O Almério, que agora interpreta a obra de Cazuza, é o segundo dos quatro filhos do chofer de praça Heleno Alves Feitosa e da dona de casa Ana Maria Menezes. Viveu a infância numa casa de chão de cimento e telha, sólida como a família e a estrada de terra batida à porta. Caruaru, o centro urbano mais próximo, estava a esburacados 30 quilômetros da pequena cidade de Altinho de onde seu Heleno transportava diariamente algum vizinho na intenção de ir a um banco, ter uma consulta médica ou comprar um corte de fazenda. Entre os pequenos agricultores e beatas vizinhos, havia a amiga Groselha. Batizada no cartório local como Valdemir e fã de Cazuza como ele, uma transexual que se destacava como marchante no comércio de carnes. “De dia, ela pegava o machado para matar bois e vender. De noite, se montava com um shortinho jeans mínimo e um collant para ir pros assustados, que eram as discotecas improvisadas de lá.” Groselha, como o poeta carioca, moraria para sempre na memória afetiva do cantor.
De um lado da casa da família estava o curral de vacas do vizinho. Do outro, o caminho para o Rio Una, por onde o pequeno Almério andava para encher baldes – e de onde voltava cantarolando as músicas que ouvia no rádio. “Aquela estrada de terra era meu primeiro estúdio de ensaio”, ele ri. Além de fornecer água para as necessidades da casa, o rio abastecia também de brincadeiras os filhos de dona Ana e seu Heleno. Um dia, Almério e Hélida, a única mulher entre os irmãos, ficaram especialmente impressionados com o volume das águas do Una. “Resolvemos atravessar o rio”, ele lembra. “Eu cheguei à outra margem, mas Hélida foi arrastada pela correnteza.”
Naquele momento de agonia, a vizinha vinha por ali pedalando, quando Almério tentava tirar a irmã da água. Groselha mergulhou nas correntezas. Tirou Hélida do Una raivoso e barrento, “deu um baile nos afogados” e levou as crianças para casa. “Groselha era uma figura única naquele cenário. Muito doce, mas nunca engolia desaforo. Se mexesse com ela ou com alguém dela, a casa caía. Eu gostaria muito de um dia poder contar a história de Groselha num documentário”, comenta Almério, que seria, algumas outras vezes, alvo da proteção especial daquela Madame Satã do Agreste. “Ela sempre dizia: se mexer com você, me diga.”
Almério dividia o quarto com Alexandre, onde, mais que abrigo, tinha acesso especial ao humor do irmão mais velho. Encarregado de cuidar dos menores, o primogênito encontrava uma maneira peculiar de alegrar os caçulas entre os poucos brinquedos de uma infância relativamente árida no agreste de Pernambuco. Era, dos cinco, quem mais demonstrava algum pendor artístico. “Ele inventava um mundo lúdico. Alexandre criava novelas, filmes, fazia playlists com as músicas gravadas em fitas cassetes com o que a gente ouvia nas rádios”, lembra Almério. “Eu tinha uns oito anos quando comecei a prestar atenção no que eu ouvia. Sem entender muita coisa, o subconsciente ia captando. Fiquei com o ouvido muito apurado para música por causa do meu irmão.” Alexandre ia trazendo álbuns, como Extra, de Gilberto Gil, praticamente fixado sob a agulha da radiola (“Eu não parava de dançar aquele disco”) e ajudando a talhar a audição apurada que irmão já desenvolvia ouvindo os vinis de Seu Heleno: temas de novela e um título novo de Roberto Carlos a cada ano.
Nas brincadeiras, Alexandre dirigia Almério em roteiros pouco prováveis. “Nas histórias dele, eu interpretava de super-heróis a personagens muito gays!!!”, gargalha. “Ele inventou uma novela chamada Poupone, na qual todos os personagens tinham nomes que começavam com Pou”, ri. “E esse personagem se travestia!!!”. Almério lembra o quanto o incentivo fraterno e despretensioso seria fundamental: “Ele olhava para mim e dizia: ‘Você é o melhor ator, cantor e dançarino que eu conheço’. Fui crescendo uma criança totalmente sonhadora, flutuativa. Hoje, entendo que era uma forma também de a gente varrer as dificuldades”. Pouco tempo depois, a capacidade de Alexandre em fazer Almério e os irmãos flutuarem em suas brincadeiras teria um desafio bem maior que os destinos de qualquer de seus poupones.
Almério ainda bebê, com sua mãe, Ana Maria Menezes, seu pai Heleno Alves Feitosa e o irmão mais velho Alexandre. Foto: Acervo pessoal/ Divulgação
O PAI
Aos 38 anos, seu Heleno era, na memória de Almério, “um homem amado, sempre de camisa aberta no peito e uma grande gargalhada para trás”. Cioso do papel de macho provedor, não queria a esposa trabalhando de carteira assinada. Como pracista, sustentava a família conduzindo passageiros entre Altinho e Caruaru. Se não permitia extravagâncias, os ganhos de motorista garantiam alegrias como um vestido novo a cada passeio semanal para dona Ana.
Naquele sábado, Ana Maria vestia com uma ansiedade a mais seu modelito recém-comprado. Heleno encerrara mais cedo as corridas. Tentava buscá-la a tempo em Altinho para voltarem a Caruaru. Ela, contudo, não conseguiria ver com o marido o show do ídolo Fábio Júnior que era o grande assunto da cidade naquela noite. A Caravan marrom de seu Heleno fora atingida por uma carreta. O pai de Almério não sobreviveu. “Coincidência ou não, antes de receber a notícia, minha mãe diz que um pássaro de mau agouro, conhecido como rasga-mortalha, passou por cima da casa”, lembra o cantor.
Ana Maria Menezes Feitosa ficou viúva com 36 anos e quatro filhos para terminar de criar. Promovido precocemente a arrimo de família, Alexandre teve que ir trabalhar no comércio em Caruaru. Almério, então, assumia a função do mais velho diante dos irmãos. “Tive que assumir a família. Virei o marido da minha mãe e o pai dos meus irmãos.” Aos 13 anos, arrumava também bicos como borracheiro na periferia de Altinho para ajudar a botar comida em casa. Não havia mais tempo para teatrinhos ou flertes com a música. Almério se tornara um menino mudo.
Algum tempo depois, ele se encontra, por acaso, com a então namorada de Alexandre. Ana Paula Marinho lhe mostrou uma canção de amor. “Não sei explicar: voltei a flutuar quando ouvi aquela música.” Não era uma canção qualquer, mas uma canção feita por ela ao violão. “Eu vivia calado, sem conversar. Depois que ouvi a música de Ana Paula, simplesmente passei a ouvir música o tempo todo. Ouvia rádio. Lembro que Adriana Calcanhotto cantava Esquadros na rádio e eu chorava”.
Uma espécie de rito se estabelecia. Quando encerrava cada dia, Almério providenciava um lugar pouco comum onde pudesse estar em paz consigo. “Eu subia no telhado e ficava cantarolando a música de Ana Paula a noite inteira.” A canção da amiga acabaria por impelir sua primeira composição. “Escrevi algo sobre aquela sensação, e ela musicou. Chamava-se Só você, e era uma letra cafonérrima”, ele gargalha. “Naquela hora, eu pensei, nunca mais vou parar de fazer isso. Toda semana, ela vinha e a gente fazia uma música nova.” Nenhum dos dois desconfiava ainda: no futuro, Almério teria em Ana Paula Marinho uma colega para dividir apartamento no Recife e os palcos pela vida. Alguns anos depois de aquele CD de Cazuza que não podia ser ouvido chegar em casa, Ana seria a percussionista de sua banda desde os primeiros barzinhos de Caruaru até as turnês pelo país.
ESTREIA NA NOITE
Dono de um movimentado point na noite caruaruense, Chico Oliveira estava impressionado com a canja de Almério no show de Rogéria, cantora já bem-cultuada no circuito alternativo da cidade. O menino de Altinho tinha 23 anos quando recebeu o convite para ser protagonista de um dos shows do Na Feira, o concorrido Bar de Oliveira ao lado da Prefeitura de Caruaru, cidade onde, abafada pelas alfaias do manguebeat do Recife, uma nova cena de compositores pernambucanos soltava a voz.
Para agradar agrestinos e litorâneos, Almério incluía no repertório standards de FM, como temas de Caetano, Zélia Duncan ou Cazuza, além de petardos do mangue da Nação Zumbi, mas tinha no cancioneiro de contemporâneos e conterrâneos a tônica inédita de sua aparição na noite caruaruense. De repente, o bar de menos de 100 lugares tinha mais de 300 pessoas espremidas para ver Almério imprimir a voz nas composições dos caruaruenses Valdir Santos, Cacá Farias, Therablue, Ortinho ou do veterano Onildo Almeida, o autor da letra de Feira de Caruaru, imortalizada por Gonzagão. Poetas, escritores, gente de TV e teatro passaram a lotar aqueles shows.
A música rendia buchicho, mas não o sustento. Com o Ensino Médio concluído, Almério acabou não indo para a faculdade. Precisava trabalhar. Conseguiu emprego numa banca de revistas. Perto do principal estúdio de música da cidade, a barraca acabaria sendo seu centro de formação. “Eu tive uma espécie de universidade aberta para a vida. Eu lia tudo que vendia. Lembro que vendi o primeiro número da revista Continente para a qual estou dando uma – olha só que ironia!! – entrevista agora”, ele ri. Entre fascículos e revistas, Almério ia ampliando as informações sobre a música já no centro de seu interesse, mas também sobre o próprio corpo. Insubordinado à moral predominante do Agreste, um corpo que insistia em se sentir atraído pelos corpos de garotos como ele.
Almério tinha, instintivamente, o medo de ter que se tornar a vizinha Groselha. “Sim, eu tinha muito medo de ter que ser como ela, de ter que ser forte o bastante para me defender dos ataques e da violência machista de cada dia. Ser gay, para mim, naquele momento, significava ser igual a ela. E eu tinha medo de ser, de ser julgado como ela era.” Ele sabia do risco de ser Groselha no Agreste. “Não era fácil ser uma bicha do interior, porque todo mundo dizia que você estava errado, que você era pintosa. Com as leituras, a banca me deu essa afirmatividade. Comecei a naturalizar o amor, o respeito, enquanto ia pirando com minha sexualidade”, ele lembra. “Vi que o amor e a sexualidade podem ter várias formas, e todas naturais.”
Não por acaso, Almério é um brasileiro cantor nesta segunda década do século XXI. A MPB mais clássica dos anos 1970 e 1980 insinuava muito, mas afirmava pouquíssimo a própria sexualidade – ícone da liberdade setentista, a baiana Gal Gosta, por exemplo, ameaçou processar a carioca Marina Lima por esta ter revelado, em entrevista à colunista Joyce Pascowitch, ter sido iniciada sexualmente pela diva tropicalista aos 17 anos.
Almério faz parte de uma geração da música brasileira cujo amor não apenas ousa, mas faz questão de gritar o nome. Veterano na crítica musical brasileira, o paranaense Pedro Alexandre Sanches sintetiza, num artigo recente, como “a nova geração da música brasileira é a primeira a crescer falando publicamente sobre sexualidade e usa os palcos para reivindicar mais liberdade”. De ombros com Thiago Pethit, Filipe Catto, Silva, Liniker e Johnny Hooker, os dois últimos, aliás, parceiros seus num show de acento queer no último Rock in Rio, Almério tem seu nome listado entre os verbetes desta geração afirmativa. “A ascensão dos cantores gays era apenas o começo de uma pequena revolução, que trouxe muitas surpresas – e muita modernização – aos anos 2010. Ao longo dessa década, popularizaram-se discussões em torno de gêneros sexuais diferentes dos heterossexuais tradicionais”, diz Sanches, autor de livros como Tropicalismo – Decadência bonita do samba (2000).
“Nossa sociedade nos orienta a viver inverdades. Ensinar a multiplicidade dos corpos e das corpas é para ontem. Fazer a sociedade parar de nos agredir tem que ser cantado, gritado, virar refrão, agora e cada vez mais”, Almério pontua. “Aprendi muito sobre isso com a geração das sapatômicas maravilhosas dos anos 1990: Cássia Eller, Ana Carolina, Zélia Duncan, Adriana Calcanhotto. Quando veio o escracho de Jonnhy Hooker e Liniker, veio uma libertação, o fortalecimento do meu discurso como cantor.”
Almério faz parte de uma geração da música brasileira cujo amor não apenas ousa, mas faz questão de gritar o nome. Foto: Ana Stwart/ Divulgação
UM DISCO NA BOLSA
Com o sucesso dos primeiros shows de Caruaru, Almério viu que seria inevitável cruzar a rua diante da banca até o estúdio onde ídolos como Valdir Santos e Elba Ramalho paravam para registrar trabalhos na cidade. “Cheguei no estúdio e disse simplesmente que iria fazer meu disco.” O artista não tinha, contudo, um tostão na caixinha. “Fui pagando parcelado com o dinheiro que ia ganhando na noite.”
Dez anos depois de estrear no circuito alternativo, Almério, aos 33 anos, chegava enfim ao Recife com um disco independente batizado com seu nome (Almério, 2013) e um baú de expectativas. “Recife para mim, naquele momento, era maior que o Brasil. Eu comecei a escutar música de Pernambuco muito cedo, escutava muito Alceu, muito Elba… Depois, Chico Science, que vinha dizendo que a gente podia amalgamar, que todos os ritmos eram possíveis. Isso criou uma coisa muito louca, saber que tudo era possível.”
Depois de fazer shows no circuito alternativo do Recife, o cantor resolveu arriscar-se mais, colocou o disco na bolsa e foi para São Paulo. Sem saber a quem procurar. “Eu entregava o disco a quem não conhecia”, lembra ele que, por acaso, encontrou nos bares da Praça Roosevelt um dos compositores de Pernambuco por ele cantado na noite de Caruaru. “Sem nem saber quem eu era, Otto me deu cinco telefones de bares interessantes para eu cantar. Só porque eu falei do pífano de Caruaru.”
Na sequência, o compositor Geraldo Maia telefonou para o dramaturgo João Falcão pedindo que recebesse Almério. Meses depois, o diretor pernambucano, radicado no Rio de Janeiro, ligaria para Almério dizendo-se apaixonado pelo seu disco, convidando-o para interpretar uma velha baiana em sua versão para os palcos de Gabriela, de Jorge Amado. “A experiência foi muito rica para afinar minha relação com o palco.”
Recebido com discrição, quase indiferença, pela crítica cultural do Recife, aquele primeiro disco autointitulado de 2013 ia fazendo de Almério uma festejada presença no circuito notívago pós-manguebeat. Almério, no entanto, contava com um pequeno obstáculo: imprimia um timbre andrógino sobre a voz sinuosamente cristalina. Ter uma voz classicamente afinada não era pressuposto para cantar num contexto dominado musicalmente por guitarras e percussões. “Ao contrário, cantar com afinação naquele momento era considerado cafona”, lembra. Até que Almério encontrou sua turma. Mais de duas décadas depois de Chico Science e Nação Zumbi terem lançado Da lama ao caos, o disco que borrou fronteiras entre o rock e o maracatu, a psicodelia e a ciranda, reinventando o pop nacional, a música pernambucana ganhava outros contornos. Almério encontrava no Recife mais de duas dezenas de intérpretes e compositores de todo o estado interessados em fazer música ancorada, sobretudo, no poder da palavra e nas nuances da voz. “Talvez o que define essa geração seja o gosto pelo canto, pela poesia, pela melodia”, diz Almério.
Colaborativa, com artistas frequentando shows e discos uns dos outros, essa movimentação seria informalmente conhecida como Reverbo, nome da mostra coletiva de música idealizada e organizada pelo compositor, cantor e produtor de 11 de cada 10 discos dessa geração, Juliano Holanda. Com elenco variável a cada edição, a mostra tem servido para o fortalecimento das parcerias de artistas de personalidades individuais. Flaira Ferro, Gabi da Pele Preta, Isadora Melo, Martins, Tonfil e PC Silva, Jr. Black são alguns deles. “Sem medo de errar, Pernambuco tem hoje o cenário musical mais interessante do país”, categoriza o carioca José Maurício Machline, criador do antigo Prêmio Sharp e diretor do Prêmio da Música Brasileira, espécie de versão brasileira do Grammy. Com a experiência de décadas de quem viu estrelas acenderem e apagarem no mercado, Machline se entusiasma com o pernambucano: “É raro ver uma pessoa com a capacidade vocal e interpretativa do Almério. Quase impossível alguém assim no Brasil de hoje”.
Machline conheceu Almério quando o cantor saiu do Municipal do Rio de Janeiro com o troféu Revelação na edição do Prêmio da Música Brasileira de 2018 – ele havia sido indicado também a Melhor Cantor Pop, mas a estatueta pela categoria ficou nas mãos do veterano Lulu Santos. A consagração veio com Desempena (2017), diante de artistas da MPB que ele ouvia no rádio. O disco tinha sido viabilizado pelo edital da Natura Musical. Com direção musical de Juliano Holanda, o segundo disco de Almério confirmava sua presença na nova música brasileira. Sintetizava sua musicalidade particular: a androginia vocal sobre guitarras, cordas e percussões dramáticas, costuradas pelas flautas do instrumentista Philippe Moreira Sales.
Antes disso, contudo, Almério tinha uma quase certeza de que a música jamais se tornaria de fato profissão. Desiludido por não ter sido selecionado num importante festival do Estado, cantava para quase ninguém num restaurante de Caruaru quando o produtor André Brasileiro entrou para jantar. “Eu fiquei impressionado com a entrega dele a cada canção. A casa estava vazia e ele cantava como se estivesse no maior palco do mundo”, lembra Brasileiro que, a partir dali, junto com o sócio Tadeu Gondim, passou a gerir a carreira do caruaruense, viabilizou a produção do segundo disco do artista, Desempena, e tudo que veio depois como consequência.
Dias depois daquele prêmio, o cantor recebeu convite para comemorá-lo num sarau na casa de Machline. Lá estavam vários artistas, entre os quais Mariene de Castro. A voz grave da cantora baiana se cruzou com a de Almério. “Quando eles começaram a cantar juntos, vi um casamento de tons difícil de acontecer”, lembra Machline. O produtor viu também em temas como Lamento sertanejo, de Gil e Dominguinhos, uma brasilidade arquetípica naquelas vozes em diálogo. Dirigido e produzido por Machline, o encontro desaguou nos disco e show AcasoCasa. Interrompido pela pandemia antes de começar em Salvador sua turnê nacional, o álbum rendeu mais do que esperavam antes de poder levá-lo à estrada: com ele, Almério e Mariene foram indicados à última edição do Grammy Latino.
Numa das duas únicas apresentações cariocas de AcasoCasa, a plateia do teatro do Joquey Clube, no Bairro da Gávea, estava repleta de nomes conhecidos. Ao final do show, Almério recebia no camarim com um certo frio na barriga um daqueles convidados. Ney Matogrosso fazia questão de ir parabenizá-lo por seu número solo cantando Fala, clássico do Secos & Molhados. “Parabéns, Almério, você veio pra ficar”, dizia Ney, um sorriso de canto a canto de boca.
Almério e Ney Matogrosso gravaram juntos Brasil, de Cazuza, para o novo disco do pernambucano. Foto: Divulgação
PROJETOS NA PANDEMIA
Aliviando com lives a angústia de não poder pegar a estrada, Almério recebeu um telefonema animador no meio do ano passado. Sua amiga, a carioca Ione Costa tinha acabado de pensar num disco para estrear o selo musical da Parças do Bem, uma produtora sociocultural com o propósito de gerar renda em projetos culturais para a comunidade recifense de Entra Apulso. “Com os sentimentos gerados no confinamento, comecei a perceber o quanto a poesia de Cazuza permanecia atual. Queria trazer suas letras para as novas gerações”, comenta Ione Costa. “Almério tem uma voz potente e uma interpretação emocionante. Tive a certeza de que a poesia de Cazuza em sua voz seria algo inteiramente novo do que já havia sido gravado com a obra dele.” Há anos sem liberar os direitos sobre a obra do filho para novos intérpretes, a mãe Lucinha Araújo concordou em autorizar as canções para a voz de Almério.
Lançado antes como single, Tudo é amor – Almério canta Cazuza traz um dueto de Ney Matogrosso e Almério no samba-rock Brasil. “Ney é uma escola para mim. Mas, até por ter sido muito comparado a ele pela crítica em alguns momentos, só agora também me sinto seguro o bastante para convidá-lo para gravar comigo e mostrar que temos personalidades musicais distintas”, diz Almério.
Se não foi óbvio localizar seu canto na musicalidade de Cazuza, Almério encurtou alguns caminhos por semelhanças. “Há um lugar em que a gente se encontra. Embora seja um cantor, como eu, que siga com a melodia, ele não se subordina a ela em alguns instantes. Na hora em que a música exige uma força extra, ele quase fala. E eu também vou para esse lugar. É tão forte esse momento na canção, que ele exige mais que o simples respeito à melodia.” O repertório do show Tudo é amor ainda está sendo definido a partir do disco, como dito no início, a ser lançado no fim deste mês. Entre as canções, uma antiga letra de Cazuza nunca cantada por Almério em público já tem lugar garantido. “Quando eu finalmente pude ouvir aquele disco de Cazuza que meu irmão tinha comprado, escutei pela primeira vez Vai à luta.” A canção, Almério lembra, se tornaria uma espécie de prece íntima de libertação. “Nos bares, eu cantava várias de Cazuza que o público pedia. Mas essa, nunca. Era muito pessoal para mim.”
Recitada como prece, a letra lhe dava a coragem da amiga Groselha. “Eu sofria muito bulliyng na escola, minha sexualidade era evidente. Quando a ouvi na voz de Cazuza, pensei: esse recado é para mim. A sociedade me massacrava, me tolhia, dizia que meu jeito de amar era errado. Eu ouvia aquilo e rezava: vou à luta”. Com o lançamento do disco e a perspectiva de volta de shows presenciais, Almério poderá finalmente rezar em público essa antiga reza. Groselha, assim como Cazuza, estará nas intenções da oração.
BRUNO ALBERTIM, jornalista e antropólogo. Autor de, entre outros, Tereza Costa Rêgo – Uma mulher em três tempos (Cepe Editora, 2019) e Nordeste – Identidade comestível (Massangana/Fundaj, 2020). Também ganhador de um Prêmio Esso de Jornalismo.