Arquivo

'A filha do teatro': Nos limites da representação

Texto de Luís Augusto Reis, marcado pela metalinguagem, entra em cartaz em montagem da Cênicas Cia. de Repertório

TEXTO Pollyanna Diniz

01 de Abril de 2013

Bruna Castiel divide o palco com Manuela Costa e Sônia Carvalho, sob direção de Antonio Rodrigues

Bruna Castiel divide o palco com Manuela Costa e Sônia Carvalho, sob direção de Antonio Rodrigues

Foto André Barreto/Divulgação

O teatro estava lotado na estreia da peça da diretora badalada, aquela que sempre transpunha a violência do mundo real ao palco. Uma das cenas leva um senhor da plateia a baixar a cabeça e fechar os olhos. Era um casal de atores de shows pornô fazendo sexo explícito. E havia um detalhe: a mulher estava grávida. Essa é uma das passagens do texto A filha do teatro, do dramaturgo, jornalista e professor Luís Augusto Reis, que realiza aquilo que é propagado por uma de suas personagens, a tal diretora badalada: investigar os limites da representação teatral. No caso de Reis, ele cumpre isso, ao construir uma obra que se utiliza da metalinguagem como recurso principal, mas consegue falar do exercício teatral sem se tornar autorreferente e esquecer o público.

É uma história contada por três mulheres (há uma quarta, citada, mas não representada), que trata de amor, compaixão, possessividade, relacionamentos, com elementos de drama e suspense – um tiro é disparado e isso marca a narrativa dessas personagens. Aos poucos, o público vai desenhando um cenário: um casal de mulheres leva para casa uma mãe e o bebê recém-nascido e começam a tratar essa criança como filha. Até que uma delas é assassinada.

O texto A filha do teatro foi montado por diretores como Antonio Edson Cadengue, em 2007, e Antonio Guedes, um ano depois. Agora, volta aos palcos pelas mãos da Cênicas Companhia de Repertório, grupo pernambucano que tem duas décadas de atuação, sob direção de Antônio Rodrigues. A peça fez pré-estreia no festival Janeiro de Grandes Espetáculos e está em cartaz até o final do mês no Teatro Arraial.

Ironia e sarcasmo são elementos do texto de Reis, principalmente quando se refere ao próprio teatro: fala do pedantismo dos diretores, da refinada plateia, do seu papel social. E ainda faz homenagens, mesmo que não explicitamente: coloca, por exemplo, uma citação a uma atriz que, aos 70 anos, continuava interpretando Yerma, de Federico Garcia Lorca. E todos ainda viam nela a mulher querendo engravidar. Impossível não lembrar a atriz Geninha da Rosa Borges e sua personagem mais marcante no teatro pernambucano. Ela mesma dirigiu e protagonizou a versão do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP) para o texto do dramaturgo andaluz, em 1978. Até hoje, aos 90 anos, com algumas falhas de memória, em todas as entrevistas que concede, Geninha sempre dá um jeito de dizer os solilóquios de Yerma.

O perigo que corria o texto de Luís Reis era que, ao trazer tantas referências ao teatro, caísse ele próprio nas armadilhas do pedantismo que ironiza e deixasse de lado o principal: contar a história. Mas isso não acontece. O autor opta pela narrativa e pela estrutura de depoimentos, trazendo o espectador para perto da memória das suas personagens. Falando das relações entre mãe e filha, do ciúme, da sobrevivência.

REFERÊNCIAS A LORCA
Ao mesmo tempo, é um texto aberto em possibilidades ao encenador, principalmente se esse quiser investir nos recursos do teatro contemporâneo, como a tecnologia, por exemplo. A Cênicas Cia. de Repertório decidiu não trilhar esse caminho. A prioridade para o grupo é o texto; e, diante dessa prerrogativa, as atrizes são as responsáveis por alavancar a montagem. Bruna Castiel, Manuela Costa e Sônia Carvalho se revezam entre as personagens e mostram maturidade e domínio das possibilidades interpretativas em cena.

Não estão em papéis confortáveis. O texto se desenvolve a partir de nove pequenos monólogos e não há uma interação, pelo menos em relação aos diálogos, entre as atrizes. Se elas são, obviamente, um trio em cena, e trocam energia o tempo inteiro, também estão sós, com aquela história, com o público sentado logo adiante. O palco, em cada momento da encenação, tem a sua dona. Bruna Castiel, em especial, é uma daquelas atrizes que podemos chamar de promessa da sua geração. Tem o magnetismo das grandes intérpretes, a presença no palco, o domínio da técnica, da expressão, da voz.

O diretor Antonio Rodrigues não se permite experimentações ou divagações. Trilhou o caminho do simples, mas isso de forma alguma desmerece a montagem. Há uma referência bastante explícita, trazida pelo próprio texto, ao universo de Garcia Lorca. Essas mulheres de dores profundas usam xales e saias sobrepostas e a encenação tem muitas vezes a cor vermelha terracota e a força da prece. No palco, são montados três pequenos camarins, que podem ser deslocados durante a encenação, também em cor escura.

Na penumbra, as memórias vão se transformando em palavras, e a narrativa ganha corpo, proporções. Há o conteúdo concreto das palavras, mas há também o puro fato de falar, que pode ser libertador. Quando as palavras não conseguem mais expressar, é a vez dos silêncios e das pausas, que também são linguagem e possibilidade criativa para a Cênicas Cia. de Repertório. 

POLLYANNA DINIZ, jornalista.

Publicidade

veja também

Um forte

As múltiplas faces de Wilton de Souza

Simulacro: Parece... mas não é!