Assim como as unhas, cascos, plumas e chifres, cabelos possuem queratina em sua composição, uma proteína insolúvel e extremamente resistente ao tempo, o que faz com que eles continuem a crescer, mesmo após a morte do indivíduo. Essa característica é considerada, por muitas civilizações, um símbolo de ressurreição, tendo feito muitos povos temerem os fios de cabelo separados das pessoas, por acreditarem numa suposta conexão com o sobrenatural. Até os dias de hoje, o costume de guardar mechas de recém-nascidos e de pessoas mortas é reflexo dessa crença.
O entendimento de que os cabelos poderiam adquirir sentidos muito maiores que o simples modismo levou a jornalista e pesquisadora em moda, beleza e comportamento, Leusa Araújo, a escrever o Livro do cabelo (Editora Leya), sua segunda publicação de não ficção depois de Tatuagem, piercing e outras mensagens do corpo, de 2005. Com fundamentação teórica baseada em estudos acadêmicos sociológicos e antropológicos, além de referências a filmes, novelas, músicas e afins, o livro, um verdadeiro almanaque sobre o tema, é resultado de seis anos de pesquisa sobre o assunto, registrando histórias e diversos simbolismos. “Fazia tempo que eu achava o discurso da moda sobre esse tema muito preso ao penteado e às tendências de momento, como se não houvesse uma longa história por trás desses fenômenos culturais e sociais. Me senti definitivamente encorajada ao ler Uma história do corpo na Idade Média, de Jacques Le Goff e Nicolas Truong, quando os autores dizem que ‘fenômenos culturais e sociais intimamente ligados ao corpo estão em estado bruto para a pesquisa histórica: a cabeleira, o bigode, a barba’”, revelou.
Muitos povos consideram que o ritual de cortar o cabelo (também conhecido como tonsura), tanto em homens quanto em mulheres, requer cerimônias especiais, podendo representar uma mudança de status dentro da comunidade. É o caso do povo indígena gorotire, da tribo dos caiapós, que evocam mitos fundadores como o do herói Bebgororóti, primeiro tonsurador do grupo. Antes da chegada dos portugueses, as mais de 300 nações indígenas que por aqui viviam exibiam uma variedade imensa de cortes e maneiras de raspar o alto da cabeça, costume que foi sumindo ao longo do hostil processo civilizatório europeu, culminando num intercâmbio cultural entre as tribos, que uniformizou a aparência do índio à sua imagem mais conhecida, o cabelo negro, escorrido, com corte redondo, ou curto – ao estilo jesuíta.
Índios brasileiros exibiam diversidade de cortes e tonsura.
Imagem: Reprodução
Para a maior parte dos rituais religiosos em diferentes épocas e lugares, ter os cabelos grandes, raspados ou cortados promove a separação entre sagrado e profano, ou marca a passagem de diversas etapas da vida: nascimento, infância, puberdade, vida adulta, casamento, morte. O estilo raspado dos monges tibetanos, por exemplo, ajuda-os a focar a nova vida espiritual. Livre dos cabelos, chamados por eles de “capim ignorante”, os budistas podem praticar o exercício da humildade e do desapego às aparências. Apesar de seguirem a mesma premissa, certas religiões fazem exatamente o contrário: cabelos sem restrições para crescer, como prova de se libertar das vaidades corporais. É o caso dos judeus hassídicos, que adotam grandes cachos nas laterais (peot) e barba comprida, assim como os siques indianos e os rastafáris.
Bastante celebrado em países como China e Bolívia – onde o costume perdura desde a época pré-colombiana –, bem como em inúmeras tradições, cortar o cabelo de crianças e recém-nascidos marca o início do processo de constituição da própria identidade. No caso dos índios caiapós, no Brasil central, o tamanho dos cabelos indica o estado reprodutivo do indivíduo. Os bebês permanecem com o cabelo longo até o desmame, após isso, os garotos os mantém curtos até a puberdade, e as garotas até o nascimento do primogênito. Daí, então, homens e mulheres os conservam compridos. “Os membros das sociedades tradicionais expressam, por meio do cabelo, assim como de outras marcas corporais, não apenas seus próprios valores, mas acompanham o depoimento coletivo de toda a sua linhagem ancestral. Enquanto, nas sociedades contemporâneas, a aparência dos cabelos demonstra cada vez mais um exercício de identidade”, explica Leusa.
Em algumas sociedades, cortar ou raspar os cabelos em público é considerado um dos piores atos de punição. O escalpelamento talvez seja sua forma mais extrema. Originalmente indígena, a prática – famosa nos westerns norte-americanos e registrada em batalhas durante a Segunda Guerra Mundial – consiste em arrancar o couro cabeludo do inimigo, sinalizando a submissão e a derrota do adversário. À época, cerca de mil jovens francesas tiveram os seus cabelos raspados em público, nas ruas de Paris, em 1944, sob acusação de terem mantido relações sexuais com soldados alemães durante a ocupação nazista. A punição permanece nos dias de hoje. Registros desde a década de 1980 revelam moradoras de favelas cariocas que são julgadas diariamente pelo “código penal” do tráfico, por condutas como traição, brigas, rompimento de namoro, entre outros “delitos”. Nas periferias brasileiras, onde ter cabelos longos e lisos é unanimidade entre as mulheres, raspar a cabeça, além de descaracterizá-las, é sinal de humilhação.
No Budismo, cabelo raspado expressa desapego e humildade. Foto: Reprodução
MULHERES E HOMENS
As tranças de Rapunzel, os fios-serpentes da Medusa, ou sereias encantando os homens no simples pentear dos seus cabelos. Estas são referências de que, em diversas sociedades, por tradição, cabelos soltos e compridos são considerados atrativos sexuais e símbolos de fertilidade, ao passo que fios curtos ou amarrados simbolizam a “indisponibilidade” das matriarcas, a retidão como sinal de seu caráter. Basta observar as fotografias familiares antigas, mostrando mulheres com seus cabelos repartidos ao meio e presos em coque. Motivada pela indústria do cabelo, a enorme variedade de penteados, tinturas e cortes voltados para mulheres nem sempre fez parte da história, marcada por fortes proibições e tabus, que representavam sua inferioridade em relação aos maridos, que deveriam consentir qualquer mudança feita em seu visual.
À medida que nos aproximamos das histórias religiosas, percebemos que o cabelo é um dos principais símbolos da sedução feminina. O clássico bíblico de Sansão e Dalila é o que melhor sintetiza a relação do cabelo entre os dois sexos. A força e a virilidade masculina representadas pelos cabelos de Sansão definiram os nortes que os fios representariam para os homens a partir de então. Os cabelos grandes foram marca registrada de guerreiros, nobres, reis e imperadores durante os séculos de domínio da civilização europeia cristã, mesmo sob forte oposição do clero.
Se, por um lado, a aparência do cabelo feminino sempre esteve ligada à regulamentação dos homens, os pelos masculinos, durante boa parte de sua história, estiveram submetidos à ordem superior dos governantes e dos exércitos, a exemplo de Alexandre, o Grande, no século 3 a.C., que ordenou aos seus soldados que tirassem a barba, com receio da possibilidade de eles serem arrancados dos cavalos por seus adversários. Os militares brasileiros, até hoje, são proibidos de ter outro corte que não o específico dos pracinhas, diferente dos oficiais e feito com máquina 2, devendo ser renovado a cada 10 dias. A quebra dessa norma é considerada transgressão disciplinar. “De fato, é impressionante como a aparência requer aceitação pública. E isso mostra o quanto o comportamento, conforme as regras sociais, é sinônimo de ‘conformação’. Só mesmo um mundo multiculturalista e mais tolerante para conviver com a diversidade de aparências, sem poderes dominantes”, afirma Leusa Araújo.
Apesar de secular, penteado com dreadlocks ganhou fama com Bob Marley.
Foto: Reprodução
Motivados pelo movimento da contracultura na década de 1970, que levou a uma discussão mais extensa sobre a divisão de papéis e desigualdade entre os sexos – com os cabelos desempenhando papel fundamental –, o unissex passa a ser incorporado ao comportamento de homens e mulheres, seja no uso das roupas, seja na prática dos esportes, mas, principalmente, nos cortes dos cabelos. Mulheres passam a usar em seu cotidiano cortes mais curtos, homens adotam os cabelos compridos. Porém a revolução de costumes havia começado antes. A “tesourada do século”, dada pelo cabeleireiro parisiense Antoine, em 1917, elevou Paris ao centro da moda mundial.
O Livro do cabelo aponta que o movimento é indissociável do contexto da Primeira Guerra, que deixou mulheres à mercê dos próprios recursos. “Ganha as ruas, bebe e fuma em público, e passa a realizar trabalhos considerados masculinos. Está em busca de uma vida mais livre e de participação política. Além disso, a guerra provocou a escassez de produtos de higiene e do tempo dedicado aos cabelos.” Nesse contexto, em detrimento dos coques altos e chapéus frondosos, é adotado um estilo de corte e penteado mais livre e menos trabalhoso. Entram as roupas confortáveis, os penteados chanel – tendo a estilista Coco Chanel como símbolo –, e os cortes à la garçonne (curtos, lisos e com franja).
Antes mesmo da revolução de comportamento, que deu o tom aos valores ocidentais do século 20, o cabelo já podia ser considerado um símbolo de enfrentamento. Os hippies cabeludos dos anos 1970 não foram os primeiros a demonstrarem sua insatisfação com o sistema. Na China, durante o Período Manchu, um camponês convertido ao cristianismo, chamado Hung Xiu-Chuan, liderou um levante camponês (1850-1864) que reivindicava a posse comunitária da terra. A maior característica desses rebeldes eram os longos cabelos despenteados, uma verdadeira afronta aos costumes da Dinastia Qing, que mandava decapitar quem não adotasse o bianzi, o penteado oficial – testa raspada, com rabo de cavalo no topo.
Do início do século 20, anúncio francês de tintura para cabelos
exibe chancela de médicos. Imagem: Reprodução
Sob o lema do “Faça amor, não guerra”, os hippies norte-americanos, com seus cabelos, barbas e pelos crescendo livremente, opunham-se à política apoiada no consumo e na guerra dos Estados Unidos. O comportamento ditou os costumes e a moda em muitas partes do mundo. À mesma época, surgia a Tropicália no Brasil, movimento que mais se aproximou dessa cultura, revolucionando a música popular brasileira. Já marchinhas carnavalescas, como Cabeleira do Zezé (1963), escancaravam a forte oposição e preconceito que cercavam os cabeludos.
A história do cabelo negro merece um capítulo à parte. O longo processo de descaracterização a que foram submetidos os escravos africanos, por quase quatro séculos, aliado às péssimas condições de vida e aos maus-tratos, prepararam o que talvez seja, até os dias de hoje, uma das mais simbólicas formas de enfrentamento refletidas nos cabelos, como o black power de 1960-70, nos EUA, e os dreadlocks rastafáris, na Jamaica. A raspagem dos cabelos dos escravos africanos, feita pelos colonizadores, era a primeira etapa da desculturação das tribos, processo que continuava nas colônias, em que se criavam estruturas sociais de acordo com o cabelo e o tom da pele. Negros mais claros recebiam maiores regalias que os mais escuros, a quem eram destinados os trabalhos mais pesados. Com isso, era fácil odiar ser negro, internalizando o pensamento de que ter cabelo crespo e pele escura era ser menos atraente e inteligente. Exatamente o que os senhores brancos queriam, uma forma de evitar levantes.
Leusa cita uma frase da escritora norte-americana Alice Walker, uma das defensoras do cabelo negro ao natural, que revelou, com isso, abrir-se a uma nova etapa para seu autoconhecimento: “Finalmente, descobri exatamente o que o cabelo queria: queria crescer, ser ele mesmo, atrair poeira, se esse era seu destino, mas queria ser deixado em paz por todos, incluindo eu mesma, os que não o amavam como ele era. (…) O teto no alto do meu cérebro abriu-se; mais uma vez minha mente (e meu espírito) podia sair de dentro de mim”.
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