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Cicloativismo

Tendência mundial de deslocamento nas metrópoles congestionadas, o veículo ainda carece de espaço no asfalto e de leis que protejam a integridade física dos ciclistas

TEXTO Olivia de Souza

01 de Abril de 2013

Foto Anderson Freire

O cenário é caótico: trânsito pesado, motoristas tensos, em carros equipados com todo tipo de blindagem. Dentro dos veículos, os corpos estão prontos para reagir a qualquer movimento considerado hostil: buzinadas e xingamentos são o que há de mais corriqueiro. Na rua, o clima belicoso e suscetível prossegue. O pedestre tanto pode ser vítima quanto agente de transtornos, mas sempre precisa estar atento à ação dos motoristas, sobretudo de carros e motos. Sobre duas rodas, os ciclistas também buscam seu espaço, quase sempre espremidos entre veículos e o meio-fio. Nessas ruas, tantas vezes estreitas, tantas vezes esquecidas de leis e limites, também transitam os veículos rudimentares e movidos à energia humana e animal: carroças, carrinhos de ambulantes. Isso tudo somado aos que estão estacionados, regular e irregularmente. Entre uma calçada e outra (claro, quando há calçadas livres e em bom estado, em que o transeunte ande com segurança), o transporte cada vez mais se desumaniza, torna-se uma agressão diária.

Dentro desse contexto, questões como mobilidade urbana entram com urgência no debate público, e o uso da bicicleta vai se tornando símbolo de uma mudança de comportamento. Com atributos como baixo impacto ambiental, baixo custo, alto nível de socialização e benefícios para a saúde, ela, aos poucos, representa uma revolução pacífica que, paulatinamente, se instaura na dinâmica da sociedade, mobilizando um movimento de cicloativistas em prol da criação de políticas urbanas favoráveis ao seu uso como meio de transporte, e não mero instrumento de lazer.

Qual o lugar em que queremos viver? Um dos princípios que norteiam o livro Life between buildings (“A vida entre prédios”, ainda sem tradução para o português), do arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl, é de que o ser humano sabe mais do habitat natural de todas as outras espécies, mas desconhece o dele mesmo. Nele, o autor desenvolve a noção de espaço público, apontando diversos fatores que contribuem para sua qualidade. Ele ainda discorre sobre a noção deturpada que resulta em políticas públicas desastrosas, focadas na valorização do automóvel em detrimento das pessoas. E aponta as ruas e praças como elementos básicos para a organização de uma cidade.

Não à toa, Copenhague é hoje considerada um dos melhores locais do mundo para pedalar. Gehl tem papel importantíssimo nisso. Nas últimas cinco décadas, a administração pública da capital dinamarquesa tem focado na melhoria da qualidade de vida de pedestres e ciclistas, movimento que começou quando, em 1962, os automóveis foram impedidos de circular pela Stroget, principal via da cidade, e hoje um dos seus principais cartões-postais.


População urbana se mobiliza pela valorização do ciclismo. Foto: Anderson Freire

À frente do Gehl Architects, escritório de arquitetura com clientes em vários países, Gehl presta consultoria para diversas cidades, em projetos que visam humanizar os espaços, como a construção de ciclovias, trânsito compartilhado e revitalização de centros. Seu projeto para Nova York é um bom exemplo a ser seguido. Com a intervenção proposta, a Big Apple possui hoje um total de 800 quilômetros de malha cicloviária, transformou 13 ruas em praças para pedestres – além de outras 50 que estão em construção.

Considerando a importância que as “magrelas” têm para o equilíbrio de Nova York, a secretária de transportes Janette Sadik-Khan (nomeada em 2007 pelo prefeito Michael Bloomberg) vem, há cinco anos, transformando a cidade num lugar possível para as bicicletas. Em recente entrevista ao jornal Valor Econômico, ela afirmou que essa não é uma realidade tão distante e que cidades brasileiras com um percentual alto de motoristas, como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, podem se adequar da mesma forma.

De acordo com o arquiteto e urbanista nova-iorquino Jeff Risom, da Gehl Architects, é totalmente viável a presença de bicicletas como meio de transporte em qualquer cidade grande; o ponto-chave é saber integrá-las às outras formas de transporte público. De forma que, se todos pudessem usar a bicicleta, mesmo que para pequenos trechos, eliminaria o congestionamento para quem tivesse que realizar deslocamentos maiores de automóvel. Risom observa cinco lições de Copenhague que podem servir de exemplo para as cidades brasileiras: as pessoas devem ser prioridade das administrações públicas; deve-se pesquisar de que forma elas usam a cidade; testar algumas ideias baseadas em projetos pilotos; colocar os planos de maior escala em prática; estabelecer um senso de respeito entre as pessoas que usam a cidade, tornando-a um lugar convidativo a usuários de diferentes meios de transporte, crianças, jovens e idosos.


A capital dinamarquesa, Copenhague, é apontada como a melhor para se andar de bicicleta. Foto: Reprodução

MASSA CRÍTICA
O Critical Mass (no Brasil, “Massa Crítica”, ou “Bicicletada”) é o principal exemplo do ativismo sobre duas rodas. O evento surgiu em 1992, na cidade de São Francisco (EUA), e acontece toda última sexta-feira do mês em diversos lugares do mundo, com cada vez mais participantes. Na ocasião, ciclistas, skatistas, patinadores e pedestres se reúnem num enorme passeio em combate à cultura do carro. Diferente de outros movimentos sociais, a “Bicicletada” caracteriza-se pela estrutura horizontal e ausência de hierarquias, sem líderes ou organizadores.

Completando quatro anos de atividades no Recife, o movimento é considerado um dos primeiros instrumentos de luta na cidade por maior espaço e respeito no trânsito. Durante o trajeto, seus participantes distribuem panfletos a pedestres e motoristas, com o objetivo de mostrar uma alternativa ao transporte de quatro rodas. “Ela surge no sentido de divulgar a cultura da bicicleta, e em locais onde ela não é um meio de transporte consolidado, como é o caso do Recife; acaba tomando ares de protesto, pela reivindicação de espaço e de respeito”, explicou o engenheiro e cicloativista Daniel Valença.

Daniel participou de sua primeira “Bicicletada” em 2011, quando vendeu o carro, que não usava com tanta frequência, para utilizar a bicicleta como seu principal meio de locomoção. Isso, segundo ele, resultou numa verdadeira mudança de percepção de seu entorno. “Você passa a ver a cidade de uma forma diferente, mais atenta, coisa que não dá para fazer de dentro do carro. Fui percebendo toda a liberdade que ela proporcionava, e a sua dinâmica com a cidade, que era mais interessante”, afirmou. Ele é responsável pelo site colaborativo Cicloação, ferramenta de gerenciamento das atividades dos cicloativistas recifenses, criado com o intuito de reunir informações como documentos, eventos, vídeos e fotografias de ações, além de fazer usos de redes sociais como Facebook e Youtube para divulgá-las e facilitar o contato entre seus participantes.


Projetos de Jan Gehl (centro) influenciaram a secretária de transportes nova-iorquina Jannete Sadik-Khan (esq.). Foto: Reprodução

A enorme quantidade de carros nas ruas e avenidas das grandes cidades, a pressa e o desrespeito dos motoristas tornam o ato de pedalar no trânsito uma atividade praticamente impossível, considerada por muitos até mesmo “suicida”. Em contrapartida, observa-se um número cada vez maior de ciclistas dispostos a encarar as ruas e conquistar seu espaço.

Em Pernambuco, parte disso se deve ao trabalho de uma outra ramificação do ativismo sobre duas rodas. O Bike Anjo é um grupo voluntário de ciclistas dispostos a ajudar qualquer pessoa que queira adotar esse novo hábito, dando noções básicas de condução em vias urbanas, dicas de segurança, regras de sinalização e legislação de trânsito. Atendendo a toda a Região Metropolitana do Recife, o Bike Anjo acompanha o ciclista iniciante durante o trajeto escolhido, oferecendo rotas alternativas para que ele possa fugir ao máximo dos congestionamentos, e com segurança.

“Não há como discutir mobilidade urbana em 2013 e não falar de bicicletas inseridas no cotidiano das pessoas. Desde que comecei a me envolver com o cicloativismo, em 2010, venho participando de reuniões, fóruns e debates, tanto na esfera estadual quanto municipal, sobre essa temática. Os avanços foram poucos, quando existiram. Mesmo assim, o número de ciclistas que utilizam a bicicleta dessa forma é crescente”, comenta o ciclista Enio Paipa, responsável por trazer o Bike Anjo para Pernambuco. Segundo ele, o desrespeito dos motoristas no trânsito é um dos principais fatores que afastam os ciclistas das ruas. Soma-se a isso a pequena estrutura cicloviária da cidade, de cerca de 30 quilômetros apenas.


As manifestações contra a cultura do carro têm como marco o ano de 1992, quando houve o primeiro Critical Mass, em São Francisco. Foto: Divulgação

Além da melhoria da qualidade de vida, Enio aponta que o uso da bicicleta lhe trouxe uma visão bem mais humana do trânsito e da cidade. “Quase todas as pessoas que conheci durante esses três últimos anos utilizam a bicicleta como veículo. Somos fraternos, solidários e defendemos sua causa como veículo. Com relação à saúde, os números na balança falam um pouco sobre a melhora. Passar de 103 para os 87 quilos em dois anos, sem regimes nem sofrimentos. Fora outros aspectos hormonais, que me fazem uma pessoa muito mais feliz do que eu era”, completa Enio.

Durante o fechamento desta edição, acidentes trágicos envolvendo ciclistas chamaram a atenção da população, devido à forma brutal em que ocorreram, e o curto intervalo de tempo entre eles. Um ciclista em São Paulo teve o braço arrancado pelo força do impacto de um carro, enquanto um garoto de 16 anos morreu ao ser atropelado violentamente na travessia de uma avenida no Bairro de Boa Viagem, no Recife. Notícias como essas ganham cada vez mais espaço na mídia, não por seu ineditismo – afinal, bicicletas (e acidentes) sempre estiveram aí –, mas por serem consequência de uma situação que se torna insustentável, a cada dia que passa, e o debate, então, amplia-se.

Enio Paipa considera que a relação ciclista-motorista ainda não é a ideal, mas que melhora a cada dia, apesar de eventuais sustos no trânsito. “Um, por conta do crescente número de ciclistas nas ruas. Dois, o trânsito está cada vez mais parado e isso ajuda a vida do ciclista, já que os carros não conseguem desenvolver velocidades altas. Porém essa é uma relação que precisa ser 100% legal. Vejo uma melhora, mas todo dia ainda levo a famosa ‘fina educativa’ (quando o motorista passa bem rente ao ciclista), que não educa nada, só traz insegurança”, comenta. Poucos condutores sabem, por exemplo, que durante o trajeto deve-se manter uma distância de 1,5m em relação à bicicleta. “Hoje, com minha experiência, me assusto menos, mas um deslize pode ser fatal.”

BIKESHARING
Foi na Holanda, durante a década da 1960, que surgiram os primeiros lampejos do ciclismo comunitário. Na ocasião, 10 bicicletas modelos old dutch pintadas de branco eram deixadas nas ruas de Amsterdam à disposição de quem quisesse utilizá-las. A ideia do happening, batizado de White Bycicle Plan (“Plano das bicicletas brancas”), partiu do designer industrial e político Luud Schimmelpennink, que tinha o objetivo de criar uma opção de transporte comunitário na cidade. Todas acabaram confiscadas pela polícia.


O projeto Porto Leve trouxe o modelo de bikesharing ao Recife, na região central da cidade. Foto: Alexandre Gondim/JC Imagem

Schimmelpennink ainda tentou institucionalizar o projeto junto à prefeitura, mas teve todos os pedidos negados e o principal argumento alegado era de que “o futuro era do automóvel, e não das bicicletas”. Os anos passam, os valores se invertem e, a despeito de tais justificativas, hoje, pelo menos cerca de 50% da população holandesa dispõe de uma bicicleta para realizar seus deslocamentos entre os mais de 20 mil quilômetros de ciclovias espalhadas pelo país.

A partir dos anos 2000, a ideia de Schimmelpennink foi retomada em algumas cidades europeias e, com o tempo, foi virando tendência em diversas metrópoles ao redor do globo, como Londres, Washington e Paris (o maior de todos os sistemas existentes, com mais de 20 mil bicicletas disponíveis). Implantado no Brasil de maneira bem-sucedida no Rio de Janeiro, e mais recentemente em São Paulo, o bikesharing, ou compartilhamento de bicicletas, chegou ao Recife em janeiro deste ano, através do Porto Digital, em parceria com a Prefeitura do Recife. O projeto, chamado Porto Leve, engloba o Bairro do Recife, Santo Amaro e Santo Antônio. O sistema tem previsão de ser ampliado com a criação de mais estações no bairro da Boa Vista, na Agamenon Magalhães, em Boa Viagem e também em Piedade, totalizando 700 bicicletas.

“Tem a vantagem de dinamizar e aumentar o número de ciclistas, e de deixar claro que a bicicleta é um meio de transporte. Dessa forma, pessoas, que normalmente usam carro, passam a eventualmente usar a bicicleta, o que implica sentirem um pouquinho na pele o que é pedalar, e, consequentemente, criarem também empatia pelo ciclista”, comenta Daniel Valença. “Não é uma questão só de moda, a bicicleta como solução para o deslocamento nas cidades é uma tendência. Ela entrou na pauta, falta entrar de vez na dinâmica da cidade. Ou a gente troca essa forma de se movimentar ou a cidade vai parar”, opina. 

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