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Alleycats: Os rebeldes do asfalto

Criada no Canadá, em 1989, a corrida de bicicleta não oficial, que é uma das muitas subculturas do ciclismo urbano, radicaliza uso do veículo

TEXTO André Valença

01 de Abril de 2013

Os “alleycats” escolhem justamente as horas mais congestionadas para iniciar suas competições

Os “alleycats” escolhem justamente as horas mais congestionadas para iniciar suas competições

Foto Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 148 | abril 2013]

Quando Euclides estabeleceu as bases da geometria plana, criou um verdadeiro sofisma, o de que a menor distância entre dois pontos é uma linha reta. Quem mora em cidade grande sabe que esse axioma, na prática, não tem muita serventia. Quem quer se locomover com eficiência em meio ao trânsito de centros urbanos, como o do Recife (qualquer que seja a forma de transporte), tem que saber por onde cortar, cruzar, curvar, virar, voltar e arrodear para evitar os vagarosos caminhos dianteiros.

Mesmo assim, há ainda quem tente se aproximar da lógica do matemático grego e, correndo riscos, se arrisque em seguir o caminho mais vertical possível para chegar à próxima destinação – não importando os eventuais estorvos que aparecerão pela frente. Esse é mais ou menos o caso dos integrantes do Alleycat, um tipo de corrida de bicicleta não oficial (em alguns lugares, até fora da lei) e uma das muitas subculturas do ciclismo urbano que vem se popularizando.

Criado por bike-messengers (espécie de motoboys não motorizados) em 1989, no Canadá (Toronto), o Alleycat é uma espécie de “caça ao tesouro” e simula, de maneira extrema, um dia de trabalho desses profissionais, que devem pular de canto a canto da cidade entregando encomendas e colhendo assinaturas para as empresas em que trabalham. Para a corrida, pontos de inspeção (checkpoints) são fixados em localidades distintas e os alleycats devem passar por todos, na ordem, antes de cruzar a linha de chegada.

Normalmente, a disputa se dá durante a hora do rush, e a rota fica a cargo do competidor, que escolhe o caminho considerado mais eficaz, podendo desprezar todo tipo de regra – ou restrições éticas – num vale-tudo para chegar em primeiro. Os participantes trafegam nas calçadas, pegam contramãos e atravessam sinais vermelhos, tudo por um caminho mais curto, mais retilíneo e mais rápido para completar seus objetivos. O perigo é tanto, que, em 2008, no Tour de Chicago (EUA), um jovem ciclista chamado Matt Manger-Lynch morreu atropelado por uma SUV numa interseção viária enquanto furava um semáforo.

O circuito normalmente é longo. Não há precisão, já que os competidores escolhem o trajeto, mas a média prevista pelos organizadores da corrida nos Estados Unidos é que o ciclista percorra cerca de 20 milhas (32 km). Certas competições chegam a ter um percurso previsto de até 80 km. Eles não podem checar mapas, e a relação dos pontos de inspeção é entregue minutos antes da largada.

Numa das modalidades, ao chegar nos checkpoints, o participante tem que completar tarefas, tais quais beber doses de bebidas alcoólicas, subir escadas com a bicicleta, ou responder a perguntas relacionadas à profissão de bike-messenger. Em outra, chamada Monstertrack, são usadas exclusivamente bikes fixas, que não têm câmbio, freio ou marcha, e permitem ao ciclista chegar a altíssimas velocidades. Em compensação, são difíceis de desacelerar e, portanto, potencialmente perigosas.

No Recife, um grupo já organizou uma discreta corrida Alleycat, em dezembro de 2012. Doze participantes pedalaram cerca de 20 km, a maioria completando em tempos inferiores a uma hora. A largada aconteceu às 18h30 de um dia de semana. “A gente via muito os vídeos das competições em Nova York e meio que ‘importou’ a ideia, só que de maneira menos exagerada”, comenta um dos integrantes, que não quis ser identificado por conta das implicações legais que a organização de uma corrida perigosa assim pode lhe infligir. “Conduzir no trânsito de forma que ponha a sua segurança em risco é ilegal. O ciclista tem que circular dentro dos padrões. Mas a gente passava chutado entre os carros, andava na contramão, furava sinal, invadia calçadas”, relata.

Para muitos, a atitude é questionável e pode ser daninha para os avanços que vêm sendo adquiridos no que concerne ao respeito às bicicletas. Já o integrante argumenta o contrário: “Não acho que contribui nem atrapalha o cicloativismo. É uma brincadeira, uma atividade desportiva. Tem gente que diz por aí ‘ah, piora a imagem do ciclista’, mas nós somos só algumas pessoas. Ninguém levanta bandeira”. Para ele, a atividade cria uma espécie de paradoxo também, já que coloca na balança dois pesos que podem se equalizar. “A corrida só existe porque o trânsito existe. É um produto do caos urbano. Se a cidade fosse planejada de forma adequada, não existiria. Vê se existe Alleycat na Holanda? Não. Nem cicloativismo tem. Ao mesmo tempo, mostramos que dá para se locomover com muita velocidade no Recife, na hora do rush, algo impossível para qualquer outro modal”, comenta. 

ANDRÉ VALENÇA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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