Resenha

Blade runner 2.0

Continuação da obra de Ridley Scott (1982) é ainda mais distópica e hostil, acrescentando aquecimento global, escassez alimentar e evolução tecnológica às preocupações ambientalistas

TEXTO Rodrigo Carreiro

09 de Outubro de 2017

Imagem do filme 'Blade runner 2049'

Imagem do filme 'Blade runner 2049'

Foto Divulgação

Há uma série de preceitos e regras de conduta que estão para o senso comum cinéfilo como os 10 mandamentos de Moisés para a comunidade cristã. Seja de forma consciente, seja sem consciência, os aforismos influenciam – algumas vezes chegam a ser determinantes – o modo como construímos posições preconcebidas sobre um filme antes mesmo de vê-lo. Um desses mandamentos diz que uma sequência, ou continuação, costuma ser sempre inferior ao título original. Outro afirma que um clássico do cinema não deveria nunca ser refeito ou receber uma sequência, pois não haveria maneira de fazer jus ao trabalho anterior. Blade runner 2049 (Dennis Villeneuve, Canadá, 2017), em cartaz no Brasil desde 5/10, reúne qualidades que desafiam os dois mandamentos – ou, no mínimo, reafirmam o dogma de que toda regra tem sua exceção, e que uma boa exceção mais confirma um aforismo do que o contraria.

Realizado em uma década marcada pelo domínio de franquias cinematográficas impulsionadas por continuações, refilmagens e reboots sucessivos, Blade runner 2049 vem torcendo narizes de fãs desde o anúncio de sua produção. O massivo descontentamento provavelmente constituiu uma das variáveis que provocou o fracasso comercial do lançamento, um dos mais gritantes dos últimos anos – apenas US$ 31 milhões arrecadados no final de semana de estreia, 50% a menos do que era esperado, e uma ninharia perto dos US$ 150 milhões gastos na produção. A ironia é que Blade runner 2049 foi muito bem-recebido pela crítica, e por um motivo que fica evidente desde os primeiros minutos de projeção. Este é um filme muito bem-concebido, escrito e dirigido, que desenvolve com lógica e inteligência o universo desenhado pelo cineasta Ridley Scott no original de 1982.

Dono de uma obra tão sólida quanto versátil – o thriller Os suspeitos (2013), o drama Incêndios (2010), o policial Sicario (2015), todos excelentes como estudos de personagens e como narrativas bem-estruturadas –, o diretor canadense Denis Villeneuve fez uma obra rara para a Hollywood do século XXI: um filme adulto e multimilionário. Conduzido sem pressa, e pontuado apenas ocasionalmente por sequências de ação que se integram à trama de modo orgânico, Villeneuve preferiu apostar em uma direção de arte minuciosa e expressiva, tendo o cuidado de desenvolver o universo diegético do primeiro filme para uma espécie de versão 2.0, mas sem deixar de manter os pés firmemente fincados no mundo real. Os carros voadores quadrados, o idioma que mistura russo, chinês e dialetos africanos, a chuva permanente e os gigantescos painéis luminosos neon agora dividem espaço com hologramas, cônjuges virtuais e alimentos sintéticos comprados em sachês.


Cena de Blade runner 2049, e sua atualização do futurismo

A trama se passa 30 anos após os acontecimentos vistos no filme de 1982. Depois de desenterrar um segredo que contém uma informação estratégica capaz de redesenhar toda a já complexa relação entre humanos e replicantes, o policial K (Ryan Gosling) é encarregado de seguir as pistas fornecidas por esse segredo – e que incluem uma caçada ao seu antecessor Rick Deckard (Harrison Ford), sumido há 22 anos. O futuro, materializado através de uma direção de arte detalhista, é ainda mais distópico e hostil do que seu precursor desenhara nos anos 1980, já que o contexto sociocultural contemporâneo adiciona o aquecimento global, a escassez alimentar e a evolução tecnológica desenfreada às preocupações ambientalistas daquele período. Como antes, quase não há natureza, mas o mar avançou brutalmente sobre a cidade (é contido por uma muralha de concreto). O longa também dedica atenção especial à deterioração das relações afetivas, expandindo o tratamento do tema a partir de um tópico familiar aos nossos dias – a intrusão da alta tecnologia na geografia afetiva dos seres humanos, e torna mais ambivalentes e complexas as interações entre estes e os replicantes.

Imprimindo com coragem suas digitais em uma megaprodução hollywoodiana, Villeneuve trata o tempo fílmico com reverência. Ele constrói, por meio de uma ironia afiada, uma edição que vai de encontro a toda a (pós)modernidade e o avanço tecnológico empregados no filme. Os planos longos, decupados com uso de um 3D discreto, permitem ao expectador examinar os detalhes de cada cena da mesma maneira atenta e cuidadosa com que o policial K o faz. Sem pressa, mas imprimindo às imagens uma cadência quase musical, o ritmo da edição nos permite uma compreensão do enredo que vai além da mera causalidade das ideias; somos capazes de processar os afetos acionados pelo filme junto aos personagens. É um filme de ação em que a ação não é protagonista, e um caso feliz (pelo menos da perspectiva de um cinéfilo que foi garoto nos anos 1980) de produto audiovisual em que a tecnologia de ponta acena para o passado em busca de um futuro menos frenético e mais emocional.

Ademais, Blade runner 2049 é um filme de contrastes. Estes se manifestam na banda sonora, que intercala longas sequências tensas e silenciosas (a cena do interrogatório no início emula, ao mesmo tempo, o primeiro Blade runner e o início de Três homens em conflito, assim como já o fazia o épico Bastardos inglórios, de Quentin Tarantino) com a música minimalista e tonitruante de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer (os temas eletrônicos tradicionais do grego Vangelis estão presentes, devidamente expandidos), que acompanham as clássicas cenas de voo dos carros futuristas. Balas, explosões, motores de carros? Não tem nada disso... e tem tudo isso, ao mesmo tempo, só que com uma ênfase narrativa invertida, quase esvaziada. Talvez não seja exatamente o filme que o público do século XXI queira ver, mas o respeito com que trata o original de 1982, expandindo-o e reverenciando-o na medida certa, é tão raro quanto confortador.

RODRIGO CARREIRO, jornalista, crítico e professor do curso de Cinema da UFPE.

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