Depoimento

‘Agora’: quando o abismo se apresenta

Realizadora do longa-metragem que estreia na mostra 'Novos Olhares' do 9º Olhar de Cinema fala sobre o processo criativo e a construção coletiva do filme

TEXTO Dea Ferraz

08 de Outubro de 2020

Cena do filme 'Agora', em que corpos são a potência da imagem construída

Cena do filme 'Agora', em que corpos são a potência da imagem construída

Foto Chico Ludermir/Still/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Que desafio imenso este de escrever um testemunho sobre o processo de criação de um filme. Imenso porque sempre será incompleto. Imenso porque há um mistério nas imagens que, acredito, as palavras não alcançam e nem devem alcançar. Imenso porque, para mim, nem os filmes nem seus processos se findam, eles se abrem, se ampliam, se transmutam. Imenso porque pessoal e, por isso, específico, um único testemunho, dentro de uma constelação de pessoas que foram essenciais para essa criação. Sendo assim, não posso e não quero dar conta de nenhuma inteireza, principalmente porque o AGORA é um filme sobre sensação, corpo, fissura, mistério. Um chamado, através das imagens, para dentro de quem somos e dentro de quem somos só cada um é que há de falar. Sendo assim, que este relato seja recebido como um salto íntimo, pessoal e lacunar. Um compartilhamento de passos e tropeços, um divagar por imagens, um sonho cheio de lapsos, um lançar-se no abismo. Mas, o que significa estar diante do abismo? E quando isso acontece, o que diz nosso corpo? Recorro à imagem do abismo não só porque é ele que se apresenta nesse exato momento, diante da página em branco, mas porque também foi ele que me levou ao AGORA.

No final de 2018, vivemos a eleição mais acirrada de que temos notícia na história do país. Houve um racha social. O presidente eleito, Jair Bolsonaro, é a representação de todo racismo, elitismo, misoginia e fundamentalismo religioso da sociedade brasileira. A sensação é de que o abismo cresceu e seguirá crescendo. É nesse contexto – estendido aos dias atuais, com a pandemia e toda uma reestruturação da vida a partir da virtualidade das telas – que experimentamos uma enxurrada de imagens produzidas, inventadas e espalhadas pela mídia em todo tipo de rede social, dando-nos a ver uma crise que se anuncia há tempos: a da imagem, que quando acionada sob o prisma do espetáculo e das visibilidades máximas, esvazia-se de suas potencialidades poéticas, artísticas e transformadoras. Dado o grau de intervenção e invasão em nosso cotidiano, podemos dizer que a imagem se tornou espetáculo e, junto com ela, as nossas vidas.


Cartaz do longa de Dea Ferraz com ilustração de Clara Moreira

Em , Guy Debord já nos explica que uma sociedade do espetáculo não é apenas aquela invadida por imagens, mas, sobretudo, aquela na qual a vida real é tão pobre e fragmentária, que aos indivíduos só cabe contemplar e consumir passivamente as imagens de tudo o que lhes faz falta em sua existência. Sendo assim, pensar sobre a produção de imagens, seus estatutos e suas potencialidades, sob o ponto de vista da contemporaneidade, é, para mim, pensar sobre o mundo que vivemos e queremos, é pensar sobre as nossas construções subjetivas, é desvendar os mecanismos sociais que nos engendram. Eu, que tenho a linguagem da imagem como instrumento de leitura de mim e do mundo; que me espanto com suas potências e possibilidades; que fui capturada para o seu universo particular, pergunto-me, agora: do que uma imagem é capaz? Qual o gesto possível de uma imagem? Essas são as perguntas que me invadem, cotidianamente, e é com elas que nasce AGORA, esse novo filme, movido pela urgência do seu tempo histórico.

Dez dias após as eleições, mergulhada num sentimento de derrota e temor por tudo que já se anunciava do desmonte que estamos a viver hoje; sem entender o que fazer com as imagens e descrente de suas potências, lembro que, ao acordar, num gesto cotidiano de levantar-me da cama, quase no meio mesmo do gesto, uma imagem se desprende do meu corpo. Vejo uma mulher, dentro de uma caixa, tentando me dizer o que sente, utilizando apenas o seu corpo. Nesse exato momento, também meu corpo dá sinais de que algo deve ser feito: um arrepio me correu dos pés à cabeça. Liguei para Carol Vergolino, irmã, parceria e produtora de todos os meus filmes, e perguntei se ela faria um novo filme, sem dinheiro nenhum. “Faço”, foi sua resposta, sem titubear. Bem como Marcelo Barreto e Cezar Maia, do Ateliê Produções, que nos deram todo suporte e apoio possível e impossível. É claro que os desejos, as ideias, inquietações e pensamentos já estavam sendo gestados em mim, sobretudo a partir do mestrado que terminava e das aulas do professor Eduardo Duarte e da professora Cristina Teixeira, bem como de toda a minha prática e relação com a produção de imagens há mais de 15 anos. Mas não canso de pensar no quanto o corpo fez desprender essa imagem primeira. Não canso de pensar no quanto o corpo é esse lugar das memórias, das histórias, das imagens, dos gestos de outros tempos em nós. E no quanto ele foi relegado, em nosso mundo ocidental, a um lugar de adormecimento. Digo isso porque é disso que se trata o AGORA. Um filme que convoca o corpo ao primeiro plano.


No longa, a imagem é um dispositivo performático. Foto: Chico Ludermir/Still/Divulgação

O dispositivo do filme é simples e dialoga com uma pesquisa pessoal: assumir o simulacro da imagem, sua intencionalidade, sua performance, dando a ver os desejos que se impõem quando filmamos, ao mesmo tempo em que abrimos na imagem um espaço de livre movência ao espectador. Para isso, convidamos artistas ativistas – ou seja, pessoas que têm na arte suas formas de existência e vida – a se lançarem no abismo do tempo presente, a nos dizerem com seus corpos o que sentem e como sentem. Bruna Leite, produtora de elenco, fez uma pesquisa primorosa e me trouxe 13 nomes: Adelaide Santos, Cris Nascimento, Dante Olivier, Flávia Pinheiro, Joy Thamires, Kildery Iara, Lívia Falcão, Lucas dos Prazeres, Orun Santana, Raimundo Branco, Rosa Amorim, Sílvia Góes e Sophia William. Todes aceitaram o convite e as agendas funcionaram como um balé ensaiado. A sensação era de que tudo estava marcado antes mesmo de a ideia nascer. Outro elemento essencial do dispositivo foi a preparação desse elenco, um trabalho conduzido por Lívia Falcão e Sílvia Góes, que receberam esse imenso desafio de acionar os corpos em presença, e o fizeram com beleza, entrega e sabedoria. Para falar desse trabalho, é preciso ouvi-las, em poucas linhas não cabe.

Toda a equipe foi se formando muito a partir dos afetos e de uma sintonia vibracional. Pessoas com as quais trabalho há anos se juntaram e pessoas que ainda não conhecia, mas admirava, também se chegaram. Sem dinheiro, sem financiamento, nem edital, formamos uma equipe que acredita no cinema e na arte como instrumentos de transformação. Em certa medida, o filme já é também uma resposta ao desmonte que estamos vivendo na cultura do país. Honro e agradeço a todes que se juntaram, agregando sugestões, soluções, pensando junto. O filme é resultado de uma constelação de pessoas e corpos parindo juntes. Parimos a nós mesmos e a algo que nos excede.

AGORA é um filme do entre mundos. Está entre mente, corpo; razão, sensação; interno, externo; singular, plural; e posso falar dele tanto do ponto de vista dos filósofos da imagem, como Didi-Huberman e Marie-José Mondzain, quanto do ponto de vista de uma certa ideia vibracional, corpórea, sensorial, com Suely Rolnik e Kuniichi Uno, mas não posso falar dele sem me remeter a palavras como “energia”, “transcendência”, “campo”, “freqüência”. A experiência da filmagem foi da ordem do mistério. Naquele momento de país, estarmos juntes, numa caixa, a performar com corpos em presença, ativando as memórias físicas que carregamos, sentindo o chão do país como parte de quem somos, foi também uma cura, uma catarse, um processo para dentro e para fora de nossas caixas, tendo em vista o levante, a sobrevivência, o seguir acreditando em nós. Com AGORA, volto a acreditar na imagem como potência artística, sensorial e transformadora.


Nos bastidores do filme, uma construção coletiva. Imagem: Reprodução

UM CORPO COLETIVO QUE RESPEITA AS INDIVIDUALIDADES
Recuperada a crença na imagem, ainda diante do abismo que é o pensamento e a vida, mas agora em pleno voo, peço licença para dar uma volta na espiral como quem retorna ao começo, mas de uma forma diferente. Preciso dizer que, ao final da montagem, eu e Joana Collier, amiga e montadora, sentimos que construímos “um corpo coletivo que respeita as individualidades”, e não seria esse um axioma capaz de nos fazer pensar sobre o próprio cinema? Ou além: sobre o próprio mundo e sociedade? Não seria essa a nossa grande utopia? Percebermos cada corpo em sua caixa, seus tempos, suas histórias, suas potências e fragilidades, mas todas as caixinhas compondo e conectando uma imensa caixa, atravessada e constituída por todas as freqüências e vibrações que somos?

Aqui e agora, enquanto escrevo, sinto-me invadida por cada personagem, cada corpo e cada gesto que me atravessou tanto na filmagem como na montagem. Fecho os olhos e vejo os olhos de Lucas, a delicadeza de Joy, o grito de Silvinha, o parto de Iara, o rodopio de Sophia, a respiração no ventre de Flávia, o bicho de Livinha, a pintura rasgada de Dante, o riso-choro de Cris, o choro de Branco, a dança de Rosa, a luta de Orun. É com eles e por eles que me sinto outra. Mas não porque eles afirmam meus sistemas de predicados e crenças, justo o contrário, porque me desamparam, acionam-me uma posição de de mim e é justo aí que tenho alguma experiência de mim.

O cinema como encontro, realizando uma transformação da qual não há retorno. O encontro como esse terceiro invisível, aquele que não sou eu nem o Outro, somos nós. É no entre que nasce o espaço das transformações. É no entre que está a potência e a fragilidade de quem somos. É no entre que o cinema e a arte podem existir como instrumento de produção de novos mundos. Entre realizadora e personagens; entre filme e espectador; entre visível e invisível; entre imagem e corpo. O cinema como uma busca pela “superação da anestesia da vulnerabilidade ao outro”, como escreve Suely Rolnik em . Na verdade, ter a vulnerabilidade como condição para que o Outro deixe de ser “objeto de projeção de imagens pré-estabelecidas e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade” (ROLNIK, 2006).

Quando penso no que me motivou a filmar o AGORA, quando penso nas personagens e na equipe, quando penso nos gestos e imagens que nascem desse encontro, no dispositivo do filme acionando tantas camadas de pensamento sobre o mundo e o cinema, compreendo, em meu corpo, a arte como contágio e transformação. A arte como facilitadora para um despertar de toda a capacidade de nossos sentidos. Num caminho contrário à identificação quase hipnótica às visibilidades do espetáculo, pensar a imagem como possibilidade de fundar novas formas de expressividade para as sensações e o encontro com o Outro. Olhar as imagens com o corpo inteiro. O cinema como invenção de novos mundos, atuando e participando das mudanças que se operam na atualidade. Caminho real para a emancipação do pensamento e, mais do que isso, do corpo que somos nós. Sem esquecer que “toda verdadeira presença é, antes de mais nada, uma presença em si mesmo”, diz Felwine Saar, em . Pensar, portanto, “o corpo coletivo que respeita as individualidades” não como utopia romântica da harmonia, mas como utopia desconfortável da presença que vibra. Quem sabe, libertadora.

DEA FERRAZ é realizadora pernambucana, diretora de Câmara de espelhos (2016), Modo de produção (2017) e Mateus (2019), e integrante do Coletivo Gambiarra e do MAPE – Mulheres no Audiovisual de Pernambuco

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COMO E ONDE ASSISTIR
AGORA (Brasil, documentário, 70’, 2020). Direção: Dea Ferraz. Produção: Alumia Conteúdo, Ateliê Filmes, Janela Gestão de Projetos e Parêa Filmes. Distribuição: Ventana Filmes.
O filme está na programação da mostra Novos Olhares, da 9ª edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba. O filme é exibido na plataforma do festival, pelo endereço www.olhardecinema.com.br, na sexta (9/10) e na terça (13/10). Em cada dia, o longa ficará disponível por 24h: das 6h (seis da manhã) até o mesmo horário do dia seguinte. O preço do ingresso é R$ 5.  Para comprar a entrada e ter acesso ao documentário, basta acessar a plataforma a partir das 20h da noite anterior à exibição – no caso, quinta (8/10) e segunda (12/10).

Leia também nossa cobertura do festival.


A realizadora Dea Ferraz. Foto: Cecília da Fonte/Divulgação

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