Na visão de Raquel Carriço, a orientação do ideal consumista não vem apenas dos meios de comunicação. “Por que a TV está sempre apresentando um brinquedo novo? Eu acredito que a raiz do problema não é a oferta do brinquedo, mas a ausência da mãe que não ajuda a criança a interpretar o significado da posse dessas coisas tolas… E pior, faz com que o filho acredite que seu esforço em comprar tudo que ele quer é sinal de amor… E não é. Mas, no entendimento da criança, ela só é amada quando ganha um presente.” Segundo Raquel Carriço, a origem da questão é mais profunda. “Estamos desenvolvendo uma legião de consumistas insatisfeitos, não por causa da propaganda, mas pela ausência da família, da igreja, da escola na constituição de valores importantes para estes indivíduos na sociedade.”
“PARA SER FELIZ”
Para a psicanálise, a felicidade não se alcança ou, quando se alcança, muitas vezes perde o valor da busca que mantinha o interesse. A contradição presente em nosso tempo faz com que o direito à felicidade se torne uma obrigação em todas as fases da vida. Diante de tal pressão social, também expressa numa felicidade de aparência nas redes da internet, o que resta do ideal de ser feliz? “Penso que deixa cada vez mais de ser um ideal para ser um imperativo”, diz a professora Maria Eduarda da Mota Rocha, professora do Departamento de Ciências Sociais e da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE.
O confronto permanente com os apelos à felicidade, que são transmitidos por diferentes canais de comunicação, contribui para a difusão de códigos comuns, de entendimentos e de expectativas que guiam a ação individual, ressalta Ana Roque Dantas. “Ora, o ideal de felicidade socialmente valorizado se assenta, sobretudo, na responsabilidade individual e na capacidade de escolha, devendo a felicidade ser conquistada por iniciativa pessoal. Este modelo tem inerente a convicção de que as pessoas são autônomas e têm o poder de moldar as suas vidas, sendo a felicidade o resultado desse ‘trabalho’. A felicidade surge assim como responsabilidade de cada um, expressa pela ideia de que ser feliz é uma opção, culpando os infelizes pelo seu fracasso.”
Fecha-se o círculo da felicidade idealizada não como linha de chegada, mas ponto de partida para uma vida plena: anulam-se virtualmente as adversidades. “O modelo dominante é o de que, mesmo perante condições adversas, alheias e impossíveis de controlar, sermos felizes só depende da vontade própria. E isso gera frustração e sentimentos de inadequação social”, diz Ana Roque.
A psicanalista lacaniana Bianca Coutinho Dias reforça o teor ilusório da felicidade ideal. Ela recorda que, em 1970, em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, Lacan afirma que “a felicidade, a menos que seja definida de modo bastante triste, ou seja, ser como todo mundo (…) a felicidade, é preciso dizê-lo, ninguém sabe o que é”. Um desconhecimento básico que bate de frente com a certeza propagandeada pela cultura contemporânea, dos festivais de música ao Facebook. Bianca Dias deixa claro: para a psicanálise, a ideia de felicidade como ideal é um equívoco. “Estar suficientemente feliz na vida, como enunciou Lacan nos EUA, em 1977 – além da óbvia e irônica referência ao american way of life – indica uma nova posição, na qual o possível seria estar feliz por estar vivo, por estar na vida, incluída aí a morte como elemento irredutível e o mal-estar daquilo que nos ultrapassa.”
No afã da felicidade, a inevitável fronteira da morte, concebida negativamente pelo Ocidente, faz da sua certeza uma razão de melancolia. Essa felicidade que ninguém sabe o que é, de repente, surge em nós por contraste, com uma pancada existencial diante da morte de alguém próximo. Conflitos desnecessários se apequenam, preocupações vãs acham seu secundário lugar, e o que importa, nem que por um relance, se descortina. Continuaremos sem saber o que é, mas extraídos subitamente do cotidiano neurótico em que estamos mergulhados, somos capazes de enxergar o que não é a felicidade.
“Ser feliz apenas por estar vivo, sem isso nem aquilo, sem adiar ou procrastinar, porque a morte existe e não espera, costuma ser difícil para o neurótico”, adverte Bianca Coutinho Dias. Para ela, o imortal neurótico, com todo o tempo do passado ou do futuro à sua disposição, anula o hoje. “Anula o encontro, a contingência e o possível. A análise deve levá-lo, no mínimo, a parar de temer a morte e atribuir maior valor ao dia a dia, no qual praticaria o bem-dizer da felicidade possível. Assim, essa felicidade do final de análise tem algo de um saber sobre a morte com o qual nos deparamos no estar vivo e prontos para as diferentes circunstâncias.”
Assim se consuma uma espécie de descoberta, de fascinação comum à vista do conhecimento que se abre, mesmo do indefinível. Bia Dias resume: “A felicidade é um lampejo: aquilo que não se adia, que está na dimensão do ato, por mais que seja difícil se sustentar. O sujeito feliz é aquele livre do aguilhão que o impele à busca de sentido, pode desfrutar da palavra: poesia, corpo, amor… Alegria que o ancora na vida com todas as suas vicissitudes.
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