Arquivo

A cultura em trânsito

Aos 80 anos, o poeta, cineasta e crítico cultural Jomard Muniz de Britto, cuja trajetória tem sido marcada pelo inconformismo e pela iconoclastia, é celebrado com obras em sua homenagem

TEXTO Aristides Oliveira

01 de Abril de 2017

O poeta, cineasta e crítico cultural Jomard Muniz de Britto

O poeta, cineasta e crítico cultural Jomard Muniz de Britto

Foto Helia Scheppa

[conteúdo da ed. 196 | abril 2017]

“Meu esforço sempre foi estar sintonizado com as linguagens contemporâneas.” É nesse sentido que o professor Jomard Muniz de Britto transita pelos espaços culturais no Brasil, em busca das pluralidades estéticas em movimento. Filho da pernambucana Maria Celeste Amorim Silva e do paraibano José Muniz de Britto, Jomard nasceu em 8 de abril de 1937, no Bairro de São José, Recife.

Seu envolvimento com o universo artístico começou muito cedo, influenciado pelos professores Moacir de Albuquerque – ao apresentar Gregório de Matos – e Gláucio Veiga. O interesse do garoto pela literatura, especialmente pelos filósofos pré-socráticos e Ortega y Gasset, tornou a biblioteca da Faculdade de Direito um lugar de pesquisa na adolescência.

Aos 14 anos, também demonstrou interesse pelo cinema, ao conhecer as atividades do Cineclube Vigilanti Cura. Ele queria aprofundar seu contato com a linguagem cinematográfica, ao tomar conhecimento de que o grupo – de orientação católica – desenvolvia uma série de atividades ligadas a sessões de filmes, seguidas de debates e palestras sobre o tema.

As noites de sábado foram marcantes para Jomard nesse período, pois é a partir do cineclubismo que sua relação com a estética audiovisual será intensificada, tomando essa linguagem como ferramenta para compreender a conjuntura que o envolvia no grupo. Não podemos esquecer a presença do padre Daniel Lima – palestrante do Vigilanti Cura – que animou Jomard para ir além do papel de espectador, tornando-se um dos debatedores assíduos do cineclube.

Aos poucos, Jomard foi conquistando espaço e confiança entre os membros do Vigilanti Cura. Sua disponibilidade e interesse o aproximou das freiras que frequentavam as sessões, convidando-o para ministrar aulas de cinema no Colégio São José e Colégio Damas. A partir daí, seu vínculo com os estudos cinematográficos desdobrou-se na prática política e pedagógica ao longo de toda a vida.

Entre um debate e outro conduzido por Jomard, um jovem cineasta entra na sala e senta ao lado de José Luiz Libonati, presenteando-o com a revista Mapa. Era Glauber Rocha, que passava uma temporada no Recife buscando articular novos contatos na cidade. Libonati seria o ponto de conexão entre os dois. Glauber não foi ao cineclube por acaso, pois já conhecia o nome de Jomard como crítico de cinema fora do Recife, quando este colaborou para a Revista de Cinema de Minas Gerais.

O encontro gerou uma amizade que rendeu várias colaborações intelectuais entre o cineasta e o professor. Uma delas foi o convite de Glauber para o amigo ir à Salvador acompanhar as filmagens de O pátio (1958), estreitando os laços com o diretor e sua mãe, Dona Lúcia. Foi na pensão dela que Jomard ficou hospedado durante o processo de criação do filme.

Quando Glauber dirigiu a revista Mapa em 1958, convidou-o a publicar um artigo chamado De poesia. Nessa troca de afetos e leituras, Jomard retribuiu o convite, ao chamar Glauber para escrever o prefácio do livro Do modernismo à bossa nova (1966), fase em que o professor estava dedicado a estudar os impactos desse movimento musical na cultura brasileira, escrevendo críticas dos discos MPB e organizando eventos sobre o gênero.

A amizade não media distâncias e a saudade era exposta nas cartas que trocavam periodicamente, reforçando o carinho entre os dois: “tenho notícias: estou noivo (…). continua vivendo angustiado? (…) você é uma flor. lembranças a todos os outros. glauber”. O aprendizado dessa experiência impulsionou Jomard a descobrir novos caminhos na criação de sua obra cinematográfica em super-8 e na prática do escreviver.

Apaixonado por Filosofia, a Universidade Federal de Pernambuco (antes, Universidade do Recife) foi seu novo laboratório de descobertas, quando inicia o curso na década de 1950. O primeiro desafio: ser aluno de Estética do dramaturgo Ariano Suassuna, que provocava em sala a ideia de que cinema não era arte.

Para Jomard – que entra no mundo acadêmico com a bagagem cheia de referências cinematográficas –, o gesto de Ariano era incômodo, principalmente pelo fato de o professor armorial não ser questionado pelos alunos, talvez pelo temor em enfrentar o “cânone sagrado” da pernambucanidade… Não para ele, que usou o próprio cinema como espaço de confronto com seu antigo professor, anos mais tarde…

JUNTO DE PAULO FREIRE
O amadurecimento da carreira docente veio a partir da indicação feita pelo professor Luiz Costa Lima, para que Jomard fosse assistente de Maria do Carmo Miranda, na Escola de Belas Artes. A alegria de ensinar numa instituição importante contrastava com a tensão de uma época marcada pela instabilidade política que o Brasil vivia, com o enfraquecimento do governo Goulart, a partir do golpe militar em 1964.

Nessa atmosfera de resistência intelectual e política, o professor conheceu Paulo Freire e participou ativamente do Serviço de Extensão Cultural (SEC), causando mal-estar na relação com a conservadora Maria do Carmo Miranda: “A ligação com a Filosofia e a História da Educação me aproximou de Paulo Freire. Comecei a frequentar Paulo Freire e notava que Miranda não gostava do grupo dele, que ela acusava de ser sofístico. Sofisticado não, sofístico. O que era uma opinião crítica muito fina, sofisticadíssima. Num determinado momento, Miranda fez um ofício me dispensando (em 1963)”, revela no livro de Paulo Cunha, A imagem e seus labirintos.

Ao ser integrado à equipe Paulo Freire, foi incumbido de trabalhar como presidente da Comissão Regional de Cultura Popular do MEC, visitando Brasília de dois em dois meses, para acompanhar as atividades do Círculo de Cultura instalado na capital do país.

Foi aí que Jomard iniciou a escrita do primeiro livro: Contradições do homem brasileiro (lançado em 1964), com apoio e revisão de Paulo Freire. Marcius Cortez lembra que o livro foi recebido com muita empolgação pelos amigos educadores, que ajudavam a divulgar o trabalho e conquistar os leitores.

Durante uma panfletagem que buscava espalhar a obra pela cidade, o carro de Miguel Arraes parou e levou uma cópia. Seria o primeiro leitor de Contradições do homem brasileiro? Pouco tempo depois, o governador foi deposto pelos golpistas.

Os planos de cerceamento aos artistas e intelectuais de esquerda destruíram sistematicamente as “ameaças” à estabilidade do regime imposto, pulverizando o SEC e perseguindo os integrantes do grupo, o que levou Paulo Freire ao exílio e a captura do livro de Jomard, vista pelo regime autoritário como obra subversiva.

Não bastava desarticular a equipe Paulo Freire, era preciso prender os professores ligados ao educador, para deixar a mensagem clara: os militares estão no poder. Jomard já imaginava que seria levado pela polícia, quando bateram à sua porta, à Rua Gervásio Pires. Para ele, foi previsível.

Levado para o Forte das Cinco Pontas, sua mãe esteve acompanhando a rotina do filho, levando comida e exigindo dos militares bom tratamento na prisão. Quando tocamos nesse assunto, Jomard não poupa as palavras: “Minha mãe ia lá. Ficava indignada! Ela ia diariamente com uma irmã dela ao Forte das Cinco Pontas. Mas não estou me envaidecendo disso, porque tem pessoas cretinas que acham que quando eu falo nisso (…) estou querendo me autopromover! Isso é uma cretinice fantástica da pernambucanidade! Eu, nessa prisão, fiquei numa mesma cela com Gregório Bezerra e Joel Câmara. Então, isso não interessa mais a ninguém! Porque esse pessoal diz que eu estou me autopromovendo, quando digo que fiquei quase um mês na companhia deles! Então, esse pessoal que pensa dessa maneira vai para aquele lugar do qual eles nunca deviam ter saído, que é o fundo do poço!”.

Após o resultado do Inquérito Policial Militar “concluir” que os integrantes da Equipe Paulo Freire eram considerados “perigosos”, Jomard perde o cargo de professor da UFPE aos 27 anos, com aval de Miranda, guiada pelo sentimento anticomunista de Gilberto Freyre, simpatizante do golpe militar, que denunciou nos jornais os “comunistas” que invadiram a SEC.

Além de perder o cargo na UFPE nos anos 1960, Jomard sofrera o mesmo golpe na Paraíba, ao ser expulso da Universidade Federal da Paraíba pelo regime militar, no auge do AI-5. Para manter suas contas em dia, trabalhou na Escola Superior de Relações Públicas (Esurp) até recuperar seu cargo nas duas instituições, com a abertura política nos anos 1980.

CÂMERA NA MÃO
Entre a experiência do golpe e a luta pela Educação, Jomard vivenciou a década de 1970 através dos impactos causados pelo Tropicalismo e o cinema super-8. Ao ser presenteado pela amiga Astrogilda de Carvalho com uma câmera 8 mm, sua ânsia criativa gerou mais de 40 produções audiovisuais, que transitaram do 8 mm ao VHS, entre 1974 e 2005.

De crítico de cinema, Jomard transformou-se em explorador das paisagens urbanas do Recife, resultando na produção de vários experimentos audiovisuais em película super-8. A partir de junho de 1974, Jomard estreia os filmes Babalorixá Mário Miranda, Maria Aparecida no carnaval, Ensaios de androgenia e Infernolento.

Ao lado do grupo de teatro Vivencial, produziu cerca de 13 filmes polêmicos na época – entre os quais destaco Vivencial I (1974), Toques (1975) e Inventário de um feudalismo cultural (1978) –, provocando as mentes conservadoras a partir de temas considerados tabu, como sexualidade, erotismo e crítica ao espírito provinciano em Pernambuco.

Nas suas produções fílmicas, Jomard sempre buscou trilhar um caminho fora do circuito comercial, utilizando a película super-8 como espaço de crítica e debate sobre a conjuntura político-cultural do país na ditadura. Preocupado em promover a circulação dos seus filmes e debater com o público suas propostas estéticas, ele participava, como realizador e jurado, de festivais e mostras de cinema no Recife e em Salvador, a exemplo das Jornadas Baianas decurta-metragem.

Sem dúvida, o filme mais comentado e aplaudido pelo público é O palhaço degolado (1977), que completa 40 anos este ano. O filme foi captado por Carlos Cordeiro, que lembra: “Não havia roteiro. Então, Jomard me dizia na hora o que ia fazer e até mudava o que tinha dito (…), na maioria das vezes, não se obedecia à técnica por conta da agilidade com que ele pensava e modificava sua maneira de se portar”.

Mesmo com o risco de perseguição intelectual, Jomard toma O palhaço degolado como espaço para exercer sua crítica aos dois mestres (Freyre e Ariano), que resistiram em reconhecer a inserção da cultura de massa como referência na produção contemporânea, destronando-os da mitomania que imortaliza suas verdades.

O palhaço tornou-se um personagem emblemático. Ao longo dos nove minutos de performance audiovisual, questiona a conjuntura vivenciada nos anos de chumbo, dominada pelas esferas conservadoras que ocupavam as cadeiras das Fundações e Conselhos de Cultura. Ao lembrar o processo de criação do filme, Jomard afirma que ele se coloca como contraponto à mistificação intelectual, principalmente no contexto em que a linha de pensamento que orientava a política cultural no Recife girava em torno de Ariano Suassuna e Gilberto Freyre.

Contra folclorização do passado, O palhaço degolado faz, como afirma o próprio JMB, “um balanço dos problemas que nós estávamos vivendo, que é a década, não é 1977, é a década. Tudo isso começou no Tropicalismo, que se posicionava contra o provincianismo. Por isso que ficou o fetiche do Tropicalismo com O palhaço degolado. Eu tenho filmes muito melhores, mas ficou esse, porque é justamente o porta-voz, é o pensamento tropicalista, isso é uma neoantropofagia”.

TROPICALISMOS
Foi através da parceria entre Jomard, o músico e compositor Aristides Guimarães e o jornalista e crítico de cinema Celso Marconi que o pensamento tropicalista ganhou fôlego no Recife. O clima era de rock and roll, rum e Coca-Cola à vontade na casa de Celso Marconi, onde se reuniam para traçar outras formas de vivência e leitura da cultura pernambucana, longe das solenidades oficiais.

Entediados com o elitismo tradicionalista, que rejeitava o novo, os três amigos unem forças e elaboram o primeiro manifesto Porque somos e não somos tropicalistas (1968), sintonizados com os ruídos da guitarra, que eletrizava a monotonia da paisagem canavieira: “A vanguarda contra a retaguarda! A loucura contra a burrice! O impacto contra a mediocridade! O sexo contra os dogmas! A realidade contra os suplementos! A radicalidade contra o comodismo!”.

Como Celso Marconi trabalhava no Jornal do Commercio, ele publicou o manifesto na sua coluna e o trio o lançou na Galeria Varanda, em Olinda, na exposição do artista Marcos Silva (1968). Os diálogos tropicalistas com os baianos – principalmente Caetano Veloso e Gilberto Gil – estimularam a produção do segundo manifesto em julho do mesmo ano, chamado de Inventário do nosso feudalismo cultural, com adesão de artistas de vários estados, como Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Bahia, unindo tropicalistas e integrantes do poema-processo.

Nem o primeiro nem o último da bossa-nova ou do Tropicalismo, mas sobrevivente de uma série de agitos estéticos e políticos. Jomard Muniz de Britto é um pensador da cultura, livre de categorizações ou rótulos. Caminhando pela cidade distribuindo corpo a corpo os panfletos da Poeticidade, ou Atentados poéticos, ele exerce suas reflexões sobre o presente, atualizando sua crítica e suas sensações sobre o atual cenário artístico: “Os Atentados são o que eu penso, a minha produção literária, digamos assim… escritural naquele momento. E ainda hoje eu vivo os textos”.

Antecipando o manguebeat,o professor já pensava e experimentava as conexões entre as raízes locais e a cultura global, estilhaçando as dicotomias entre o popular e o erudito. Jomard foi participante ativo no desmonte das cercas que demarcavam um regionalismo idealizado nos quintais da elite cultural pernambucana, à sombra de Gilberto Freyre e Ariano Suassuna.

 Ao valorizar a reinvenção do presente às margens dos emblemas e sagrações da brasilidade, Jomard segue em frente, atento às mudanças e disponível para mergulhar nas problematizações que fazem parte da complexa leitura da arte contemporânea no país.

Pela negação dos memorialismos, JMB chega aos 80 anos imerso no desejo constante pelo novo, o surpreendente. Despreocupado com as miudezas, datações históricas e com a morte: “Não tenho medo da morte, ela que tem medo de mim”.

Afinal, para atravessar a Rua João Fernandes Vieira, no Bairro da Boa Vista, onde ele mora, é preciso ser e estar contemporâneo, requisito básico para cruzar as pontes que ligam o Capibaribe ao mundo. 

Publicidade

veja também

Pontos de interesse nas ruas da cidade

O despertar da arte contemporânea

Os 100 anos d’Ella