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João Donato: Um músico atemporal

Discos inéditos, relançamentos e documentário marcam os 80 anos de um dos mais refinados compositores do país, precursor da bossa nova

TEXTO Marcelo Robalinho

01 de Agosto de 2014

João Donato

João Donato

Foto Ekaterina Bashkirova/Divulgação

Na sucessão de eventos ou fenômenos que compõem a vida, o tempo construído por João Donato aponta para o meio, nunca o fim. Com vários projetos previstos para ocorrer entre 2014 e 2015, em comemoração aos seus 80 anos de idade, completos agora em agosto, o compositor, pianista e arranjador parece viver o melhor momento da carreira. Reverenciado por colegas de trabalho e pela crítica e admirado pelo público das mais diversas faixas etárias, ele desafia o tempo, mostrando que a maturidade não lhe trouxe acomodação. Ao contrário disso, esbanja produção, vitalidade e jovialidade.

Os lançamentos dos CDs O couro tá comendo (vol. 1) e O bicho tá pegando (vol. 2) são os mais recentes. Produções independentes do selo Acre, do próprio Donato, com a gravadora Discobertas, os discos trazem o registro ao vivo da apresentação do artista em dezembro de 2013, no Rio de Janeiro, em homenagem à extinta casa de shows Jazzmania. Com cerca de uma hora de duração cada, os álbuns passeiam pelos sucessos do compositor, além de faixas pouco executadas e novas parcerias com Nelson Motta, Paulo Moura, Moacyr Luz, Mihay Freire e Gabriel Moura. Embora sejam complementares, os dois serão lançados separadamente.

No próximo 27 de setembro, será a vez de o artista desembarcar em Montreux, na Suíça, para comemorar os seus 80 anos numa apresentação na noite Brasil Bossa e Samba, com participação de Gilberto Gil, um dos seus principais parceiros musicais. “Conheci o Donato logo depois da minha volta do exílio em Londres, em 1972. Ele transita muito facilmente entre os círculos prestigiosos e mais desconhecidos da música, o que reflete a natureza dele, de uma pessoa simples. A gente se conheceu através da Miúcha, que é uma amiga em comum. Acabamos nos tornando amigos e parceiros. Tenho muito apreço por ele. Faz uns três anos que não o vejo e estou com saudades dele”, afirma Gil, que abriu uma exceção na sua folga, em Salvador, durante os jogos da Copa do Mundo, para falar sobre Donato por telefone à Continente. Das parcerias com Gil, Lugar comum foi a primeira, seguida de outras, como Bananeira, Emoriô e A paz (Leila IV), a mais popular de todas. A história envolvendo esta última canção é curiosa. Num final de tarde, lembra Gil, chega Donato à casa dele trazendo consigo uma fita com várias canções, todas chamadas Leila (uma antiga namorada do pianista), cada uma com uma numeração.

“Eu disse que não podia ficar porque tinha um compromisso marcado. Mesmo assim, ele me colocou para ouvir a fita. Fui ouvindo até que ele cochilou no sofá. A Leila IV foi a que me chamou mais atenção. Na sequência, peguei papel e caneta e fui escrevendo a partir do sono tranquilo dele, que me remetia à ideia de paz e calmaria. Depois de uns 15 minutos, eu tinha feito a letra toda. Eu o acordei e ele achou linda a canção”, diz o baiano, que apelidou Donato de João Donatural em função do jogo de palavras entre o nome dele e a nota musical dó.

MINISSÉRIE
Gil é um dos nomes que participarão da minissérie documental Simplesmente João Donato, em fase de finalização e que será veiculada no início de 2015, pelo Canal Brasil. Dirigida pela diretora e produtora Tetê Moraes e pelo poeta e letrista Lysias Ênio (irmão de Donato), e dividida em quatro episódios de 26 minutos cada, a série apresentará um painel da vida e obra do artista.


Gilberto Gil participará do show de Donato em Montreux, em setembro. Foto: Divulgação

Nela, serão enfocados os primeiros contatos com a música, ainda em Rio Branco, no Acre, e o início da sua carreira profissional no Rio de Janeiro, aos 15 anos, no grupo Altamiro Carrilho e Seu Regional, passando pela fase pré-bossa nova, o período em que morou nos Estados Unidos (de 1959 a 1972), onde tocou com grandes nomes da música latina e do jazz, como o trompetista e cantor Chet Baker, até a volta ao Brasil, quando se consolida como um dos principais artistas de sua geração.

Além de Gil, o documentário prevê encontros musicais com artistas importantes da música, como Caetano Veloso, João Bosco, Joyce, Leila Pinheiro, Nana Caymmi, Chico Buarque, Emílio Santiago, Gal Costa, Martinho da Vila, Henri Salvador, Lisa Ono, Sérgio Mendes e Bud Shank.

Segundo Tetê Moraes, a ideia de trabalhar com Donato vem de meados dos anos 2000, quando conheceu o compositor pessoalmente. Naquela época, pensou-se em fazer um longa, mas não foi possível levar adiante o projeto por falta de patrocínio. Com a reestruturação do projeto para uma série documental, foram obtidos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual e patrocínio do Canal Brasil.

Com cerca de 200 horas de gravações coletadas nos últimos anos, a minissérie conta com parceiros e apoiadores, a exemplo da TV Pernambuco, que cedeu imagens da apresentação de Donato ao lado da banda paulista Bixiga 70 no Carnaval deste ano no festival Rec-Beat, em homenagem aos 41 anos do lançamento do célebre disco Quem é quem, que marcou a volta de Donato ao Brasil e a estreia das canções com letras em parceria com outros compositores, na época por sugestão do falecido cantor Agostinho dos Santos (1932-1973).

“Lembro que ele foi lá à minha casa e nós copiamos uns sete ou oito cassetes para distribuir para diversos letristas. Como eu já tinha feito algumas letras antes, fiquei com um cassete também. Foi daí que saiu, por exemplo, Até quem sabe, gravada primeiro por ele e depois por vários outros artistas. Hoje, conta com mais de 30 gravações. Foi o meu début, sendo talvez uma das mais reproduzidas e melhores composições da dupla”, conta Lysias Ênio.


Com seu irmão, o letrista Lysias Ênio, e o seu filho, o músico Donatinho. Foto: Divulgação

Sobre o processo de composição, Lysias diz que dificilmente os dois trocam ideias sobre as músicas, em sua grande maioria, por já terem sido gravadas anteriormente como tema instrumental. É o caso de Até quem sabe, intitulada de You can go numa gravação anterior. “Usualmente, ele me dá a melodia pronta para colocar a letra. Depois de pronta, a gente passa a limpo. Aí, sim, trocamos ideias”, afirma o irmão, que mora no Recife e atualmente passa uma temporada no Rio, para a finalização do documentário. Nascido num núcleo familiar em que o pai arranhava o bandolim, a irmã mais velha tocava piano e Donato, acordeão, Lysias diz que decidiu enveredar pelo mundo das palavras por achar que não tinha vocação para aprender um instrumento como o irmão. Das cerca de 150 letras que já escreveu até hoje, 40 aproximadamente foram para melodias de Donato.

BIOGRAFIA
Outro projeto em fase de elaboração é a biografia do músico acreano. O responsável pela empreitada é o jornalista Antônio Carlos Miguel. Especializado em cobertura musical desde os anos 1970, ele iniciou o projeto há cerca de 10 anos por iniciativa própria, ainda na época em que trabalhava no jornal O Globo. Com cerca de 20 entrevistas já realizadas, o autor pretende aproveitar a comemoração dos 80 anos para finalizar e lançar a obra. Uma das curiosidades que deverá constar no livro é a participação importante do músico, nos anos 1970, no primeiro grande sucesso de Clara Nunes, Conto de areia, além da elaboração de arranjos para Gal Costa, Luiz Melodia e Alaíde Costa.

“A vida pessoal não será a preocupação maior do livro. A ideia é fazer um trajeto musical para entender o encanto que ele mantém entre as pessoas das mais diferentes gerações. Donato é muito identificado com a bossa nova, mas ele aparece antes e ajuda na formação do movimento. João Gilberto dizia que a forma do Donato de tocar acordeão o influenciou na batida do violão. Tom Jobim era louco pelo piano do Donato. Quando a bossa nova acontece de fato, ele vai para os Estados Unidos, achando que iria tocar jazz, mas acaba tocando ritmos afro-cubanos. É um cara à frente ou atrás do seu tempo. Ele caminha numa brecha do tempo interessante”, atesta Antônio Carlos Miguel, que concedeu entrevista via Skipe de Miami, para onde havia ido no início de julho para participar de uma reunião do Grammy Latino, do qual é membro votante.

Para a cantora e compositora Tulipa Ruiz, o que João Donato faz é universal e atemporal. “A obra dele é essencial para a compreensão da música da pré-bossa nova até os dias de hoje. Ele foi e é gravado por grandes nomes da música, dos mais velhos aos mais novos e é referência não só como compositor, mas como instrumentista e arranjador. Na minha opinião, é o mais elegante. A primeira vez que me liguei no Donato foi com disco Cantar, da Gal, que tem composições e arranjos dele. Foi amor à primeira ouvida”, diz.

O primeiro encontro de Tulipa com o compositor ocorreu em uma coletiva do Rock in Rio, quando tocaram a música Efêmera juntos. “Ele trouxe a partitura da minha música escrita à mão e eu guardo isso com muito amor. Participar do show do disco Quem é quem, em fevereiro deste ano em São Paulo, também foi especial. Donato é mais jovem que todo mundo, ou melhor, jovem há mais tempo que a gente”, considera Tulipa, que concedeu entrevista à Continente por e-mail durante sua turnê pela Europa, mês passado.


Apresentação com Tulipa Ruiz, no festival Rec-Beat, no Recife.
Foto: Flora Pimental/Divulgação

CASAMENTO
A jovialidade e a simplicidade também são marcas de Ivone Belém, esposa e empresária do pianista. “É um privilégio estar ao lado dele. Mas eu vejo muito o lado do casamento também, porque muitas vezes não é fácil conciliar com o trabalho. Do mundo dele, o que mais me encanta é saber como uma pessoa tão simples pode brotar tudo isso e como ele influencia tanto as pessoas. Para mim, música era entretenimento. Hoje, vejo como uma coisa muito mais séria, mais do que uma crença. A forma como o João leva o seu trabalho é admirável. Nada o tira do foco da música. Foi uma grande lição, porque eu passei a entender os grandes compositores”, afirma.

O começo da relação amorosa entre os dois foi curioso, diz ela. “A gente se encontrou por acaso em Brasília, em 1999. Eu nem era fã da música do João, mas sabia que ele era legal. Foi uma paixão fulminante. No nosso primeiro encontro afetivo-amoroso, ele teve um infarto e ficou internado em Brasília. Fiquei cuidando dele no hospital. E acho que ali se desenvolveu um relacionamento mais firme entre a gente. Felizmente, ele não ficou com nenhuma sequela e a gente acabou se casando pouco mais de um ano depois”, revela.

Inicialmente auxiliando nos conteúdos do site, ela acabou recebendo o convite para trabalhar com ele em 2005, tendo criado, em 2012, o Instituto João Donato, na intenção de organizar o acervo, pensando no presente e no futuro. Na casa deles existe um armário com 18 gavetas, cada uma com uma média de 100 fitas cassete. “Tem desde músicas inéditas, gravações ao vivo e em estúdio, e músicas compostas com indicação de letristas. Temos também manuscritos, LPs, fitas, toda a história oral dele solta em entrevistas por aí que queremos disponibilizar ao público desde agora, e não só para as futuras gerações”, diz Ivone.

Parte desse material sonoro está sendo digitalizado pela Discobertas e deve ser lançado no final deste ano no formato box. Segundo Marcelo Fróes, dono do selo, pelo menos três discos inéditos – sendo dois de estúdio e um ao vivo – estão previstos na caixa, que deverão revelar uma fase até então considerada obscura de Donato, entre 1976 e 1986, em que não lançou trabalhos.

“Queremos mostrar que o Donato não ficou parado nesse período. Não havia espaço para a música instrumental. Mesmo assim, ele foi atuando de forma independente e guardando toda a sua produção musical, que conserva uma boa qualidade sonora e um valor histórico fantástico. O armário dele é um tesouro”, constata o produtor e pesquisador musical. 

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