As próprias histórias e crenças dos yanomamis dão a imensidão da tragédia. Davi Kopenawa afirma mais de uma vez que o minério precisa ficar embaixo da terra, porque sua extração libera a fumaça da doença. Parece até premonição, dada a destruição causada pela Covid-19, mas é só sabedoria mesmo. Porque, antes da atual pandemia, houve outras doenças espalhadas pela extração do minério, ao longo de séculos.
A água tem importância central não apenas na vida, mas na forma de ver o mundo, o que torna sua contaminação ainda mais grave. Os yanomamis têm sua teoria para a formação dos rios e lagos e falam de seres mágicos que habitam o fundo das lagoas. O filme abraça tudo isso. Quando o marido de Ehuana some, seu desaparecimento pode ser obra de onça, ou de queixadas. Mas também pode ser coisa da divindade sedutora que mora nas águas e sequestra homens. Essa e outras histórias são encenadas com a ajuda dos próprios yanomamis, que aqui não são meros atores, mas coautores.
Nem sempre a transição entre a documentação da realidade e o mergulho na visão de mundo yanomami é suave em A última floresta. Mas é bela a tentativa de captar o modo de pensar e as tradições da forma mais respeitosa possível.
Bolognesi diz que temeu a falta de compreensão do público não indígena, mas não retrocedeu na tentativa de fazer o filme sob o ponto de vista yanomami. Nos Estados Unidos e no Reino Unido há toda uma conversa entre os criadores da diáspora africana sobre fazer filmes e séries de televisão sob seu ponto de vista, falando não apenas do trauma, mas também da excelência, da cultura, da alegria. E assim têm surgido obras como Lovers rock, de Steve McQueen, sobre um romance que nasce num bailinho de apartamento nos anos 1980, e O amor de Sylvie, de Eugene Ashe, um melodrama romântico à moda antiga. Ou Uma noite em Miami…, de Regina King, em que quatro homens negros talentosos discutem racismo e diferentes formas de engajamento, mas também cantam, brincam e se divertem.
Nem sempre a transição entre a documentação e o mergulho na visão de mundo yanomami é suave, mas é feita da forma mais respeitosa possível. Foto: Pedro J. Marquéz/Divulgação
A visão íntima da vida na aldeia faz diferença. Não há como não se maravilhar com a bolsa trançada na hora para carregar a caça, ou os ornamentos sofisticados de penas, sementes e miçangas. Ou se encantar com o pensamento yanomami, que vê tudo interligado, e a floresta como um organismo vivo do qual eles fazem parte. Como escreveu Davi Kopenawa:
“A terra-floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos. Então, os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras das montanhas racharão com o calor. Os espíritos xapiripë, que moram nas serras e ficam brincando na floresta, acabarão fugindo. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los para nos proteger. A terra-floresta se tornará seca e vazia. Os xamãs não poderão mais deter as fumaças-epidemias e os seres maléficos que nos adoecem. Assim, todos morrerão”.
A última floresta é eficiente em desmantelar qualquer noção de primitivismo dos povos originários. Os indígenas tinham razão o tempo inteiro, e os acontecimentos dos últimos anos deixam isso muito claro. A destruição da Floresta Amazônica causa poluição e falta de água no Sudeste e nas plantações de soja do Centro-Oeste. Uma doença registrada pela primeira vez na China paralisa o mundo inteiro. Que nós, não indígenas, possamos ouvir e aprender.
EXTRA: Assista ao trailer internacional do filme
MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater, em Hollywood, e cobre festivais.