CONTINENTE Como chegou à construção imagética do filme? As imagens trazem o colorido do maracatu, mas também apontam para experimentação na linguagem, por vezes flertando com o sobrenatural ou o hiperreal, até.
TIAGO MELO Um dos fortes desejos que deu força para fazer essa ficção foi meu encanto após ter escutado as histórias do passado do maracatu. Ao conversar com Barachinha, Zé de Carmo e dona Biu, ouvi histórias que me encantaram bastante e todas eram sobre o universo sobrenatural em torno do caboclo de lança. Tinha uma do caboclo de lança que voava e pulava porteira, uma outra sobre o caboclo que botava um vidro no chão e ouvia onde todo mundo estava, aquela do caboclo que sumia no Carnaval e depois aparecia, um outro que guerreava sozinho contra outros dez caboclos... Então, minha vontade também era transpor essas histórias do passado para hoje em dia e fazer o filme com a pegada das questões sobrenaturais. Mostramos a coisa do ritual do caboclo de lança em contraponto ao culto do pastor.
Tita. Imagem: Divulgação
CONTINENTE Falando em contraponto, Azougue Nazaré se estrutura também a partir de vários embates. Existe a dualidade de como a cultura popular se organiza para manter suas tradições, e o filme mostra isso com os desafios dos mestres que vão respondendo às rimas dos outros pelo WhatsApp, um aspecto que mostramos na Continente de setembro de 2017, quando buscamos falar sobre a cultura popular na contemporaneidade. E também existe a dualidade entre religião e cultura, como se uma tivesse que anular a outra, em especial quando o personagem do pastor diz que para se atingir o reino de Deus, é preciso expulsar o demônio que está no maracatu.
TIAGO MELO Sobre esses embates, algo que mais se destaca, e que surge em perguntas em todos os países aos quais o filme vai, é essa questão sobre religião e cultura. Eu tinha um desejo de fazer a crítica, que não é uma crítica à religião evangélica, nem aos evangélicos em si, mas ao intuito de dominação de algumas igrejas e lideres neopentecostais. Essa pluralidade toda do Brasil não pode ser reduzida a uma só verdade, a uma verdade absoluta, que começa com essa conversa em defesa da família tradicional brasileira. A meu ver, a tradicional família brasileira são os índios, pois a sociedade indígena é muito igualitária, que não tem nada a ver com isso que estão pregando. Um outro aspecto é que a cultura não pode ser anulada pela religião. O maracatu é uma arte de resistência, está aí há muitos anos e não pode ser enquadrada ou liquidada por um pensamento midiático. Estou sempre pensando nisso: como podemos abrir o olho para o que está acontecendo. Isso é um caso de intolerância religiosa também, sabe? A negação do maracatu. O maracatu vem de uma religião de matriz africana, então quando a igreja ou alguém ligado a ela diz que o maracatu é do demônio, não é só o maracatu, são todas as religiões africadas, todos os mitos e reis e rainhas, ou seja, algo muito mais sério do que apenas uma dança ou folclore. A cada dia, sinto que preciso me posicionar, tanto para que o filme não vire um ataque aos evangélicos, como para que justamente os evangélicos venham ver o filme, e não decidam repudiá-lo como se fosse uma coisa do demônio.
CONTINENTE O filme fala de intolerância, do discurso de ódio proferido por líderes religiosos, algo que está completamente em consonância com o que estamos vendo agora nessa campanha presidencial, quando um candidato é apoiado por um pastor que colocou todo seu patrimônio midiático e religioso a serviço dessa candidatura que profere um discurso de ódio muito parecido com o que fala o pastor do seu filme.
TIAGO MELO Em vários debates, no mundo inteiro, me perguntaram se Nazaré da Mata era assim, se tinha uma guerra entre o maracatu e os religiosos. Sempre respondi que não, que se tratava de uma ficção, e por isso todas aquelas relações estão potencializadas, mas a verdade é que não vejo isso como algo impossível de acontecer, sabe? A quantidade de casos que já vimos, linchamento coletivo, destruição de terreiros, tanta coisa que surgiu da internet e se tornou uma possibilidade de matar alguém, sem que essa pessoa tenha culpa ou a garantia de defesa. Eu tentei falar disso no Azougue. Em Nazaré, existem casos que pregam justamente o contrário, são pastores que apoiam o maracatu e defendem a cultura popular. No filme, deixo claro que isso não é uma leitura geral da religião, até porque a religião evangélica tem várias dissidências, muitas linhas. A crítica que o filme faz é a crítica aos falsos profetas, aos líderes que, mesmo se Jesus voltasse, condenariam Jesus como ele foi condenado, soltariam Barrabás e matariam o filho de Deus. Não vejo nenhum ensinamento de Cristo que tenha base para essa cultura de ódio, para esse pensamento de arma, de violência, muito pelo contrário: o que ele prega é o amor mesmo. E a cultura é tão mais forte, tão resistente, que, independente de qualquer pressão religiosa, ela seguirá viva, resistindo no tempo. É como diz um personagem do filme: “a gente é filho de Deus também, não é por estar no maracatu que a gente é filho do diabo”. Precisamos louvar a diversidade, a pluralidade, a aceitação das diferenças e talvez aí seja um dos momentos piores do Brasil, com esse discurso de intolerância e de ódio, mas que precisamos e vamos combater de alguma forma.
CONTINENTE Seu filme passou em janeiro, em Rotterdam, e só agora, em outubro, estreou no Brasil, na 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Muita coisa transcorreu nesses nove meses, mas talvez estejamos prestes a parir um país pior após essa gestação. Como vê Azougue Nazaré em relação ao Brasil de agora?
TIAGO MELO O Brasil tem se atolado, se enfiado em um buraco cada vez mais fundo. Começou com a barbárie do assassinato de Marielle Franco, continuou com a prisão arbitrária do ex-presidente Lula e agora está nesse momento de aceitação de discursos de ódio desse candidato a presidente. De janeiro para cá, pioramos muito e vejo que o discurso do filme se mantém vivo – de como temos que sempre lutar contra o ódio e pregar o amor. Acho que esse é o debate que precisamos fortalecer, porque é justamente sobre uma intolerância que não cabe no Brasil. No filme, vejo o pastor, com seu discurso intolerante, como uma grande vítima, alguém que está tentando buscar seu espaço e não encontra, alguém sendo conduzido por um outro líder que prega esse ódio. Existem muitas vítimas nessa história, que imagino que, lá na frente, vão perceber que foram pelo caminho errado.
CONTINENTE E no meio desse redemoinho todo, quando você pretende levar o filme para Nazaré da Mata?
TIAGO MELO Quando chegar lá, aí sim, vai ser o momento mais importante, para mim, como diretor. É que existem certos protocolos que temos que seguir, sabe? Não poderíamos ter passado em Nazaré da Mata antes porque não seria mais inédito no mundo e aí não poderia ter circulado tanto em festivais estrangeiros a partir da primeira exibição em Rotterdam. Depois, não poderia ter passado lá antes de exibir na Mostra. E eu não quero passar o filme escondido. Tenho explicado a todo mundo isso que estamos todos muito ansiosos, mas que essa hora está chegando e estamos organizando bem tudo com relação à data para que o maior número possível de pessoas da equipe esteja lá. Vai ser a sessão mais importante de Azougue Nazaré. O filme foi feito com inspiração na garra das pessoas do maracatu, é um filme de resistência, de guerreiro. É como um maracatu: foi feito a muitas mãos, muita gente acreditou, embarcou nessa história e trabalhou pesado para que tudo pudesse acontecer. Toda essa comunhão vai ser celebrada quando o filme passar em Nazaré da Mata. Vai ser engraçado, porque aí então o filme já vai ter passado por quase meio mundo inteiro, fazendo um caminho contraditório, como um filho que decide dar a volta ao mundo e depois retorna para casa.
LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica da Continente.
*A jornalista viajou a convite da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.