Entrevista

“Me considero um experimentalista”

Após lançar ‘Acqua movie’, o cineasta Lírio Ferreira conversa sobre cinefilia, filmes, Brasil e a retomada do cinema pernambucano, há 25 anos, com o longa ‘Baile perfumado’

TEXTO JOÃO RÊGO
FOTOS BRENO LAPROVITERA

01 de Julho de 2021

"O cinema, para mim, é uma dúvida. Se eu tivesse certeza, ia fazer outra coisa na minha vida", diz Lírio

Foto Breno Laprovitera

[conteúdo na íntegra | ed. 247 | julho de 2021]

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Há 25 anos, dois jovens cineastas ousaram dirigir um longa-metragem em Pernambuco, depois de mais de duas décadas de entressafra. O resultado foi menos um produto cinematográfico isolado e mais um movimento inaugural de uma geração de realizadores destinada a se expandir. O próprio título da obra, Baile perfumado (1996), sugeria um jogo de sentidos – o baile, parte da violência impenetrável dos cangaceiros, ao lado da modernidade lúbrica do perfume francês. As contradições estavam postas em uma dialética onde o antigo e o moderno não poderiam mais ocupar categorias separadas. O Baile perfumado se eletrizava ao som do Manguebeat de Chico Science, enquanto Lampião passeava pelo Rio São Francisco depois de assistir a uma sessão do clássico A filha do advogado (1926).

Um dos responsáveis por essa miscelânea temporal foi Lírio Ferreira, diretor do filme ao lado do seu conterrâneo e amigo Paulo Caldas. Por mais que, para Lírio, o Baile tenha sido fruto de uma pulsão coletiva dos ainda jovens cineastas envolvidos no projeto, como Cláudio Assis, Marcelo Gomes, Hilton Lacerda e Adelina Pontual, é impossível desvencilhar o microcosmo metamorfósico da obra da sua personalidade artística. Crescido no litoral, surfista, quase jogador de futebol e cinéfilo, são poucos os rótulos que conseguem enquadrá-lo. A melhor definição talvez venha das suas próprias palavras: “eu me considero um experimentalista”.

Um bom exemplo disso está no seu longa-metragem seguinte, Árido movie (2005), um road-movie que conecta Easy rider a Glauber Rocha, ao jogar sertão adentro um personagem inspirado em O estrangeiro, de Albert Camus. Tudo isso impulsionado pelo retorno do filho pródigo a uma terra marcada pela violência coronelista, o excesso de informação e a falta de água.

Foi para esse mesmo lugar, ou, pelo menos, o que restou dele, que Lírio retornou 15 anos depois, com a sua nova ficção Acqua movie, concebida entre 2011 e 2019 e lançada em junho em salas de cinemas abertas em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Salvador. Mais uma extensão do que uma sequência, o filme substitui o percurso do rapaz solitário pela jornada afetiva de sua esposa e do filho. Os indígenas, presença lateral anteriormente, agora estão no centro da narrativa, como uma lembrança de que a luta por terras também acontece no sertão nordestino. Até por isso, a irreverência torna-se suspense, à medida que o tom beligerante do coronelismo passa a recorrer cada vez mais ao uso irrestrito das armas para marcar sua posição de poder.

Em entrevista à Continente, Lírio conversou sobre o lançamento do Acqua movie durante a pandemia, sobre outros dos seus trabalhos em audiovisual, como o longa de ficção Sangue azul (2014), e os documentários Cartola (2007) e O homem que engarrafava nuvens (2009), entre assuntos ligados à realidade brasileira. Numa tarde de junho, nós nos reunimos num café na Ilha do Leite, junto com o fotógrafo Breno Laprovitera (contemporâneo de Lírio) e seu filho Gabriel, responsáveis pelas fotos que ilustram esta entrevista, para uma conversa que abordou, ainda, sua formação cinematográfica e o contexto em que sua geração estava inserida; contexto este desencadeador das inquietações que certamente geraram Baile perfumado, um marco no cinema pernambucano.



CONTINENTE Como está sendo lançar o Acqua movie durante a pandemia?
LÍRIO FERREIRA A gente tem que ir soltando porque o filme está passando no tempo. O Acqua movie era para ser lançado no ano passado, então ele está sendo lançado muito por cima dos compromissos de distribuição e de contratos com a Ancine. Na verdade, é também um trampolim para o filme chegar no streaming, porque só chega lá depois de passar pelo cinema. Então, temos que passar por essa etapa, sabendo que não vai dar muita gente, até porque não queremos incentivar as pessoas a irem ao cinema. É só uma coisa prática: as pessoas não estão indo, mas o filme tem que passar por isso. Talvez quem leve (as pessoas) para os cinemas sejam os blockbusters norte-americanos, esses filmes independentes, brasileiros, que a gente faz, não tem como.

É uma coisa até bacana colocar esse assunto. Durante a pandemia, entre a primeira e a segunda onda, eu estava no Rio de Janeiro dirigindo uma espécie de teatro ao vivo. Foi justamente numa queda entre essas ondas que em uma noite eu fui ao cinema. Eu sinto falta e abstinência disso. Minha relação não é com o filme, é com a sala de cinema. Eu faço filmes, não cinema. “Cinema” é o ambiente que dá o nome à atividade que você faz. Eu sinto a necessidade desse espaço. As pessoas têm isso com igreja, templo, estádio de futebol. Quando o filme me bate, eu saio transformado; e foi o caso dessa vez, com o único filme que assisti na pandemia, o Honeyland (2019), um documentário da Macedônia. Tinham seis pessoas na sala, contando comigo. A tendência é que agora tenha menos ainda. Então eu espero que as pessoas que forem assistir ao Acqua movie sintam um pouco desse alento que eu tive de sair “oxigenado”.

Não vai dar público, obviamente. A gente não tem como traçar uma expectativa. É uma coisa muito louca dessa pandemia, porque você não tem perspectiva de futuro. Eu sempre imaginava o que eu ia fazer. Morei no Recife, no Rio de Janeiro, sou um cara do mundo, adoro bater perna e sou meio inquieto. Às vezes vou para São Paulo trabalhar e fico lá seis meses. Foi a vida que escolhi. Enfim, tinha essa projeção do que eu ia fazer, e de repente, com a pandemia, você não consegue programar o que vai fazer no próximo mês.

Eu achava, sendo otimista, que, quando o filme estivesse para ser lançado, a pandemia já teria acabado. Ele estreava e as pessoas estavam com uma vontade muito grande de ir ao cinema. Mas já se passou mais de um ano que a gente entrou em distanciamento, as coisas não mudaram e a gente não tem nenhuma perspectiva.

CONTINENTE Como foi a sensação de trabalhar com cinema durante a pandemia?
LÍRIO FERREIRA É o que salva. A pandemia pegou a gente começando a rodar os filmes nos festivais. Eu estou finalizando um documentário sobre o Cafi, um telefilme que virou um filme com meia hora a mais e outra trilha sonora, que deve ser entregue no fim do ano. Cheguei a ir para o Rio para dirigir uma peça de teatro filmada ao vivo, um plano sequência de 1 hora e 15 minutos. Também tive um projeto no edital da Ancine, que obviamente não tem mais porque não está tendo nada. Já já, a gente conversa sobre isso (risos). Mas, enfim, foi o último edital de núcleo criativo que uma produtora baiana ganhou e eu era o líder; então a gente está trabalhando com cinco projetos: quatro filmes e uma minissérie. Isso tem me preenchido para caramba. E também tenho escrito roteiros, que é a possibilidade maior que você tem de trabalhar. Escrevi três roteiros de longas e estou começando um quarto agora. É o que temos, tentar se reinventar, e suprir essa necessidade.

É até uma coisa muito doida, porque eu durmo bem, e na pandemia eu tenho tido outros problemas, mas dormir não é um. E sonho muito. O impressionante é que 90% dos sonhos que eu tenho, sou eu trabalhando no set, filmando, participando de festivais. Antes de ontem mesmo, eu sonhei que estava com Karim Aïnouz e Marcelo Gomes dentro de um set de filmagem. Hoje sonhei que estava com Hilton Lacerda em uma pesquisa para um filme. Ou seja, é o meu sonho me assombrando com essa necessidade que tenho e meu subconsciente pede. Eu tento preencher com o que eu posso.

CONTINENTE Voltando para o Acqua movie, por que, agora, esse retorno ao Árido Movie?
LÍRIO FERREIRA É o seguinte. A gente fez o Árido movie em 2005, um filme que falava sobre falta de água e excesso de informação. Era uma visita a uma memória afetiva que eu tinha no Sertão. Sou um menino do litoral do Recife, mas passei boa parte da infância viajando pelo Sertão, porque meu pai tinha negócios no interior da Bahia. Era um lugar que sempre me tocava de uma maneira diferente, o tempo, a vegetação, as pessoas. Eu acho os sertões o cenário mais profundo do cinema brasileiro. O Árido movie tinha também a ver com minha memória, a história do filho que perde o pai assassinado etc.

E eu me lembro claramente de que, na época que eu morava no Rio de Janeiro, um amigo meu chegou pra mim e contou que Caetano Veloso tinha assistido aomeu filme. “Ele gostou muito, ficou entusiasmado, e depois a gente saiu para tomar um café e ele disse que Lírio abriu várias portas no filme e teve outras que ele não ousou abrir”. Eu fiquei inculcado com isso, no bom sentido, né? Porque Caetano, entre os vários artistas incríveis que me inspiraram, tem um lugar especial.

Em 2011, eu já tinha retornado do Rio e estava indo para o Festival de Triunfo com uns amigos. No meio do caminho, a gente ia conversando, todo mundo fumando maconha pra caralho, e o sertão sempre me voltando àquelas coisas. Foi a primeira vez que eu passei sobre as obras de transposição do rio (São Francisco). E aí, bateu. Comecei a voltar ao Árido movie e aquelas portas que o Caetano tinha falado que eu não ousei abrir. Eu senti que o tema da falta de água, só que agora com água, ainda era muito presente.

Então eu comecei a projetar uma continuação do filme, o que é uma coisa muito louca, porque ele nunca foi um sucesso comercial. Tem até um relativo sucesso cult, um público muito fiel pelos assuntos que trata, muitas pessoas acham que ele envelheceu como vinho, mas não foi “um sucesso”.

Começou a vir isso na minha cabeça que as obras de transposição me abriram algumas comportas que eu podia revisitar. E foi nascendo um filme como uma continuação cartesiana até virar uma coisa mais kardecista, mais espiritual. Porque deixou de ser uma continuação para ser uma extensão. Tem uma fala do Zé Celso no Árido movie que define bem isso: “aqui é e não é, mas está sendo”.


Em Acqua movie, o retorno ao Sertão é feito por mãe e filho (Alessandra Negrini e Antonio Haddad). Foto: Fred Jordão/Divulgação

CONTINENTE São obras com propostas estéticas diferentes, desde a direção de fotografia. O que mudou do Árido movie (2005) até o Acqua movie (2019)? O segundo é um filme mais melodramático, enquanto o primeiro parece querer se curtir mais.
LÍRIO FERREIRA Eu acho que o que muda é quando você joga um olhar em cima do personagem principal. Se a gente pegar o Árido movie e ver que é a história do Jonas indo para o Sertão, um cara solitário que perdeu o pai, tudo que gira em torno dele são pessoas que vão cruzando seu caminho. O Árido tem uma pegada, não solitária, mas de descoberta interior, aliado àquilo do retorno do filho pródigo, a fotografia do Nuno Sales e a falta de água naquele momento. O Árido movie é mais árido e o Acqua movie é mais água (risos).

Esse Acqua tem a ver com fertilidade, afeto e amor. Quando você coloca quase o mesmo percurso, que é a pessoa sair de São Paulo e bater no meio daquele território sagrado, só que com uma mãe e um filho, isso muda tudo. O Árido tem essa coisa de você se sentir estrangeiro no seu próprio território, é um filme mais sobre descoberta ou redescoberta, enquanto o Acqua movie é um filme sobre a engenharia de um afeto entre mãe e filho. Você muda o jogo de pessoas dentro do carro, você muda completamente o olhar.

CONTINENTE Antes da entrevista, eu assisti ao Árido movie, retomo-o bastante porque ainda está bem fresco na memória.
LÍRIO FERREIRA É bacana você estar com o filme na cabeça porque quando eu pensei, no início do Acqua movie, em fazer uma continuação do Jonas, se você se lembrar da cena final a personagem Soledad está grávida. Ela tem um diálogo que é “o que eles estão fazendo?” e o Jonas responde “depois que eles terminarem, alguma coisa vai acontecer”, e aí sai de quadro. Eu queria fazer esse spin-off, aquela barriga, 12 anos depois. Mas não numa continuação normal com os mesmos atores. A ideia era de que todos personagens que foram inspirados no Árido movie seriam mais novos, e teriam ainda um novo nome e um novo ator. Isso traz um caráter espiritual, o personagem está ali, não importa a idade, se é o mesmo ator, o mesmo nome.

CONTINENTE Mas não me pareceu aquele cinema autorreferencial, de uma piscadela meio nostálgica para quem assistiu ao Árido.
LÍRIO FERREIRA Quem não assistiu ao Árido viaja total no Acqua. Quem assiste e tem isso na cabeça vai buscar algumas coisas ali. O único personagem que aparece nos dois é o Jonas, que morre logo no início. Faz essa confusão espiritual (risos). A essência está ali. Eu sempre tive vontade de fazer isso, trabalhar em cima do espírito, da alma do personagem. Por isso eu acho que o Zé Celso é quem está certo: “está sendo”.

CONTINENTE Partindo dessa diferença entre experimental e melodramático, queria saber como é para você, como cineasta, lidar com isso. Não só o Árido movie, mas o Baile perfumado, são filmes que, nas suas palavras, “transbordam”. Já o Acqua movie tenta ali construir uma dinâmica dramática entre a mãe e o filho. Ele tenta resolver o drama sem planos sugestivos ou sacadas metafóricas, mas através da palavra, da conversa.
LÍRIO FERREIRA Certamente as coisas mudaram, as minhas ansiedades. Eu jamais iria fazer uma coisa igual ao que eu já tinha feito. São 15 anos depois na minha vida, e eu aprendi determinadas coisas. É uma extensão do filme, o caminho é diferente: não é uma pessoa solitária, é uma mãe e um filho. E eu acho que o tempo em que ele foi feito criou essa possibilidade de eu estar 15 anos mais velho e ter outra linha narrativa mais centrada nos personagens e suas relações. Talvez o Árido seja mais road movie que o Acqua, apesar dos dois serem road movies. Mas nessa coisa de ter cenas no hotel, no rio, de afeto, isso necessariamente trouxe outra concepção. E, obviamente, quando eu fiz o Árido, a barba era preta, e agora ela está branca (risos).

Com certeza, eu continuo aprendendo, eu faço cinema como uma pessoa em movimento. Tenho muita coisa para aprender e aprendi muito nestes últimos 15 anos. Eu me lembro de que, quando fiz o Árido movie, falava que talvez fosse o filme mais belo e imperfeito que eu já fiz na minha vida. Tenho certeza das imperfeições que tem nele e gosto disso. Acho que não é um filme redondo, e acho isso bacana. No Acqua movie, eu aprendi com alguns erros e fiz outros que penso na frente tentar encontrar.

Você vai ganhando experiência e maturidade com algumas coisas, mas talvez você vá perdendo um pouco do frescor, da ousadia, de uma busca, e de uma descoberta, que você acha que achou, mas não achou bubônica nenhuma. Toda vez que eu tento fazer algo na minha vida eu tento buscar a época do Baile perfumado (1996). Gostava muito daquela insegurança. É isso de tentar dosar essa pseudomaturidade hoje junto com aquele frescor que a gente tinha, eu, Paulo, Cláudio Assis, Hilton Lacerda, Marcelo Gomes. É uma coisa incessante e não vai parar. Essa barba aqui é só para imitar o David Lynch mesmo (risos).

CONTINENTE Esse amadurecimento desemboca naturalmente no tipo de filme que é o Acqua movie?
LÍRIO FERREIRA Não sei se seria isso. A história pediu isso. Não sei se é uma coisa que eu vou voltar mais. Cinema para mim é uma descoberta atrás da outra. Quando eu estava fazendo, lá no início, o roteiro com o Paulo Caldas e o Marcelo Gomes não imaginava que a coisa iria desembocar assim; mas naturalmente aconteceu, e isso não impede que eu faça uma continuação. Eu tenho ideia de fazer o Air movie, uma ficção científica. Como eu não vou ter dinheiro para isso, eu pensei em uma animação. Colocar uns cangaceiros numas espaçonaves, umas coisas loucas pra caralho (risos).

São os desafios que eu tenho, e é neles que vou tentar trazer esse frescor que eu tinha antes. Para não ficar também numa zona de conforto, tentar resgatar essa insegurança que me movia. O Acqua movie foi isso, quase uma consequência da minha experiência, de uma busca, talvez, de um gênero que não existia nos meus filmes. Eu me considero um experimentalista e nunca vou ter medo nem de dizer, nem de experimentar. O cinema, para mim, é uma dúvida. Se eu tivesse certeza, eu ia fazer outra coisa na minha vida. Essa dúvida é que me carrega, me coloca em movimento. Se você me perguntar o que é meu próximo filme, eu não sei, se eu puder experimentar uma coisa nova, eu vou tentar.


Em Árido movie (2005), Selton Mello interpreta personagem que volta ao Sertão. Foto: Gilvan Barreto/Divulgação

CONTINENTE Você falou do excesso de informação do Árido, e no Acqua tem um pano de fundo mais contemporâneo, da disputa por terra indígena.
LÍRIO FERREIRA O território é quase o mesmo. A gente filmou o Árido movie em Arcoverde, Catimbau, mas é praticamente sertão. Têm nações indígenas, que a gente acha que só existem no Xingu, na Amazônia, mas ali no médio São Francisco, existem várias em Pernambuco e na Bahia. E eles brigam ainda pela terra, tudo naquele ambiente de transposição, território sagrado e o polígono da maconha.

A ideia era revisitar aquele espaço e contar uma história ali. Perto de filmar, lá por 2016, eu convidei o Marcelo Gomes e o Paulo Caldas para fazer o roteiro comigo, mas quando eu cheguei no Sertão, na primeira reunião à noite, eu mudei o foco do negócio. Eu me senti muito possuído por aquilo, e me lembro de que, quando a gente saiu do hotel, ali por Salgueiro, foi a primeira vez que eu vi um outdoor do Bolsonaro. Aquilo me bateu e eu disse “gente, no meio do sertão de Pernambuco, aparece um louco folclórico desse”. Aquilo me incomodou muito, mas ninguém esperava que fosse desandar nessa tragédia que aconteceu com a eleição desse cara. Mas estava ali.

A gente foi escrevendo a história, filmou e depois ele ganhou a eleição. Você já tinha no personagem do Augusto Madeira, o Múcio, toda aquela coisa bolsonarista, de entregar uma arma de presente para o sobrinho com a bandeira do Brasil, e era algo que na época o Bolsonaro não tinha ganho a eleição ainda. Foi algo que foi pensado ali e que a gente tem que mergulhar ainda mais porque não está resolvido, desde a terra dos povos indígenas até a democracia no Brasil, que é muito frágil, incipiente. Isso foi virando, e o filme se encaixou com o momento atual, porque no Brasil, apesar de a gente ter tido governos progressistas, muita coisa foi mantida naquele território de privilégios.

CONTINENTE Se você colocar esse contexto lado a lado com o Árido movie, tem uma historiografia aí. Aquele excesso de informação se tornou um discurso beligerante. Por exemplo, o personagem do Matheus Nachtergaele fala em “deixar para lá” os índios no final do filme, mas 15 anos depois o Múcio fala em exterminar.
LÍRIO FERREIRA É o que se está vendo hoje, a política da morte, a necropolítica. Isso estava lá, né? Não foi inventado. Depois dos governos Lula e Dilma, quando ficou ali debaixo do tapete, esse ódio voltou, e o personagem do Augusto Madeira naturalmente aflora com isso. O filme fala muito do nosso momento político e não precisou nem de muito esforço para fazer isso, porque estava ali. Só foi ter aberto uma das portas que o Caetano Veloso falou.

CONTINENTE Eu quero retomar o termo “espiritual” que você utilizou para fazer a comparação. Lá atrás, o personagem do Zé Celso recorre a algo mais onírico, fora do nosso mundo. Já no Acqua, o espiritual está ligado às águas, ao emocional.
LÍRIO FERREIRA O personagem do Zé Celso é mais telúrico, etéreo. E no Acqua movie, a água tem isso dos povos indígenas como outro elemento.

CONTINENTE E qual o papel da água no seu cinema?
LÍRIO FERREIRA O Árido movie é um filme sobre excesso de informação e a falta de água. Mas ela existe, mesmo que esteja faltando. Tem uma faixa no filme que é ligada a uma campanha do Agamenon Magalhães, que diz assim: “onde a água chega ela faz o resto”. O Sangue azul (2014) é uma ilha cercada de água por todo lado. A água está presente nesses três filmes de uma certa maneira. E pasme, no Baile perfumado também. Porque todos os filmes com cangaceiros não tinham água, e a gente chega e faz um filme na beira do Rio São Francisco.

CONTINENTE Inclusive, uma das cenas mais belas do Baile perfumado é quando Maria Bonita e Lampião estão navegando no barco.
LÍRIO FERREIRA A água é um símbolo de fertilidade. “Onde ela chega, ela faz o resto” na verdade é dizer “onde o cinema chega, ele faz o resto”.

CONTINENTE Em questão de temporalidade, como você enxerga esses 15 anos do Árido movie?
LÍRIO FERREIRA É essa coisa que te falei. Desde o Baile perfumado, muita gente chega para mim e fala que decidiu fazer cinema por causa do filme que eu fiz com o Paulo Caldas. Na verdade, o Baile perfumado é um filme de uma geração, né? Eu, Paulo Caldas, Hilton, Cláudio, Marcelo Gomes, Adelina Pontual. É muito bacana que o Baile seja um filme de uma transição, ele foi montado em moviola, e a gente acompanhou a mudança do celuloide para o digital. O Árido tem também essa coisa da transição da comunicação, do excesso de informação, o celular, a fibra óptica. Acho que ele envelheceu bem, e espero que o Acqua envelheça assim também. Eu gosto de uma maneira de fazer filmes, não sei como classificar, que me identifico muito com as pessoas da minha geração, Cláudio Assis, Hilton Lacerda, Adelina Pontual, Camilo Cavalcante, o Kléber Mendonça Filho. Porque eu acho que a gente não faz filmes de 100 metros rasos, são filmes de maratona que tem uma vida bacana depois do lançamento. As pessoas assistem 15 anos depois e a discussão ainda é presente.

CONTINENTE Nesse percurso teve o Sangue azul que a gente ainda não falou, porque eu sinto que foi um filme com uma repercussão mais morna.
LÍRIO FERREIRA A repercussão sempre é muito relativa. Ele foi para Berlim, para o Festival do Rio. Eu tenho um carinho enorme por ele. O cinema brasileiro sempre teve uma cinematografia muito peculiar, e eu acho que tanto o Sangue azul quanto o Árido são pontos fora da curva. A ideia inicial dessa ilha que anda e outra ilha que está parada tinha muito haver com o meu momento naquele instante. É também um filme com uma pegada mais onírica, traça um paralelo entre o circo e o cinema.



CONTINENTE Vamos falar sobre a sua produção de documentário.
LÍRIO FERREIRA O documentário é o seguinte: na época em que a gente fazia cinema, Breno sabe muito bem disso, existia o Manguebeat, com o qual o cinema pernambucano tem uma dívida muito grande, no bom sentido. A gente fazia cinema e esse encontro abria portas para o movimento todo. Eu sempre tive um envolvimento bacana com a música, mas eu canto mal para caralho e não toco nenhum instrumento (risos). Fazer esses documentários musicais, e antes deles, eu dirigi muitos videoclipes, é uma maneira de fazer música sem ser músico, com um olhar cinematográfico. Para eu não pagar um mico muito grande de cantar ou tocar um instrumento, o cinema me dá essa possibilidade, no Cartola (2007) e no Homem que engarrafava nuvens (2009), de fazer música em um território onde eu consigo me desenvolver melhor. O próprio Baile perfumado tem uma relação muito forte com a música. A trilha do Manguebeat não está ali só para criar um clima, ou fazer um fundo. Ela conversa, dialoga, ela é cinema, ela se justapõe. No Árido movie a mesma coisa com o Renato e seus Blue Caps.

CONTINENTE São dois documentários arquivísticos, inclusive, com poucas informações disponíveis mas que você vai ampliando para outros cenários.
LÍRIO FERREIRA Primeiro que os personagens principais não estavam mais vivos. A ideia era construir um cenário, uma direção de arte, e através das imagens de arquivo você criar um personagem, não necessariamente 100% fiel. Eu dizia assim “se tiver que mentir, que ele minta”. Quando eu e o Hilton achamos a entrevista com o Cartola, tinha muita mentira ali, mas quem falava era ele. É muito louco isso, porque o Baile perfumado, que é uma ficção, é inspirado em uma história real, porque existiu Lampião, Abrahão, padre Cícero. Mas, em alguns momentos, eu sinto o Baile mais documentário que o Cartola. Porque existiu também um ambiente de uma ficção ali (no Cartola), que você criou um personagem em cima de um olhar que eu tive com o Hilton. Um personagem que em alguns momentos eu sentia uma ficção maior do que quando o Duda Mamberti está interpretando o Benjamim Abrahão. Então, o desafio de se fazer documentário, que nesse caso é mais interessante do que a ficção, é você sair de um lugar e não saber aonde vai chegar. Não que a ficção não tenha isso, mas você tem um roteiro que passou quatro ou cinco anos escrevendo. O documentário traz essa possibilidade de você descobrir um outro caminho no meio e por ali você desembocar.

CONTINENTE Mas isso é uma escolha sua, né? Porque tem gente que faz documentário e sabe muito bem onde quer chegar, como vai repercutir.
LÍRIO FERREIRA O Michael Moore faz um filme já com uma certeza, até com um objetivo. “Quero fazer isso, porque o filme é contra isso e aquilo”.

CONTINENTE O antiCoutinho.
LÍRIO FERREIRA Exatamente. Eu não tenho nada contra, mas eu prefiro o caminho das dúvidas. Eu gosto de me perder. O road movie é esse gênero essencialmente cinematográfico, talvez o mais. Você está saindo de um ponto para outro. O carro é o próprio cinema. Você está entrando em um lugar estranho, em movimento, o futuro está na frente e o passado está atrás.

Mas não necessariamente, você precisa pegar uma estrada 232 asfaltada daqui para Caruaru que você sabe a curvinha, a placa de sinalização, né? Você pode pegar um atalho desconhecido, um caminho alternativo e isso tornar a viagem muito mais sedutora e incrível.  É se perder para se achar e, às vezes, chegar no ponto final por outro caminho.

CONTINENTE Tem alguma coisa de jornalismo aí? Essa parte da pesquisa jornalística que você vai entrevistar e pinça o que o cara disse e depois vai atrás.
LÍRIO FERREIRA É uma coisa que o (professor e pesquisador) Paulo Cunha falou, que não existiam faculdades de cinema naquela época, mas essa nova dentição do cinema pernambucano nasceu de um ambiente universitário. Eu estudei Jornalismo, era da turma de Paulo Caldas, de Adelina Pontual. Cláudio Assis fazia Economia, e também veio pagar umas cadeiras com a gente. Uma das coisas que me fez desistir de fazer o curso era que o professor dizia que você devia ser fiel aos fatos. Mas, se eu chegar ali e você chegar também, em um acidente aqui nesta esquina, no mesmo momento, mesma hora, todo mundo que presenciou vai contar uma história diferente. Isso talvez tenha sido a curvinha que me levou ao cinema.



CONTINENTE São 25 anos do Baile perfumado. Como você enxerga o filme hoje e todo o seu percurso?
LÍRIO FERREIRA Cara, eu enxergo de óculos (risos). O filme foi um evento, né? Não existia universidade (de cinema), mas acabou sendo uma para um monte de gente envolvida em todas as áreas do filme. Não tem como reproduzir aquele momento. Talvez, se a gente fizesse o Baile perfumado 25 anos depois, sairia outra coisa. Ele marcou aquele tempo, nossos erros e nossos acertos. E marcou uma virada, porque fazia quase 25 anos que não se produzia um longa-metragem em Pernambuco. Toda essa geração, a conversa com a música, a fotografia, aquilo não se repete mais. E dá orgulho de ter participado daquela aventura. Um bando de meninos que só tinha feito curtas-metragens, fomos aprendendo, batendo cabeça, e de repente a gente estava em um lugar com 70 pessoas no meio do Sertão, sem saber o que aconteceria na próxima semana, mas com aquele ímpeto e vontade. Porque quem fez o Baile perfumado não foi Lírio Ferreira e Paulo Caldas, quem fez o filme foi quem trabalhou nele. Se não tivesse aquelas pessoas com aquela força, generosidade e a vontade de aprender, não existiria o Baile. O que movia a gente era o desejo de fazer. E, de repente, virou o que virou, em um momento de retomada, de ser um marco zero de uma história e carregar a única trilha que Chico Science participou em vida. A pretensão era “fazer”, não “vamos revolucionar tudo”. A última frase do Baile sintetiza bem isso: “os inquietos vão mudar o mundo”. E eu me lembro de que a gente ia pro Valdemar, ali no Bairro do Recife, e eu dizia que não era “insatisfeito”, eu era inquieto porque é algo constante. Quem participou do filme na época carrega essa inquietude até hoje.

CONTINENTE O Baile perfumado também abrange muito de Pernambuco, né? Tem aquelas cenas de A filha do advogado, Ciclo do Recife, imagens em Super-8, isso junto a trilha do Chico e o Fred 04, traz muito de uma vontade de realizar algo mais referenciado no local, menos no que vem de fora?
LÍRIO FERREIRA Tem um curta-metragem chamado Escada, do Philippe Barcinski, que é assim: um cara tentando subir uma escada, ele desce, mas ele não sai do mesmo lugar. O aprendizado é um pouco isso: você sobe a escada, desce alguns degraus e segue subindo. Você não tem como fugir da tradição do audiovisual pernambucano. Eu sempre fui ligado a isso. A gente teve o Ciclo do Recife quando o cinema era uma aventura. Eu cheguei a entrevistar o Ary Severo e ele falou para mim “meu filho, fazer cinema no início do século era viver como um astronauta ou um escafandrista, no espaço ou fundo do mar, onde ninguém tinha chegado antes”. Depois disso, você ainda tem a ousadia e o experimentalismo de um Jomard (Muniz de Brito), Paulo Cunha, Paulo Bruscky, Amin Stepple. O Baile bebe daí, e eu bebo até hoje em nome da ressaca (risos).

CONTINENTE A maior escola que a gente teve foi o Teatro do Parque. Ali passavam mostras de Fassbinder, Bergman, porque naquela época a gente não tinha internet (lembra Breno Laprovitera).
LÍRIO FERREIRA Exatamente. Eu assistia muito às mostras do Cinema Novo, e você tinha que ter o trabalho de buscar isso. Eu fiz curso de fotografia com Firmo Neto. E era uma coisa maravilhosa, todo mundo queria ficar nu, trancava ele para ficar olhando no buraco da fechadura (risos). Tem algo mais cinema que isso? Entrevistei o Ary Severo, aprendi muito com Jomard (Muniz de Britto), dirigi um filme com Amin Stepple e ainda fiz um curta-metragem com Paulo Bruscky. Não tem como passar incólume convivendo com essas pessoas.

CONTINENTE O Baile também faz parte dessa história. Como você percebe o lastro deixado pelo filme, as estratégias de filmagem, a abordagem temática e estética, 25 anos depois?
LÍRIO FERREIRA Acho que, na essência, na história do Baile, a modernidade é que acaba com o Lampião. Quando ele se deixa filmar e as pessoas veem sua imagem projetada no cinema, tomando uísque francês, lendo O Globo, percebem que ele era um burguês no Sertão. E isso está no filme, na trilha sonora, na maneira de abordar o tradicional, o arcaico e o moderno. A gente levou isso para a direção de arte e para a música. Foi um filme que bateu nisso, e é algo que segue até hoje. No próprio Acqua movie ainda tem essa coisa do ranço coronelista enraizado, mas com o celular marcando presença.

CONTINENTE Em Bacurau também, o conhecimento prévio dos drones, por sinal.
LÍRIO FERREIRA Acho que o que me atrai é essa analogia profunda de todo mundo ter essa impressão que o Sertão é árido, seco, infértil. Para mim, é completamente o contrário: ele é luxuriante de ideia, fértil, e tem um tempo diferente e muito moderno. Acho que o Baile se mantém extremamente atual porque não abriu mão disso.

CONTINENTE Queria falar sobre sua formação cinematográfica, saber como foi esse processo.
LÍRIO FERREIRA Eu nunca imaginei fazer cinema na minha vida até encontrar o Paulo Caldas. Três pessoas importantes para mim são Paulo Caldas, que me colocou para fazer cinema, Cláudio Assis, que me colocou para questionar o cinema, e Amin Stepple, que me colocou para pensar o cinema. Até então, eu tinha me preparado fisicamente para a vida desregrada que eu tenho hoje. Eu era surfista, jogava futebol, cheguei a jogar no juvenil do Sport (risos).

CONTINENTE Mas era cinéfilo?
LÍRIO FERREIRA Eu me alfabetizei em casa, porque minha mãe achava que eu era muito burro no jardim de infância (risos). Eu fiz vestibular com 16 anos para Arquitetura, e levei pau. Até então era praia, e quando eu entro em Comunicação continuo surfista, menino da zona sul. Mas eu ia para o cinema constantemente, adorava essa relação com a sala de cinema. Na época da faculdade, tive essa sorte de ter entrado na mesma turma de Paulo Caldas. Ele já era o cineasta que fazia filmes Super-8, e eu só pensava em pegar onda enquanto as meninas colocavam meu nome nos trabalhos. Uma vez a gente teve uma aula de cinema, que não tinha câmera e equipamento, então foi com mímica. Dividiram a sala entre os intelectuais, Paulo Caldas, o Samuel, e a turma da praia, que me incluía. O Paulo Caldas levou uma surra de 34 a 5. Começavam com “Z”, aí eu “Costa-Gavras”, e ele sem entender como eu sabia daquilo tudo. Foi uma surra vergonhosa (risos). Duas semanas depois, ele me chama para ser continuísta do curta-metragem que ele estava fazendo, O bandido da sétima luz (1986), junto ao (Fernando) Spencer. E eu fui pra lá bronzeado, de bermuda e fiz meu primeiro trabalho com cinema. Aquilo foi minha escola.

Paralelamente, Cláudio Assis, que fazia o curso de Economia, pagava umas cadeiras de Humanas e começou a namorar uma das meninas do nosso grupo, além de ter se aproximado [do grupo] muito por conta de uma identificação e uma convergência de pensamentos e ações em voga naqueles tempos onde nunca fomos tão felizes. A gente criou uma relação dali. Depois eu fui ser assistente do primeiro filme dele. Comecei a pegar gosto, escrevi meu primeiro roteiro, tinha até o grupo, o Vanretrô, do qual fiz parte, que foi extremamente importante e fundamental na minha formação intelectual, social, sexual e psicodélica”. O Vanretrô foi onde eu dobrei a curva. Depois, produzi o Crime da imagem (1992), com o Paulo Caldas, o meu primeiro filme. Esse ambiente universitário foi muito importante para minha formação e para muita gente daquele momento. No caso, se eu não tivesse encontrado o Paulo Caldas, eu poderia estar trabalhando com Jornalismo, Publicidade, sei lá, até hoje.

CONTINENTE E qual é a sua relação particular com o cinema no meio disso tudo?
LÍRIO FERREIRA Qual a sua primeira impressão com o cinema? Medo, pavor, terror daquilo ali. De vez em quando eu encontro o Paulo Bruscky e sempre conto uma história de quando eu era pequeno. Me lembro quando morava em Olinda, e muita gente já fazia filmes Super-8. Essa galera depois foi trabalhar na Globo, e faziam sempre um último bloco diferente. Eu lembro bem de um sábado desses em que eu ligo a TV e vejo uma figura comendo biscoito, cuspindo na frente da câmera e falando “biscoitos finos”. E aquilo foi a primeira coisa experimental que eu vi na televisão, uma performance do Paulo Bruscky. Aquilo mostrou para mim que existia outro caminho que não o formal de fazer as coisas.

O cinema que me interessa fazer é o cinema que incomoda, que não entrega o óbvio. O cinema é uma diversão, mas não só isso. Amin Stepple falava pra mim: “Bergman acabou com minha juventude” (risos). E isso sempre me interessou.

CONTINENTE E o que lhe interessa no cinema de hoje?
LÍRIO FERREIRA Às vezes eu assisto a um filme e não lembro direito (risos). Eu gosto de restaurantes com poucos pratos. Eu abro a Netflix e passo dois curtas-metragens para escolher um filme. Eu continuo tentando ver filmes bacanas no cinema, me guardando para assistir na sala. O leque é tão grande, mas falando assim, tento ver muito do cinema chileno, latino-americano, o cinema oriental, que para mim naquela época se resumia em Kurosawa, já hoje em dia vejo mais os sul-coreanos e iranianos.

CONTINENTE E no cinema pernambucano, o que lhe interessa?
LÍRIO FERREIRA Eu adoro os filmes de Kléber, de Gabriel Mascaro, Renata Pinheiro, todos. Uma pessoa que me instiga muito, me deixa inquieto, é o Tião.

CONTINENTE A gente tinha falado no começo, mas agora vamos retomar ao assunto. Hoje, se pensarmos, o Baile perfumado correria risco de não ser realizado por falta de incentivos.
LÍRIO FERREIRA É uma tragédia, né? Um retrocesso absurdo que nem nos piores roteiros meus, de Hilton, Cláudio Assis, Marcelo Gomes, a gente conseguiu imaginar um filme de terror como esse. É um negócio impressionante. Eu nunca vi, na história da democracia que eu passei, porque também cresci na época da ditadura militar, um governo tão apocalíptico como esse. É uma coerência com um lado negacionista incrível: o ministro do Meio Ambiente odeia o meio ambiente, o cara da Funai odeia os povos indígenas. Você vai na cultura, os caras odeiam os artistas, o Ministério da Educação odeia os professores e os economistas acham que pobre não faz parte da rede de economia. Mas isso nasce do personagem do presidente. Ele é um militar medíocre, o que é coerente, que nasce desse pensamento de não existir o contraditório. “Nós temos inimigos e nós temos que exterminar”, esse é o pensamento que move um militar. Como ele sabe que os cineastas foram contra isso, ele não vai dialogar, ele quer exterminar. Vamos secar as contas aqui que eles vão morrer sufocados, quase uma metáfora. E a gente está vivendo isso num grau de uma tragédia absurda, porque não basta você ter um verme, temos também um vírus. Ele (o presidente) seria a última pessoa que deveria estar nesse momento à frente, porque é um cara que não tem a menor sensibilidade com o outro.

CONTINENTE Qual a saída?
LÍRIO FERREIRA O que me dá um sentimento de esperança são os jovens, que são os inquietos do Baile perfumado, que vão tomar o poder e reconstruir tudo. Porque é muito complicado para gente voltar como era, a coisa agora é daqui para frente. E a gente vai atrás dessa moçada. Já fomos na frente, agora vamos atrás.

 

CONTINENTE 2022 está logo ali.
LÍRIO FERREIRA Pois é, me vacinei hoje e tem a possibilidade deste ano todo mundo se vacinar. A eleição no próximo ano é a nossa esperança de acabar com o vírus e o verme.

JOÃO RÊGO, estudante de Jornalismo da Unicap e estagiário da Continente.

BRENO LAPROVITERA,
fotógrafo, sócio- fundador do Projeto Lambe Lambe.

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