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"Em Toritama, é como se passado e futuro se encontrassem"

O diretor Marcelo Gomes comenta seu novo filme, o documentário 'Estou me guardando para quando o Carnaval chegar', que integra a mostra Panorama, na Berlinale 2019

TEXTO LUCIANA VERAS, DE BERLIM*

07 de Fevereiro de 2019

O cineasta Marcelo Gomes

O cineasta Marcelo Gomes

Foto Beatriz Masson/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Em 2017, o realizador
pernambucano Marcelo Gomes participava da Berlinale – Festival Internacional de Cinema de Berlim com Joaquim, uma ficção incisiva, que borrava as fronteiras entre passado e presente, ao abordar a vida do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Dois anos depois, ele volta à capital alemã com o documentário Estou me guardando para quando o Carnaval chegar. Junto com Divino amor, de Gabriel Mascaro, o filme completa a esquadra de Pernambuco na Panorama, a segunda mostra mais relevante da Berlinale. Do Brasil, os berlinenses ainda verão na mostra Greta, do cineasta cearense Armando Praça, e duas coproduções (Breve história del planeta verde e La arrancada).

Em Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, que vem ao festival pelas mãos da Vitrine Filmes, o diretor não esconde que se trata de um resgate memorialístico, de um reencontro dele consigo mesmo. Logo no início, a narração em off, com a sua própria voz de calmo timbre, convida a plateia a viajar até Toritama, cidade do agreste pernambucano onde Marcelo costumava ir na infância com seu pai.

Acontece que a Toritama da tenra idade do diretor não é igual à cidade que nunca dorme desvelada pelo filme. Muito mudou e, ao dar conta das transformações daquele microcosmo, ele fala sobre economia, liberdade, neoliberalismo e as turbulências de um Brasil que vem implementando um rol de legislações trabalhistas cujo intuito parece ser, apenas, o bolso do patrão, e nunca o bem-estar do empregado (sobre isso, leia a entrevista da Continente deste mês).


Foto: Carnaval Filmes/Divulgação

Vai ser interessante presenciar a reação do público alemão à primeira exibição de Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, marcada para as 17h do próximo sábado (9/2), no CineStar, conjunto de salas que funciona como QG da Panorama.

Em janeiro, Marcelo supervisionava a finalização do filme e o acréscimo das legendas em inglês, ao lado do produtor João Vieira Jr., da Carnaval Filmes, seu parceiro em todos os longas e nas viagens para exibi-los no exterior – Cinema, aspirinas e urubus (2005) estreou em Cannes; Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), codirigido com Karim Aïnouz, esteve no Festival de Veneza; e Era uma vez eu, Verônica (2012) foi exibido em Toronto.

Em conversa com a Continente, Marcelo já sorria ao vislumbrar a reação das pessoas aos termos, à prosódia e ao sotaque nordestinos. “Acho que vai ter momento em que nenhuma legenda vai conseguir dar conta do que eles estão falando”, divertia-se.

CONTINENTE Dois anos depois de Joaquim, você está de volta à Berlinale.
MARCELO GOMES 
E nos quarenta anos do Panorama, que tem a tradição de ser uma mostra política, com filmes que buscam refletir sobre os caminhos da linguagem cinematográfica. Volto para a Berlinale com um documentário em que eu mesmo sou o personagem principal.

CONTINENTE Como se estrutura Estou me guardando para quando o Carnaval chegar?
MARCELO GOMES Nas minhas memórias das viagens que fazia com meu pai, José, seu Zezinho, que era um coletor fiscal e saía pelo Agreste. Então, eu quis voltar para Toritama, voltar a esse lugar, mas agora com outro olhar de explorador, não mais guiado pelo meu pai. Toritama é uma cidade industrial, responsável por 20% da produção nacional de jeans. São mais de 20 milhões de peças produzidas a cada ano, é a capital nacional do jeans.

CONTINENTE E o que foi que você viu e reencontrou na Toritama que costumava visitar na infância?
MARCELO GOMES Uma cidade que passa por um processo de industrialização arcaico, como se nela o passado se encontrasse com o futuro, sabe? Como se a cidade tivesse pulado etapas. Nesse momento de mudança das leis trabalhistas, as pessoas de lá são sujeitos do desempenho: autoescravizam-se, acordam e dormem para trabalhar.

CONTINENTE Você filmou quando? E como montou a equipe?
MARCELO GOMES Filmei em 2017 e 2018, com urgência mesmo. A equipe é toda pernambucana: quem fez a fotografia foi Pedro Andrade, o som foi com Pedrinho Moreira, a montagem é de Karen Harley e o filme é uma produção da Carnaval Filmes. Foi todo rodado ao longo desses últimos anos, entre idas e vindas ao Agreste.

CONTINENTE Falando nesse recorte de tempo, não é coincidência que o documentário chegue em um momento no qual justamente a legislação trabalhista no Brasil só faz pender para um lado que não é o do trabalhador.
MARCELO GOMES Pois é. Quando voltei para Toritama, reencontrando aquele universo, fiquei fascinado com o que aquelas pessoas estavam fazendo com o seu tempo. Há no Brasil atual essa ideia de que o trabalhador pode ser o seu próprio patrão, de que todo mundo é empreendedor e assim é livre. Então eu acho que o filme propõe uma reflexão sobre liberdade e tempo, sobre a globalização e essa nova faceta do neoliberalismo.


Foto: Carnaval Filmes/Divulgação

CONTINENTE É Toritama falando para o mundo, do microcosmo no Agreste, para discutir um tema que tem tudo a ver com o contexto mundial.
MARCELO GOMES 
(risos) É, de Pernambuco para o mundo. Estamos vivendo uma mudança completa do trabalho, das condições econômicas, dos modos de produção. No Brasl, houve um crescimento econômico que aliviou a fome das pessoas, isso é incontestável, mas agora estamos vendo uma outra maneira das pessoas vivenciarem o que é trabalho e o que seria a liberdade para escolher.

CONTINENTE E o Carnaval em Toritama?
MARCELO GOMES Ah, só vendo o filme mesmo!

LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica da Continente.

* A jornalista viajou a Berlim por meio de uma parceria entre a Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha – CCBA.

 

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