Octavio Paz
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[conteúdo vinculado à reportagem de "Leitura" | ed. 164 | ago 2014]
No ano de 1990, por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, Octavio Paz foi mundialmente celebrado e reconhecido pelo “labor como insígne crítico, poeta e voz da consciência não somente do México, mas de toda humanidade latino-americana”. Não sei ao certo o que a academia sueca pretendeu dizer com “humanidade latino-americana”, nem acredito nessa setorização ou loteamento do humano, a não ser quando se trata de geografia ou política: o testemunho vital e intelectual de Octavio Paz é, a meu ver, um legado humanista universal. O amplo reconhecimento internacional – incluindo aí os Estados Unidos e a Europa –, além da fortuna crítica e das traduções de suas obras, tanto poéticas quanto ensaísticas, para mais de 30 idiomas, são a prova material disso. No entanto, apenas a leitura daquilo que escreveu – principalmente em seus ensaios – é que pode atestar a filiação intelectual do mexicano a certa tradição humanística de pensamento, por certo muito bem-representada em língua castelhana por pensadores como Baltasar Gracián, Luis Vives, Miguel de Unamuno, José Ortega y Gasset e María Zambrano.
Uma das figuras mais representativas e relevantes dessa tradição humanista, Francesco Petrarca, defendia a postura intelectual de aceitar humildemente a ignorância humana em relação às coisas divinas e duvidar das pretensões de que o homem pudesse atingir um tipo de conhecimento completamente objetivo da natureza, totalmente independente de sua perspectiva subjetiva. Michel de Montaigne, cerca de 200 anos depois, reviveu essa ideia e legitimou filosoficamente um tipo de conhecimento que se origina a partir de uma exploração interior, e que tem como fulcro a riqueza da experiência humana. Essa valorização da perspectiva individual e da vivência concreta, fundamental no humanismo, explica por que a filosofia escolástica foi tão duramente combatida pelos humanistas do Renascimento: justamente por se centrar numa preocupação exclusivista com questões metafísicas, com a perfeição do encadeamento lógico dos argumentos e com uma estrutura sistemática e abstrata de todo pensamento filosófico, mas que deixava de lado os problemas ordinários da existência humana temporal, e desprezava a experiência individual como forma de conhecimento válido.
A produção ensaística de Octavio Paz pertence a essa linhagem, e as evidências em apoio a essa afirmação são várias. Para Paz, a linguagem é um organismo vivo e as palavras “são rebeldes à definição”; sua concepção de conhecimento resiste, pois, aos limites de uma visão exclusivamente racionalista e logicista, e tampouco se dobrou, em nenhum momento, frente às pretensões cientificistas de diversas correntes teóricas hegemônicas em sua época. Não seria correto, contudo, classificá-lo como “irracionalista”: a crítica do ensaísta se dirige não à razão e à lógica, mas à mistificação delas, a partir da criação de uma ordem abstrata, fechada, sistemática e imutável como base essencial do universo. Distanciando-se de qualquer versão idealista de pensamento, Paz aceita que mesmo a nossa lógica mais “pura” é algo totalmente contingente, pois nasce, assim como a própria linguagem, de nossa interação cotidiana com o mundo. Entretanto, ainda que contingente e orgânica, a linguagem possui necessariamente uma estrutura lógica, sem a qual – reconhece o ensaísta – não poderia funcionar.
Em uma parte fundamental de O arco e a lira, escreve Paz: “As palavras se conduzem como seres caprichosos e autônomos. Sempre dizem ‘isto e o outro’ e, ao mesmo tempo, ‘aquilo e o de mais além’. O pensamento não se resigna; forçado a usá-las, uma e outra vez pretende reduzi-las às suas próprias leis; e uma e outra vez a linguagem se rebela e rompe os diques da sintaxe e do dicionário. Léxicos e gramáticas são obras condenadas a não serem terminadas nunca. O idioma está sempre em movimento, ainda que o homem, por ocupar o centro do redemoinho, poucas vezes se dê conta dessa incessante mudança”. É justamente a liberdade garantida pela retórica do ensaio que permite, àqueles que o cultivam, o uso de ferramentas poéticas como a metáfora e as analogias, além do discurso indireto, digressivo, subjetivo, circular... O grande valor dos ensaios do autor de O labirinto da solidão reside justamente em seu poder criativo, metafórico, na beleza sensual de suas imagens, em um tipo de rigor ao mesmo tempo intelectual e estético, que impressiona a inteligência e a sensibilidade do leitor.
É tarefa estéril querer localizar o pensamento de Octavio Paz – principalmente aquele revelado em sua ensaística – dentro de uma teoria exclusiva ou de um único sistema filosófico, ainda que ele tenha sido influenciado por várias correntes teóricas e literárias de seu tempo. Sua obra reflete uma negação peremptória de esquemas, teorias e sistemas fechados de pensamento. E essa é outra evidência de sua filiação humanista: não encontramos nele o trabalho de um especialista, de alguém versado em uma determinada área do conhecimento. Em um mesmo texto seu, é comum a presença de vários temas entrelaçados, perspectivas diferentes em diálogo franco e mesmo contradições lógicas impensáveis dentro dos limites de um pensamento analítico. Em seus ensaios, não há a pretensão de se esgotar um tema ou de serem estabelecidas definições últimas: o importante é buscar – ensaiar – novos caminhos, novas formas de ver. Dizia Ortega y Gasset que o ensaio é “a ciência sem a prova explícita”; nesse gênero, não é necessário provar nenhum argumento de maneira definitiva, pois não se busca a certeza, nem a objetividade. A ânsia moderna, racionalista e cartesiana por um saber apodítico (universal e necessário) é deixada de lado. O ensaísta se alimenta da constatação do caráter contingencial e provisório de nossa existência e de tudo aquilo que presumimos saber.
Num elogio a um de seus maiores mestres intelectuais, escreveu Octavio Paz: “Diz-se que Alfonso Reyes é um dos maiores prosadores da língua; é preciso acrescentar que essa prosa não seria a que é se não fosse a prosa de um poeta”. Tais palavras caberiam perfeitamente numa caracterização do próprio Paz, porque seus ensaios são também peças de um criador da linguagem, de um poeta. ![]()
EDUARDO CESAR MAIA, jornalista, mestre e doutor em Teoria da Literatura.
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