Hermeto Pascoal, e o irmão José Neto, vieram adolescentes para o Recife, no início dos anos 1950. Formaram a dupla Os Albinos do Pascoal, ambos tocando acordeom. Se viravam animando bailes, festinhas, mas logo seriam contratados pela Rádio Jornal do Commercio. O Recife contava então com três emissoras (a Clube e a Tamandaré do grupo de Assis Chateaubriand), um mercado que atraía músicos dos estados vizinhos, até da mais distante Bahia. Um desses foi, o também albino, Severino Dias de Oliveira, ou melhor, Sivuca, paraibano de Itabaiana, um virtuoso, cujas habilidades no órgão, no acordeom, fez dele um dos mais admirados artistas da capital pernambucana, e reconhecido no Sudeste ainda morando no Recife.
Hermeto Pascoal conta que deve sua contratação, pela seleta Jornal do Commercio, a Sivuca: “Quando me viu tocar, ele estava quase de saída. Eu também quase vou pra Tupi, mas aí fui pra Jornal do Commercio. Sivuca considerou que eu estava à altura de ficar no lugar dele, aí me apresentou ao doutor Pessoa de Queiroz, o dono da rádio. Eu era muito novo, Sivuca disse que o doutor Pessoa poderia ficar tranquilo quanto a mim. Fui contratado”. Mas antes de jogar no primeiro time da rádio, Hermeto Pascoal foi enviado para a Rádio Difusora de Caruaru (na primeira metade dos anos 1950, o grupo Pessoa de Queiroz fundou cinco emissoras no agreste pernambucano). Em Caruaru, seria substituído pelo sanfoneiro Camarão e, por sua vez, na Jornal do Commercio, substituiria Sivuca, que foi definitivamente para o Rio de Janeiro.
O RECIFE
Pra você, Ilza é uma declaração carinhosa não apenas à musa, mas também ao Recife, que o acolheu e ao irmão, vindos de um sítio em Lagoa da Canoa, distrito de Arapiraca (AL). No repertório, quatro músicas aludem explicitamente à capital pernambucana: Recordações de Recife, Sol de Recife, Do Rio para Recife e Porto da Madeira. Este último título se refere a uma localidade na Zona Norte da cidade, onde Hermeto e Ilza moraram no inicio da vida em comum, na casa da família dela.
O Recife, diz Hermeto, é recorrente em suas lembranças: “Sinto saudades do tempo em que trabalhava na Radio Jornal do Commercio. Vem a lembrança dos músicos, mas sem procurar ver, porque você procura, pensa que tá lembrando, e já lembrou (sic). Eu me sinto como se estivesse andando nos lugares onde eu andava naquele tempo, mas é o pensamento, o espírito. Estou na Terra cumprindo minha missão neste corpo, mas no meu espírito, nas falanges, eu tenho os primos, os irmãos, a gente não para de se comunicar sem ninguém dar a mão ninguém, é só música, música, música”.
A música de Para Você, Ilza pode ser enquadrada como jazz, pela complexidade das sequências de acordes, modos, improvisações. Pode não ser jazz, mas é free, livre. Hermeto Pascoal não admite rótulos na sua música, divisões de gêneros. A faixa Porto da Madeira tem um trecho de choro, de samba de gafieira, porém mais à frente surgem toques de frevo, com a percussão em moto contínuo. Pra Você Ilza é como se um frevo se entrelaçasse com um baião, o triângulo na percussão, é até dançável.
Mas é para se sentir, não ser dissecada. Para Hermeto, só há dois tipos de música: a ruim e a boa. E a que predomina no Brasil, nestas três décadas do século 21, ele coloca na primeira prateleira, sem dar nome aos bois. “A música de hoje pra mim são dos demônios que há no planeta. Mas isso vai passando, desaparece logo. Faz um sucesso grande, como se fosse um desastre, mas depois some, e aparecem coisas boas”, comenta, otimista.
A rigor, os temas feitos para Ilza vão além dos 198 contabilizados. Tudo o que Hermeto compunha tinha a sua audição privilegiada. Quando ele gravava nos Estados Unidos trazia a fita para ela escutar. Quando faturou um extra, comprou uma vitrola caprichada pra casa: “Enquanto Deus deixou ela aqui na Terra, tudo que eu fazia ela escutava. Quando eu gravava um disco nos Estados Unidos, voltava com a fita pra ela. Eu não gosto de escutar nada que eu faço não. Eu digo que não me escuto para não me imitar”, ri alto, da tirada.
Hermeto Pascoal fez carreira no exterior, a partir de 1970, quando foi para os Estados Unidos, onde o amigo Airto Moreira, com quem tocou no Quarteto Novo, reinventava a percussão latina: “Eu viajava muito para fora. Às vezes durante seis meses. Eu ficava com saudade de deixar Ilza em casa. A meninada não tinha com quem ficar. Conversava sobre isso. Ela passava a mão na minha cabeça e dizia: ‘Casei com músico. Vá com Deus, fico torcendo por você. Naquele tempo não havia internet, mas existia uma coisa muito forte entre nós, espiritual. Toda vez que eu ia tocar no exterior, parecia que ela tava me vendo chegar ao Hotel. Em pouco tempo o telefone tocava. Ela sentia que eu tinha chegado. O amor, uma coisa divina”.
DISCO
Hermeto Pascoal levou as partituras para o estúdio da Rocinante, localizado na região serrana do Rio, foi dizendo os acordes aos músicos da banda, na qual a maioria toca com ele há anos: André Marques (piano, teclados), Jota P (saxofones, flauta e flautim), Itiberê Zwarg (baixo, tuba), Ajurinã Zwarg (bateria) e Fábio Pascoal (bateria, percussão). Hermeto toca o que lhe vem à cabeça. Neste álbum foram berrante, copo com água, chaleira, cano PVC, flauta baixo, escaleta, piano acústico e teclados.
Os arranjos Hermeto Pascoal escrevia enquanto o grupo desenvolvia os temas. O produtor Fabio Pascoal comenta sobre o projeto: “Selecionamos as músicas a partir de um livro com as músicas, uma rica variedade de ritmos. Inicialmente, Hermeto optou pelas primeiras páginas, repletas de choros. Contudo, fiel à sua genialidade e à sua capacidade de transcender limites, ele também incorporou outros ritmos universais ao projeto. Ilza nos acompanha em cada nota tocada”. Fábio é filho de Hermeto e Ilza.
E Hermeto complementa, ao seu modo, sobre a feitura do álbum, cuja capa é ilustrada por uma foto de Hermeto e sua musa, feita por Maurício Valladares em 1979: “Eu deixo pra fazer muita coisa no estúdio. Já levava uma música pronta, enquanto iam tocando, eu ia escrevendo os arranjos. A partitura de cada um era feita enquanto ensaiava. Vão tocando, e eu vou fazendo. Gosto da inspiração que vem como o vento. Claro que tenho o dom de criar rápido. Não faço nada premeditado. Mas as coisas que vêm à minha cabeça, claro, vêm do universo".
JOSÉ TELES, crítico de música, pesquisador e escritor