Curtas

A última floresta

A visão de mundo yanomami em documentário de Luiz Bolognesi e Davi Kopenawa

TEXTO Mariane Morisawa

01 de Abril de 2021

'A última floresta' desmantela qualquer noção de primitivismo dos povos originários em visão íntima

'A última floresta' desmantela qualquer noção de primitivismo dos povos originários em visão íntima

Foto Pedro J. Marquéz/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 244 | abril de 2021]

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Depois de Ex-pajé (2018), o cineasta Luiz Bolognesi se volta novamente aos povos originários brasileiros em A última floresta. Como seu longa precedente, este também foi apresentado na seção Panorama do Festival de Berlim, cuja primeira etapa, virtual, aconteceu entre 1º e 5 de março.

Na verdade, seu filme mais recente é uma espécie de sequência ou consequência do anterior. Ex-pajé era um belo e melancólico documentário com alguns elementos ficcionais sobre Perpera, xamã do povo Paiter Suruí, cujo primeiro contato com o homem branco se deu em 1969. A partir daí, os Paiter Suruí começaram a sofrer as invasões que costumam se seguir a essa aproximação. Suas terras são constantemente ameaçadas por seringueiros e garimpeiros. A tecnologia e as redes sociais fazem parte do dia a dia, assim como as armas e remédios. E sua fé também foi desprezada e substituída.

Perpera, que era um poderoso pajé, foi acusado pelo pastor da igreja evangélica instalada ali de ter um pacto com o Diabo e constrangido a abdicar de seus poderes e conhecimento, tornando-se zelador do templo. À noite, Perpera dorme com as luzes acesas, temendo a fúria dos espíritos da floresta por causa de seu abandono. Mas, quando os doutores ocidentais falham, os moradores não deixam de recorrer à sua medicina tradicional.

Em A última floresta, o diretor quis fazer algo diferente, mostrando, sim, as ameaças cada vez maiores às nossas primeiras nações, mas também a força das lideranças indígenas e dos pajés, a riqueza da visão de mundo e a beleza da cultura. E não só: Bolognesi, um homem branco, cisgênero, heterossexual, de São Paulo, dividiu a criação do documentário com o escritor, xamã e porta-voz Davi Kopenawa Yanomami, que é corroteirista.

Kopenawa, que costuma viajar o mundo levando a palavra de seu povo, queria usar o filme como flecha para defender os yanomamis e outros povos tradicionais dos ataques que vêm sofrendo. Os cerca de 30 mil yanomamis em solo brasileiro vivem em uma área remota ao norte do país, e sua terra foi reconhecida por decreto federal em 1992. Hoje, cerca de 20 mil garimpeiros estão dentro do seu território de 9,6 milhões de hectares, incentivados pela alta do ouro e pela falta de políticas governamentais para coibi-los. O governo de Jair Bolsonaro claramente não tem vontade política de impedir a invasão da terra yanomami, além de combater as ONGs que atuam na proteção dos povos originários e incentivar o estabelecimento das igrejas evangélicas. Os garimpeiros contaminam os rios e lagos com mercúrio, que é altamente nocivo para a saúde, e levam doenças como malária e Covid-19, que tem sido devastadora para os povos indígenas.

Mas Kopenawa não queria um filme em que os indígenas são coitados. Os garimpeiros estão em A última floresta. Mas não em cenas de violência, de morte e de doença. Sua simples presença basta para passar a sensação de perigo. Quando em pequeno número, são expulsos pelos yanomamis, munidos de arco e flecha – Kopenawa e outros líderes são contra o uso de armas de fogo.




O filme aborda tanto as ameaças às nossas primeiras nações quanto a força de lideranças indígenas como Kopenwa (foto 2). Foto: Pedro J. Marquéz/Divulgação

As próprias histórias e crenças dos yanomamis dão a imensidão da tragédia. Davi Kopenawa afirma mais de uma vez que o minério precisa ficar embaixo da terra, porque sua extração libera a fumaça da doença. Parece até premonição, dada a destruição causada pela Covid-19, mas é só sabedoria mesmo. Porque, antes da atual pandemia, houve outras doenças espalhadas pela extração do minério, ao longo de séculos.

A água tem importância central não apenas na vida, mas na forma de ver o mundo, o que torna sua contaminação ainda mais grave. Os yanomamis têm sua teoria para a formação dos rios e lagos e falam de seres mágicos que habitam o fundo das lagoas. O filme abraça tudo isso. Quando o marido de Ehuana some, seu desaparecimento pode ser obra de onça, ou de queixadas. Mas também pode ser coisa da divindade sedutora que mora nas águas e sequestra homens. Essa e outras histórias são encenadas com a ajuda dos próprios yanomamis, que aqui não são meros atores, mas coautores.

Nem sempre a transição entre a documentação da realidade e o mergulho na visão de mundo yanomami é suave em A última floresta. Mas é bela a tentativa de captar o modo de pensar e as tradições da forma mais respeitosa possível.

Bolognesi diz que temeu a falta de compreensão do público não indígena, mas não retrocedeu na tentativa de fazer o filme sob o ponto de vista yanomami. Nos Estados Unidos e no Reino Unido há toda uma conversa entre os criadores da diáspora africana sobre fazer filmes e séries de televisão sob seu ponto de vista, falando não apenas do trauma, mas também da excelência, da cultura, da alegria. E assim têm surgido obras como Lovers rock, de Steve McQueen, sobre um romance que nasce num bailinho de apartamento nos anos 1980, e O amor de Sylvie, de Eugene Ashe, um melodrama romântico à moda antiga. Ou Uma noite em Miami…, de Regina King, em que quatro homens negros talentosos discutem racismo e diferentes formas de engajamento, mas também cantam, brincam e se divertem.


Nem sempre a transição entre a documentação e o mergulho na visão de mundo yanomami é suave, mas é feita da forma mais respeitosa possível. Foto: Pedro J. Marquéz/Divulgação

A visão íntima da vida na aldeia faz diferença. Não há como não se maravilhar com a bolsa trançada na hora para carregar a caça, ou os ornamentos sofisticados de penas, sementes e miçangas. Ou se encantar com o pensamento yanomami, que vê tudo interligado, e a floresta como um organismo vivo do qual eles fazem parte. Como escreveu Davi Kopenawa:

“A terra-floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos. Então, os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras das montanhas racharão com o calor. Os espíritos xapiripë, que moram nas serras e ficam brincando na floresta, acabarão fugindo. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los para nos proteger. A terra-floresta se tornará seca e vazia. Os xamãs não poderão mais deter as fumaças-epidemias e os seres maléficos que nos adoecem. Assim, todos morrerão”.

A última floresta é eficiente em desmantelar qualquer noção de primitivismo dos povos originários. Os indígenas tinham razão o tempo inteiro, e os acontecimentos dos últimos anos deixam isso muito claro. A destruição da Floresta Amazônica causa poluição e falta de água no Sudeste e nas plantações de soja do Centro-Oeste. Uma doença registrada pela primeira vez na China paralisa o mundo inteiro. Que nós, não indígenas, possamos ouvir e aprender.


EXTRA: Assista ao trailer internacional do filme


MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater, em Hollywood, e cobre festivais.

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