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“Nós queremos criar repertório, em primeiro lugar”

Jornalista especialista em planejamento urbano, Natália Garcia conta como surgiu o projeto 'Cidades para as pessoas', criado por ela, para pensar ideias que contribuam na melhoria do bem estar urbano

TEXTO Olivia de Souza

01 de Abril de 2013

Natália Garcia

Natália Garcia

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 148 | abril 2013]

Jornalista freelancer, especializada em
planejamento urbano, uma das principais ferramentas de trabalho da paulista Natália Garcia é uma bicicleta de modelo dobrável. Inspirada no trabalho do urbanista dinamarquês Jan Gehl, em 2009, Natália criou o projeto Cidades para pessoas, um garimpo de ideias e práticas que visam melhorar a vida em diferentes locais do mundo. Financiado por meio de crowdfunding, o projeto já passou por 12 cidades – Copenhague, Amsterdam, Londres, Paris, Estrasburgo, Friburgo, Lyon, São Francisco, Portland, Cidade do México, Nova York e Barcelona. O material apurado durante as viagens é publicado em reportagens, em textos e vídeos no site cidadesparapessoas.com e em blog do Planeta Sustentável.

CONTINENTE Como surgiu a ideia do Cidades para pessoas, de que forma esse projeto foi estruturado?
NATÁLIA GARCIA Entrevistei o urbanista Jan Gehl, que, já na década de 1950, propunha medidas como a mudança de uma avenida para uma via de pedestres, indo na contramão do que estava acontecendo no mundo, onde as cidades estavam sendo construídas prioritariamente para os carros. Então, pensei num projeto que viajaria o mundo em busca de práticas que tivessem melhorado as cidades para as pessoas. Jan Gehl foi o norte do nosso projeto. O critério de escolha das cidades era as que ele tinha trabalhado como consultor ou como planejador. Jan tem uma formação clássica em planejamento urbano, e trabalha em cidades que têm um contexto político, cultural e econômico muito diferente da América Latina. A ideia do projeto é basicamente essa: a primeira fase foi focada em planejamento urbano e em soluções clássicas. Na segunda fase, visitamos cidades mais recentes, pensando em soluções tecnológicas mais inovadoras. Na terceira fase, buscaremos soluções que tenham a ver com informalidade. Visitaremos cidades com gente morando e se transportando em lugares que não estão oficialmente contemplados pelo poder público. Essa, imagino, será a fase mais interessante.

CONTINENTE Como é sua rotina de trabalho, a partir do momento em que você chega numa cidade? Encontra alguma dificuldade?
NATÁLIA GARCIA Na primeira fase, fiquei um mês morando em cada cidade. Na segunda – que passei a fazer com Juliana Russo, ilustradora e minha parceira no projeto –, nós nos programamos para fazer as coisas mais rápido; então, a pré-produção foi importante. Sempre tentamos fazer os contatos antes de chegar às cidades para já deixar algumas coisas engatilhadas. Chegamos já com uma ou duas entrevistas pré-marcadas, dando prioridade a um arquiteto, urbanista, ou um amigo que esteja inteirado. Daí, pegamos um apanhado de dicas de lugares para visitar, gente para conversar. Sempre tentávamos falar com fontes “oficiais”, pessoas que fizessem parte do poder público, mas essas foram as que menos entrevistamos. Depois, procurávamos os acadêmicos, estudiosos e pesquisadores ligados às universidades, o que também não rendeu muito material. Por último, íamos atrás de movimentos de engajamento cívico, de pessoas que se organizavam para fazer coisas práticas, que às vezes eram acolhidas pelo poder público, às vezes, não. Isso foi o que mais rendeu no projeto, esses movimentos que vinham de organizações de pessoas comuns. Os primeiros dias eram tirados para explorar a cidade. Íamos de bicicleta, pedalando pelos bairros, entendendo como o trânsito era organizado, qual era o espaço da bicicleta, do transporte público e dos carros.

CONTINENTE O que levou os projetos das cidades em que o arquiteto Jan Gehl atuou como planejador urbano a serem bem-sucedidos, e em que aspectos elas se diferenciam das brasileiras?
NATÁLIA GARCIA Ele tem até um projeto para São Paulo, que nunca foi executado, o de revitalização do Vale do Anhangabaú, no centro da cidade –, um projeto perfeitamente executável e superbacana. A primeira diferença entre as cidades europeias que tinham projetos de Jan Gehl das brasileiras é que, naquelas cidades, grande parte deles foi paga pelo poder público. As prefeituras brasileiras geralmente tem orçamento mal-administrado. Então, diria que a diferença primordial é o estado como empreendedor, como investidor na cidade. No Brasil, dependemos da iniciativa privada para fazer algumas coisas acontecerem, e geralmente ela só se interessa em fazer grandes obras. A iniciativa privada torna-se um determinante para que as obras públicas aconteçam. Isso é um problema, porque ficam condicionadas a interesses dessas empresas que, muitas vezes, são empresas de cimento que querem derrubar um monte de concreto na rua, ou são empresas automobilísticas, ou do mercado imobiliário, que fazem enormes operações urbanas e mudam bairros inteiros que ficam verticalizados, expulsando de lá as pessoas que são mais pobres.

CONTINENTE Consegue apontar alguma cidade brasileira como um bom exemplo de gestão urbana?
NATÁLIA GARCIA Várias. A primeira que me vem à mente é Maringá, uma cidade no Paraná que teve um prefeito espetacular, talvez a gestão mais transparente da história do Brasil. Transparente, participativa, com planos interessantíssimos. Foi uma das primeiras cidades do Brasil a ter um plano de preservação da Mata Atlântica. E o estado, para garantir essa preservação, comprou as áreas onde estão os parques da cidade, para que eles não fossem derrubados para a construção de prédios, são áreas públicas garantidas pela prefeitura. É um exemplo de transparência, de planejamento a longo prazo, com um bom legado para a população. Outra cidade que eu destacaria é Rio Branco, no Acre, que tem o maior planejamento cicloviário do Brasil, e que foi feito de maneira muito simples, orgânica. Tem um planejador urbano brasileiro chamado Ricardo Correia que é o maior especialista em fazer planos cicloviários no Brasil, e ele fez um plano, em Rio Branco, que a tornou a melhor cidade brasileira para se pedalar. Pouca gente sabe disso. E é uma cidade que é assim porque ela tem todas as condições para isso. Não tem a presença de grandes empresas, corporações. Curitiba e São José dos Campos também são ótimos exemplos. A primeira foi pioneira em planejamento de longo prazo no Brasil. Criou o IPPUC (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba), sendo logo seguida por São José, que criou o Iplan (Instituto de Pesquisa, Administração e Planejamento). Ambas possuem um corpo de técnicos que fizeram um plano gestor para a cidade, e que trabalham lado a lado com a prefeitura, garantindo sua manutenção.

CONTINENTE Estão sendo desenvolvidos projetos para estimular o uso das bicicletas, como por exemplo os bikesharing. Em contrapartida, ainda não foram criadas as condições necessárias para que os ciclistas se locomovam. Você acredita que é um pontapé inicial necessário, ou acha que se deve, primeiramente, investir na infraestrutura e na educação dos motoristas e ciclistas?
NATÁLIA GARCIA Desde o início do projeto, passamos por 12 cidades ao todo. Diria que uma é diferente da outra, cada uma escolheu um caminho diferente para pensar em acessibilidade para os ciclistas. Tem cidade que constrói infraestrutura onde só se anda de bicicleta em vias segregadas. Já em Londres, por exemplo, se faz um treinamento massivo com os motoristas de ônibus para compartilharem suas vias com os ciclistas. E funciona. Tem cidade, como Barcelona, que constrói uma infraestrutura onde pedaços dos canteiros centrais vão sendo adaptados para os ciclistas, e aí a bicicleta fica sendo vista quase como sendo um intermediário, você não é pedestre, mas também não é considerado veículo. Tem cidades que primeiro trazem um sistema de compartilhamento de bicicletas, e pouco a pouco vão criando condições para os ciclistas. Uma coisa é certa: quanto mais ciclistas nas ruas, mais segurança se tem para pedalar, mesmo sem infraestrutura. É claro que ainda fica restrito a uma parcela da população, muita gente vai continuar com medo. Mas acho que é um processo. E, nesse sentido, sou otimista. Acho que estamos descobrindo o jeito brasileiro de se fazer planejamento urbano.

CONTINENTE Vocês pretendem trazer as ideias captadas no projeto para a pauta política?
NATÁLIA GARCIA Queremos criar repertório, em primeiro lugar. Queremos escrever sobre essas ideias, em diversos formatos: em vídeo, ilustração, texto, mapa, diagrama. Queremos criar informações qualificadas sobre o que é uma boa cidade para se viver. Mais do que isso, queremos criar repertório sobre ferramentas de participação política das pessoas. Elas precisam participar do processo político de mudança do planejamento da cidade. E sinto que a gente tem tido cada vez mais abertura para fazer isso e que estamos num processo de transformação. Em suma, é isso que queremos fazer, trazer ideias e criar repertório. 

OLIVIA DE SOUZA, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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