Resenha

A história da Mundo Livre S/A em livro

Banda pernambucana ganha biografia escrita pelo jornalista carioca Pedro Luna, que narra trajetória dos integrantes e conta bastidores das gravações dos discos

TEXTO Marcelo Cavalcante

15 de Outubro de 2024

Foto Tatiana Garrido/Divulgação

Um dos principais pilares do Movimento Manguebeat ganha, enfim, uma biografia digna de sua importância. Mundo Livre S/A 4.0 - Do punk ao mangue: 40 anos de lutas, conquistas e muito ativismo político e cultural, escrita pelo jornalista carioca Pedro Luna, 49 anos, e lançada pela Ilustre Editora, tem um longo título diretamente proporcional ao tamanho da obra. São 552 páginas em que Luna expõe a banda originária do bairro de Candeias, em Jaboatão dos Guararapes, nos seus mínimos detalhes: a família, as várias formações, as referências musicais, os amigos que contribuíram para sua evolução, as polêmicas, a inspiração das letras ácidas do vocalista e líder Fred Zeroquatro, e os perrengues dos shows e viagens, e crises pessoais dos seus integrantes.

Além de celebrar quatro décadas de história do grupo, Mundo Livre S/A, o livro, enriquece a literatura musical pernambucana, que é carente de obras que mostrem a realidade dos artistas da geração mangue para o público. Luna não se limitou a contar única e exclusivamente a história da banda. Com texto fluído e leve, o jornalista descreveu o momento em que o Recife e o Brasil viviam, no sentido econômico, artístico e político, promovendo ao leitor uma profunda viagem no tempo, o que amplifica o entendimento do conteúdo poderoso da Mundo Livre, a banda, para o cenário musical não só da capital pernambucana.

O embrião do Mundo Livre é familiar. Quatro dos seis filhos do humilde casal José Rodrigues Montenegro e Aliete deram início à sonoridade da banda. Fred, Fábio, Carlos José (apelidado de Jean Paul, por apreciar a obra do escritor Jean Paul Sartre) e o caçula Tony nutriam as mesmas paixões do pai: música e futebol. Fred tomou à frente nessa imersão musical, tocando nas bandas Trapaça e Serviço Sujo, no início dos anos 1980. A junção de alguns integrantes das duas bandas fez nascer a Mundo Livre S/A, em 1984, numa época em que as dificuldades para ensaiar, fazer shows e gravar eram imensas.

Pedro Luna detalha toda a arquitetura dos irmãos para solidificar a banda. E que precisou de ajuda de amigos para delinear o seu caminho. Tudo é contado com um roteiro ao estilo Tarantiniano. Na medida em que a história se desenrola e surgem personagens e situações importantes, o capítulo ganha intertítulos para apresentação e explicações deles. Estão lá com merecido destaque Renato L, Xico Sá, Mabuse, Chico Science, Otto, Marcelo Pereira, entre outros. Tudo bem ilustrado com fotos de arquivos pessoais, cards, cartazes e prints de jornais e revistas da época. A ideia é bem sucedida, pois esmiúça o crescimento da banda em cada crise, mostra o envolvimento político e dá leveza aos capítulos e respiro para o leitor chegar até a última página. Segundo Pedro Luna, a ideia de subdividir os capítulos dessa forma visa facilitar a vida de quem possa a vir se interessar a fazer uma adaptação da obra em documentário.

A primeira parte do livro tem um ritmo interessante, que prende bem a atenção do leitor, especialmente aqueles que viram nascer o Movimento Manguebeat. Afinal, a obra traz detalhes curiosos da luta da banda para fazer um som numa cidade escassa de espaços para tocar e que ainda não tinha uma cena para chamar de sua. A primeira apresentação da Mundo Livre s/a, para se ter ideia, foi num salão de festa de um edifício em Candeias, como atração de um aniversário de 15 anos da namorada de um amigo. Logo em seguida, num bar na beira da praia de Barra de Jangada e numa churrascaria na Ilha Grande, apelido que eles criaram para o bairro em que moravam.

A banda era formada por Fred na guitarra e vocal, Fábio no baixo, Jean Paul na percussão, e os amigos Marlius na bateria, e Havron na guitarra baiana (a obra explica a maneira viajada que batizaram o instrumento). A atitude já era punk e engajada politicamente, no melhor estilo The Clash, uma das grandes referências musicais do vocalista. Mas também não deixava de lado a levada Jorge Ben, a maior das influências. Foi ouvindo Tábua de Esmeralda, álbum do cantor carioca, lançado em 1974, que Fred alimentou o desejo, ainda criança, de querer tocar violão. Nesses shows, a Mundo Livre já tinha no repertório as canções Bolo de ameixa e Quarta parede, que vieram a ser gravadas no álbum Carnaval na obra, lançado em 1998.

Imagem, de 1994, escolhida para a capa do livro
Foto: Rui Mendes/Divulgação

Pedro Luna apresenta Fred Zeroquatro como um punk incomodado com o momento político e econômico em 1984, tanto no Brasil, quando o povo estava nas ruas pedindo Diretas Já!, quanto no Mundo, no auge da briga de cachorro grande entre EUA e URSS, conhecida como a Guerra Fria. Através de depoimentos do próprio vocalista como também de outras figuras ilustres que permeavam esse momento pré-Manguebeat, digamos assim, mostra-se Fred antenado a tudo que estava acontecendo. Da sua passagem pelo Colégio Militar, à escolha pelo curso de Jornalismo e seu envolvimento em produção de jornalzinhos da universidade e atuando como repórter de uma emissora de TV, tudo está bem explicado de maneira sucinta e direta. As conquistas e frustrações que se sucedem até a banda conseguir assinar contrato com o selo Banguela (do produtor Carlos Eduardo Miranda e dos Titãs) e a gravação do primeiro álbum, o agora clássico Samba Esquema Noise, que foi produzido pelo já citado Miranda e o baterista da banda paulista, Charles Gavin.

As dificuldades foram imensas, mas o sonho que parecia impossível, foi realizado. Os integrantes usaram instrumentos emprestados e contaram com um penca de convidados (até a atriz Malu Mader fez uma ponta na canção Musa da Ilha Grande).  E assim o livro vai contando as entradas e saídas dos músicos, os bastidores das gravações dos álbuns seguintes e como Fred Zeroquatro se espalha para ganhar inspiração e fazer letras fortes e ácidas sobre seu universo particular e as aflições pelo mundo afora.

Outro ponto que chama a atenção no livro está nos desgastes na relação interna da banda que causaram as trocas de integrantes. Não há cerimônia e nem firulas para contá-los. Das situações mais suaves, como a saída do percussionista Otto, que por se sentir sem espaço, optou por pular fora e seguir carreira solo, às mais complexas, como a expulsão do baixista Fábio, após causar tretas desnecessárias com os integrantes da banda, e do tecladista Bactéria, após uma viagem lisérgica que causou uma tremenda confusão num show. Luna tabela bem essas histórias com os espaços conquistados por Zeroquatro e cia na mídia nacional. Afinal, naqueles primeiros anos árduos, as viagens para o Sudeste e as vastas matérias estampadas em jornais e revistas especializadas e apresentações em programa de TV, eram troféus diante da luta que era para divulgar o trabalho. Porém, o livro se arrasta e o torna cansativo na sua reta final, quando a Mundo Livre S/A  já ganha solidez no mercado, se tornando nome certo em festivais alternativos pelo Brasil afora e com público cativo em capitais como Curitiba, Porto Alegre e Goiânia. Algumas citações de shows e fatos políticos poderiam ser extraídas por não revelarem curiosidades ou informações relevantes sobre a banda.

Luna é autor de outras biografias musicais, como a de Champignon (saudoso baixista da Charlie Brown Jr.) e da Planet Hemp. Quando estava produzindo o livro da banda carioca, surgiu o desejo de escrever sobre os pernambucanos. Foram dois anos de produção até a obra dos mangueboys ficar pronta. "A Mundo Livre S/A está entre as minhas dez bandas favoritas, não só pelo som, mas pelo conceito, atitude e originalidade. Quando estava fazendo a do Planet, achei incrível a brodagem que existe entre a hemp Family carioca e a banda pernambucana. Aliás, na música Hemp Family, D2 e BNegão citam nominalmente Mundo Livre, (Jorge) Cabeleira, Chico Science & Nação Zumbi", explica.

Assim, Luna procurou Zeroquatro para falar da ideia e ganhou o sinal verde. A obra, no entanto, não teve o perfil "chapa branca" - o que  é um grande trunfo. Nenhum integrante da Mundo Livre teve acesso ao texto para consentimento. "Fiz 75 entrevistas. Ninguém que procurei se negou a falar. Apenas alguns não conseguiram encontrar tempo para conversar por conta de suas agendas por conta de trabalho, como foram os casos do baixista Dengue e do cineasta Kleber Mendonça Filho", conta.

Mundo Livre s/a 4.0 - Do punk ao mangue: 40 anos de lutas, conquistas e muito ativismo político e cultural já teve lançamento em São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro, Niterói e Salvador, mas ainda não tem previsão de quando será o lançamento na cidade berço da Mundo Livre, o que é lamentável.

MARCELO CAVALCANTE, jornalista.

veja também

Motel Destino: desejo e a luta pela liberdade

Hermeto: Inspiração que vem como o vento

Labirinto onírico de Brennand