Se, por um lado, pouco se divulgou do longa de Petra (ela não respondeu aos pedidos de entrevista da Continente), sabe-se que, ao revisitar dois dos acontecimentos catárticos que o país vivenciou em 2016 e 2018, o filme há de enquadrar um país em farrapos; por outro, o retrato que o pernambucano Gabriel Mascaro desvela do seu Divino amor é quase como uma profecia. No enredo, o ano é 2027, a religião ocupa cada vez mais espaço, a laicidade do Estado está abalada e a festividade popular mais importante do Brasil não é o Carnaval, e, sim, a Festa do Amor Supremo. Joana (Dira Paes) é a escrivã de um cartório que se impõe a missão de impedir os casais de se divorciarem, em prol da felicidade conjugal suprema, até que algo começa a trincar no seu casamento (Júlio Machado, de Joaquim, vive seu marido). Emílio de Mello interpreta um pastor.
“Tentei especular uma fantasia de um Brasil em que a religião tivesse ainda mais força. O filme vislumbra um estado de mundo que sofreu alteração cultural, política e corporal em função desse Estado que já vem mudando. O que me interessava era me contrapor ao que vemos em séries como O conto da aia, que abordam os estados totalitários sempre na perspectiva da dissidência ou da resistência. Eu queria uma protagonista que não quisesse ser dissidente, muito pelo contrário, que buscasse radicalizar ainda mais a agenda conservadora, que tivesse uma posição de querer ainda mais conservadorismo. Nesse sentido, também tinha o interesse pessoal de me conectar a uma personagem que me afastaria da minha vida, que é antagônica a mim. Acredito no mergulho na alteridade e na possibilidade de me deslocar para criar uma empatia mínima e acompanhar os rumos dessa protagonista”, observou Mascaro em uma manhã de dezembro, em conversa telefônica do Chile, onde finalizava Divino amor.
Rodado em 2017, no Recife, o longa-metragem tem o selo da Desvia Filmes, produtora que o cineasta mantém com sua parceira de arte e vida, Rachel Ellis. É ela quem conta que os dois acolheram a urgência do momento e resolveram “fazer o filme primeiro”, na frente de outros projetos. Para isso, contaram com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, da Vitrine Filmes (distribuidora que estuda a probabilidade de lançar o filme ainda neste primeiro semestre), da Globo Filmes e do Canal Brasil para somar os cerca de R$ 5 milhões de orçamento.
“Assim como Boi neon não mostrava uma visão geral da vaquejada, mas era uma plataforma para se discutir questões de corpo naquele universo, Divino amor é um filme sensível que levanta questões do que vivemos agora: a influência da bancada religiosa no Congresso Nacional, a ameaça ao Estado laico, o avanço do conservadorismo. Não é uma ‘caça às bruxas’, e, sim, uma reflexão”, pontua a produtora.
E uma reflexão calcada no corpo, paisagem que o diretor sempre explora em seus longas, seja no Boi neon que venceu um prêmio na mostra Orizontti no Festival de Veneza de 2015, seja em Ventos de agosto (2014) ou ainda na contenção que as personagens do documentário Doméstica (2012) apresentavam naquele espaço divisado pela câmera. Para criar esse Brasil ficcional em que o “Estado e suas instituições exercem um controle biopolítico mais forte”, Gabriel Mascaro manteve a parceria com o mexicano Diego García, na fotografia, escalou Thales Junqueira, na direção de arte, e Rita Azevedo, no figurino. “O filme não nomeia nenhuma religião hegemônica, mas fica claro, pelo imaginário que constrói, pela estética e pelo visual, que se trata de um futuro próximo do que se vive hoje”, alinhava o realizador. Como diriam as personagens de O conto da aia, “louvado seja”.
LUCIANA VERAS é jornalista especializada em cinema e repórter especial da Continente.