidades, enquanto frescuras (eu gosto muito dessa palavra também, free escura, tem essa conotação de liberdade pura também) que me construíram. Frescura diz respeito às coisas que a gente pode abrir mão, né? Mas as minhas frescuras naqueles momentos eram aquilo de que eu não poderia abrir mão. E foi através dessas fragilidades e fracassos – seja a cor da minha pele, seja o feminino no meu corpo, seja o meu pensamento inflexível, segundo algumas entidades – que eu fui construindo essas fissuras. Então me interessa o meu compromisso com o fracasso, com o erro.
E isso me foi tomado também com o tempo, porque eu passei a ter medo de errar. O que fazia com o que eu fosse ouvida não era a minha voz e a virtuose que carregava pelas minhas cordas vocais. Mas, ao contrário, era justamente aquilo que eu estava dizendo, o que estou dizendo e como estou dizendo. Mas isso fazia com que o que eu produzisse fosse menos música. Fosse uma outra coisa, fosse uma antimúsica, de alguma forma. Era um fracasso em algum lugar. E o meu fracasso denuncia o fracasso desse sistema. E é isso que me interessa. E agora o que eu sinto, o que eu estabeleço mais uma vez é esse compromisso com o fracasso para que eu possa continuar errando, para que eu possa continuar improvisando, experimentando as formas e descobrindo outras fórmulas.
Acho curioso quando algumas pessoas, muitas pessoas, veem o meu trabalho como o flop do pop, apesar de eu ter ido pra mais de 15 países, de ter chegado com o meu trabalho musical e com a minha atuação em lugares em que eu era proibida. Ainda assim é como se eu tivesse fracassado. Mas é nesse fracasso que eu me estabeleço. É por um investimento em outras fórmulas, porque se eu for cantar – e olha que eu investi em cantar, em trazer melodias, em trazer experimento vocal neste álbum – ainda assim a fragilidade que eu carrego no meu corpo está atrelada a algo que me abre portas, que trava línguas, que abre mentes e que faz com que uma outra sensorialidade seja aguçada. Porque não é só a minha voz. Você não vai ouvir a minha música e vai conseguir desmembrar isso de qualquer outro corpo, como se fosse só uma voz. A minha voz nunca vai ser só uma voz. Ela vai ser sempre uma voz incorporada. E uma voz que está fugindo desse controle, mudando de posição. Uma voz que desvia. E é esse o meu compromisso com o fracasso. Eu preciso continuar fracassando.
CONTINENTE Eu gostaria de lhe ouvir falar sobre sonoridades. O quanto o som é importante para você e como ele é construído. Esse novo disco traz outro vocabulário musical, com sons próximos do house e de expressões da música latina.
LINN DA QUEBRADA Quando escrevo as minhas músicas, faço sem base alguma. Então sinto que é uma sonoridade que parte do meu encontro orgânico com a música. Trava Línguas começa a ser escrito, composto e decomposto ainda durante as nossas turnês de Pajubá. E nessas turnês eu passei por mais de 15 países, por mais de 30 cidades. E nisso a gente foi para festivais muito diferentes. A gente tocou no festival Unsound, na Polônia, que foi incrível. Foi um dos festivais que me marcaram intensamente, porque a gente entra em contato com produções sonoras e criações artísticas do mundo inteiro, de pessoas produzindo nas mais diferentes qualidades, com potências muito diversas. E acho que não só o Unsound. Tocar na Berghaim (seleto clube de música eletrônica em Berlim) e em diversos lugares, passar por diversos países e ter contato com sonoridades, ritmos e frequências tão diferentes fez com que eu incorporasse também outros ritmos em mim e criasse o desejo de investigar essas outras sonoridades.
O elemento percussivo desde sempre esteve presente em mim e naquilo que me atraía, naquilo pelo qual meu corpo pulsava. A Dominique Vieira (percussionista e assistente de produção do álbum) trouxe referências incríveis não só da percussão, mas também para a produção do álbum como um todo. Ela trouxe a cúmbia e outras musicalidades latinas que me interessaram muito. A Badsista (produtora musical do álbum) estava com essa vontade de trazer a guitarra. Eu estava querendo trazer elementos que me aproximassem da minha mãe, como o carimbó e o forró. A música Amor, amor traz esse lugar do carimbó, com essa outra guitarra que já é um elemento mais percussivo no dedilhar.
CONTINENTE Você fala de carimbó e da música latina, mas isso tudo é bem-texturizado, de modo que vai para um outro lugar, né? Você percebe as influências, mas tem um tratamento das frequências e timbres que leva esse som para outro lugar.
LINN DA QUEBRADA Acho que é porque somos nós fazendo. Tem esse filtro que nos atravessa e que faz com que todos esses elementos não sejam uma referência a qual a gente tenta alcançar. Eles se transformam na referência que passa pela gente, que passa por esse corpo, que por sua vez passou por diversos lugares e que entrou em contato com diversas pessoas. Acho que um exemplo disso é essa playlist que divulguei há pouco tempo no meu perfil e que traz mais de 50 músicas de universos muito diferentes – de Itamar Assumpção a Angela Ro Ro, passando pela própria Ventura Profana e elementos do house music que eu sou apaixonada e queria incorporar no álbum. A gente não ficou buscando as referências, elas já estavam na gente.
CONTINENTE Você começou a se destacar no funk, que é um campo onde mulheres como Deize Tigrona, Tati Quebra Barraco e Valesca abordaram de forma contundente as questões de gênero e sexualidade pelas suas “poéticas da putaria”. Essas poéticas tiveram (e ainda têm) um impacto sobre você?
LINN DA QUEBRADA Com certeza, até porque essas foram as poéticas pelas quais o meu corpo teve mais contato e aproximação. Foi no funk e entendendo o que o funk faz e qual é esse poder radicalmente vertical que ele traduz, dessa criação de desejo, da criação de potências pelo nosso corpo e pelos imaginários que o meu corpo passou e é atravessado. Então eu acho que o funk é a minha escola, é onde eu aprendo, é onde me divirto. É onde invisto o meu corpo e percebo esse uso da linguagem também de uma forma acessível, que brinca com a língua e a subverte, criando novos usos, novos desentendimentos com a palavra e que chega em muitas pessoas. Isso me interessa muito.
CONTINENTE Recentemente, você e a Jup do Bairro entrevistaram (a filósofa da teoria queer) Judith Butler no programa Transmissão, que vocês apresentam no Canal Brasil. E um ponto que chamou atenção nessa entrevista foi a discussão sobre os limites da não violência, que, por sua vez, parece se conectar com a percepção das pessoas sobre Trava Línguas ser um disco mais polido e mais suave. Como você vê os limites da resistência não violenta e como você traz isso pro seu trabalho?
LINN DA QUEBRADA Curioso, né? Violento, agressivo…
Jup do Bairro e Linn da Quebrada são apresentadoras do programa televisivo TransMissão. Foto: Divulgação
CONTINENTE São palavras muito carregadas, né?
LINN DA QUEBRADA É, mas eu sinto uma atração por essas palavras, porque acredito que meu trabalho seja uma resposta à violência à qual meu corpo foi submetido durante todo esse tempo. E não só este corpo material, mas todo o nosso corpo simbólico. E acredito que a violência e a agressividade que eu esteja empregando nesse álbum talvez sejam sofisticadas, inclusive para que você não perceba que eu esteja violentamente adentrando nessas casas. E que violentamente eu estou falando “Mate e morra”. O próprio Instagram não deixou que eu publicasse o nome dessa música. Ele derrubou duas vezes a foto da tracklist do álbum, daí eu tive que colocar com asteriscos, porque é considerada uma incitação à violência. E eu estou falando ainda que “Eu matei o Júnior”, e eu estou falando “Dispara”, e estou falando que estou me lançando para esse mercado como um míssil. Mas talvez a violência seja eu respondendo a toda violência a que fui submetida, e agora eu esteja construindo isso de forma dissimuladamente sofisticada para que primeiro eu entre e, depois, eu explique.
GG ALBUQUERQUE, jornalista e doutorando do PPGCOM/UFPE.