Motel Destino: desejo e a luta pela liberdade
A mistura de luxúria, segredos e poder converte-se na mais nova obra do cineasta Karim Aïnouz, que estreia nos cinemas do país, nesta quinta-feira (22)
TEXTO Laura Machado
22 de Agosto de 2024
Os atores Nataly Rocha (Dayana) e Iago Xavier (Heraldo) em cena do filme
Foto Gullane Filmes/Divulgação
Abrem-se os olhos. Pés caminham descalços na areia rala e esbranquiçada da praia, sorriso feroz de um menino que persegue sua sina. Ele quer ir embora para São Paulo, trabalhar em uma oficina, juntar dinheiro, crescer como um profissional honesto e viver uma vida sem acometimentos pela imprevisibilidade da brutalidade. Heraldo ainda tem 21 anos, não devia conhecer a dor como conhece. Contudo, o protagonista do longa-metragem Motel Destino é um jovem atravessado pelo sofrimento.
Com a interpretação do estreante Iago Xavier, o personagem de Heraldo é um menino forçado a crescer depressa, envolvido com atividades criminosas. Porém, conserva o desejo simplório de amar e ser amado. Furtado justamente por uma amante, ele se atrasa para um assalto que deveria realizar com seu companheiro-irmão e, ao vê-lo morto no local combinado, decide que, enfim, chegou sua hora de ir embora. Em meio a seu luto e à fuga do grupo criminoso que antes pertencia, Heraldo é acolhido entre as paredes do Motel Destino por Dayana (Nataly Rocha) e seu marido, Elias (Fábio Assunção).
Representante do Brasil à Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2024, o filme dirigido pelo cineasta cearense Karim Aïnouz se propõe a ser uma obra neo-noir tropical, onde o calor, o suor e o sexo se desamancham em relações de poder.
Em entrevista à Continente, o diretor explicou que sua obra veio como uma retomada da possibilidade de se divertir com um cinema livre e autêntico, em contraponto ao panorama cinematográfico global que atravessa um momento de muito conservadorismo. “Quando o filme vem, vem com muita força, como se tivesse dentro dele uma faísca. [Motel Destino] veio para celebrar a vida e também para celebrar uma espécie de ressuscitar do estado brasileiro”, afirmou Aïnouz.
Homenageando a essência de ser, o longa-metragem se utiliza do sol escaldante e do clima praiano do litoral cearense como ponto de partida para resgatar o grito de liberdade retratado pelo cineasta cearense em grandes títulos de sua filmografia, a exemplo de Madame Satã (2002) e O Céu de Suely (2006).
Vibrante em suas cores neons, é excepcional a forma com que a iluminação se insere nas cenas de Motel Destino quase como um organismo vivo, capaz de expressar os sentimentos dos personagens através das cores fortes, que brilham de acordo com o tom. Também com sonoplastia capaz de transportar o espectador para a cidade fictícia de Pontal, onde a trama se passa, ouve-se gemidos e gritos dos frequentadores do pequeno motel na maioria das cenas. Esses dois fatores atuam de maneira essencial para a culminância voyeurista e libertária do longa-metragem de Karim.
Seja através da disposição de câmeras de segurança que ganham destaque em tela, com a fotografia assertiva ou com a quantidade de cenas de sexo e nudez, na sua mais recente obra, o cineasta desafia o espectador a tirar os olhos da tela e perder a proxima ação dos personagens.
Na tríade formada por Heraldo, Dayane e Elias, todos estão quase inevitavelmente demorando seus olhares um no outro. O novo acolhido e ajudante, Heraldo, inicia um caso sexual com Dayane, que é casada com o moralmente hipócrita Elias. A partir dessa tríade, a narrativa desenvolve-se.
Com atuação extraordinária de Fábio Assunção, Elias é um antagonista instigante por toda a trama e um dos pontos de maior esplendor da obra. Colocando-se como um homem católico conservador e defensor dos bons costumes, o personagem é um marido violento cujas cenas demarcam seu sexo como clara relação de dominio sobre os demais. Dono do motel, ele pode espiar o cliente que desejar enquanto se satisfaz, gosta de insinuar que os seus funcionários estão insinuando-se para si e, acima de tudo, se coloca como proprietário de Dayana, cuja vida serve diretamente os seus desejos e vontades.
“[Elias] é uma espécie de anatomia da elite masculina brasileira, uma elite absolutamente violenta e absolutamente tóxica. Ao mesmo tempo, ele é uma espécie de autópsia, porque é uma elite que está – se Deus quiser e a força da gente também – em absoluta decomposição”, afirmou Aïnouz.
Espelho de valores conservadoristas e ultrapassados, o personagem de Assunção vive em completa dissonância com os demais presentes em tela. Seja através da violência física, sexual ou psicológica, Elias parece desconhecer outro meio que não o ódio, para seguir sua vida. Ele é o grande detentor do motel e também dos destinos de seus empregados.
Heraldo, por sua vez, vem como a representação de uma nova geração, capaz de desafiar os valores tradicionais, ainda que também sofra com suas amarras. O segundo ato de Motel Destino estipula a conexão de força que vem sendo desenvolvida entre Heraldo e Dayana através de cenas de intimidade sexual e confidências sobre seus passados. Apesar de por vezes tais cenas soarem deslocadas, é possível sentir a união dos personagens na busca pela verdadeira liberdade diante do vortex que é o motel.
Na grande tela, o desejo identitário dos personagens resplandece. Através da dualidade entre sexo e violência, Motel Destino constroi uma história com traços naturalistas que cativa justamente pela luta por ser livre travada pelo protagonista. Luta essa, que sendo tão individual, é também de todo ser humano.
LAURA MACHADO, jornalista.