Reportagem

Por um lugar ao sol [parte 2]

TEXTO Débora Nascimento

02 de Janeiro de 2020

Antonio Rafael vende telas de temas praieiros em Porto de Galinhas

Antonio Rafael vende telas de temas praieiros em Porto de Galinhas

Foto Alcione Ferreira

[continuação da reportagem Por um lugar ao sol | PARTE 2 | ed. 229 | janeiro de 2020]

As diferenças sociais são destacadas à medida que, ao contrário de antes, quando todos esticavam suas toalhas, cangas ou esteiras, hoje, as barraquinhas com mesas e cadeiras predominam na faixa de areia. É preciso ter algum dinheiro para consumir ao menos um refrigerante, uma água e, assim, poder usufruir desse espaço. E, enquanto banhistas estão desfrutando o sol e o mar, transitam, pela mesma areia, diversos trabalhadores e pais de família em busca de sustento. “Faz um bocado de tempo que eu vendo quadro aqui. Eu só vinha aqui mais no final de semana, porque eu trabalhava em firma de obra. Eu vinha só fazer bico. Mas ‘tive doente. Eu trabalhava de carteira assinada mesmo. Nessa firma, eu não pude mais trabalhar no pesado, porque chega uma certa idade… Então, eu ficava mais fazendo biscate, pra segurar a família. Meu menino também pinta. A gente tem quadro de todo preço, 30 conto, 35, tem quadro de 70, mas a turma só quer pagar 50 real, é tudo tabelado com a loja. Pra gente ganhar o pão de cada dia, a gente tem essa luta. No verão é que a gente ganha um trocadinho. Tem dia que sai sete, oito peças. E tem dia que não sai nenhum”, relata Antonio Rafael, vendedor de telas em Porto de Galinhas, 60 quilômetros ao sul do Recife.

“Antigamente, era o ano todo que vendia. Mas agora caiu um pouco o movimento, Porto ficou mais popular. Os gringos diminuíram bastante. Faz uns cinco, seis anos que está tendo essa queda do europeu aqui. Hoje em dia estamos trabalhando mais com os turistas locais e os argentinos, que vêm o ano todo. Eu e minha esposa, que produzimos esses vestidos, temos uma renda mensal de R$ 1,5 mil e R$ 2 mil. Eu, ela e meu filho vendemos. Ele tem 22 anos e eu estou com 42 anos. Estou há 11 anos aqui. Mas sempre trabalhei na praia. Eu gosto da praia, eu me sinto bem. Gosto de interagir, de ver públicos novos, gosto de me comunicar, de falar do lugar, da gente, pra o turista levar uma boa impressão da gente”, diz o alegre José Aparecido Moura, mais conhecido como Jaklekle de Porto – o apelido é inspirado no estilista Jacques Leclair, personagem da novela Ti Ti Ti (de 1985, com remake em 2010).

Jaklekle já tomou conta de carro, vendeu camisa e chapéu de palha. Trabalhou em diversas praias em Pernambuco, Santa Catarina e Alagoas. “Quando conheci minha esposa, na Praia do Francês, ela já fazia vestidinhos e vendia na praia. Aí ficamos só nos vestidos. Hoje faz 25 anos que estamos juntos. Já temos netos. Tudo veio da praia. Já recebi proposta de trabalho na prefeitura, mas eu gosto da praia. Vendemos, apesar da crise que passamos, que eles dizem que a gente está em crise, que eu não acredito, porque senão não tinha tanto dinheiro sendo desviado. Então, o país não está em crise. Os administradores do nosso país que fazem parecer que o país está em crise. O Brasil é riqueza em tudo. E olhe que vem sendo tirado da gente desde a época dos holandeses. Portugal tem a fama de ser o país do ouro, mas o ouro de Portugal veio daqui. Eu só acredito em dias melhores. Eu só tenho a agradecer à praia. Daqui a pouco vou dar um mergulho.”


Jaklekle de Porto comercializa vestidos na praia mais famosa do litoral pernambucano.
Foto: Alcione Ferreira


Muita gente cumprimenta Jaklekle enquanto ele conversa com a Continente. “Todo mundo aqui se conhece. Isso aqui é minha autorização pra poder trabalhar na praia, é tudo cadastrado”, diz mostrando o registro. “Porque a gente do município trabalha o ano todinho e, quando é no verão, vem muita gente do Rio Grande Norte, do Sul de São Paulo e a praia fica muito cheia, e isso é ruim até do ponto de vista dos turistas, que chegam e acham muito conturbado. Isso é uma forma de organizar. São 1.500 cadastrados da associação dos ambulantes. Essa praia é uma empresa, dá de comer a muita gente. Tem em torno de 10 mil trabalhadores, no total, contando com jangadeiro, bugueiro, garçom de restaurante e de barraca, cada uma tem uns cinco, seis garçons”, conta ele que, após posar para nossa reportagem, seguiu pela areia puxando sua loja-carroça.

“Eu trabalhava como operador de máquinas no Einstein, em São Paulo. Vim pra cá como turista, gostei da praia e fiquei, ganhando pouco, gastando pouco. Já faz 10 anos. E agora, agora, não pretendendo ir embora, não. Tenho dificuldade, lógico. Mas, mesmo assim, a tranquilidade não tem preço. Ganha pouco, gasta pouco. Praia tem dia que dá, que não dá. Depende muito da temporada. Aqui é bom, por causa da tranquilidade. A praia não tem muito a hora de chegar, depende muito da maré. Já os barraqueiros ficam mais tempo. Lá onde eu moro tudo é diferente daqui da praia. Está 100% largado, saneamento não existe. Cadê o saneamento de Porto de Galinhas?”, questiona o paulista Severino Domingos Ramos, que vende brinquedos e pipas em formatos de pássaros.

Um dos garçons que abordou a equipe da Continente para que ocupasse alguma cadeira foi Vitor Teixeira de Lima, 24 anos. Ao descobrir que não estávamos no lugar para tomar banho de sol ou de mar, ele contou um pouco de como passou a trabalhar na praia de Porto de Galinhas. “Estou há três anos. Um colega meu me trouxe pra cá. Já frequentava a praia. Minha família está morando aqui faz seis anos. Já trabalhei em Maracaípe de garçom. Aqui é bom porque tem dia que se tira uma renda maior. Mas tem dia que não se tira nada. Aqui só ganha se pegar cliente, se correr atrás. A barraca é do dono, trabalho pra ele. Trabalham aqui nessa barraca umas 10 pessoas. De garçom, cozinheira e ajudante. São 30 cadeiras e 20 guarda-sóis.” A área de cada barraca é definida pela prefeitura.

“Eu gosto de trabalhar na praia, por mim não sairia daqui, só se arranjar um emprego com carteira assinada, salário bom, pode ser que eu saia. Mas, enquanto isso, prefiro aqui, porque é um trabalho mais livre. Trabalhei antes em restaurante, era mais rigoroso, tinha horário de chegar, de sair, tudo de farda. Aqui é tudo por conta da gente, a roupa da gente. O horário no restaurante era das 7 às 18 horas. Só tinha uma hora de almoço, um salariozinho miadinho e ganhava 10% de comissão. Aqui o horário é mais livre e aí eu ganho dinheiro dependendo de mim”, conta Vitor.


Domingos Ramos veio de São Paulo como turista e acabou ficando em Porto de Galinhas.
Foto: Alcione Ferreira

“A praia é um vício”, diz a professora de Geografia Ligia Levy, que estava curtindo Maracaípe, a três quilômetros de Porto de Galinhas. “Na praia você fica feliz, compartilha histórias, faz terapia, troca energia com o mar, fica descarregada. Na Geografia, a gente chama isso de topofilia, que é a ligação com um lugar que causa felicidade, que desperta sentimentos positivos, do qual você vai ter uma boa memória. Por isso você frequenta o lugar como eu estou visitando a cada 15 dias, depois que conheci Maracaípe. Hoje moro em João Pessoa. Antes morava em São Paulo. Foi fácil demais mudar para o Nordeste. Quando descobri que era verão o ano inteiro, coloquei na cabeça que era aqui que eu ia morar. Esse negócio de não sentir mais frio é muito bom. Uma professora indicou, falou que eu ia gostar e realmente ela acertou. Minha família toda ficou lá. Meu filho mora comigo. É maravilhoso. Eu amo o Nordeste, os lugares, as pessoas, tudo”, conta Ligia, que vive na região desde 2013.

Em seu mestrado na UFPB, ela pesquisa sobre… praias. “Pesquiso sobre a praia de Coqueirinho e os impactos ambientais, onde eu observo o crescimento de Ipojuca. Faço essa observação do impacto dos processos de ocupação, de como poderia ser uma relação mais harmoniosa com a natureza, sustentável e próspera para todos. Por isso alguns lugares, como este – que já está muito grande, comparado ao litoral sul da Paraíba –, ainda têm o potencial de produzir uma forma mais harmoniosa de turismo, de crescimento econômico e equilíbrio ambiental. Existem caminhos, exemplos em vários lugares e a gente pode buscar isso. Mas tem que ter interesse. A gente está vivendo essa transição dessa sociedade cada vez mais consciente sobre isso. É uma conscientização que está vindo através da necessidade, forçada pela natureza.”

Antes de ser abordada pela reportagem, Ligia estava conversando com as amigas, a professora de Educação Física Flavia Pimenta e a professora de surfe Nuala Costa, que dá aulas em Maracaípe. “Há quatro anos, dou aula de surfe para mulheres e crianças. Tenho um movimento feminista do surfe. Todos os esportes são muito masculinos, já existe o patriarcado e a gente tem que ocupar os mesmos espaços que os homens. Tem escola de futebol e de basquete só para homens, por que não uma de surfe só para mulheres?”, questiona Nuala, que integra o Projeto TPM, Todas Para o Mar (@tpmtodasparaomar). “Esse projeto começou aqui e agora é nacional, envolvendo mulheres do Brasil inteiro. Em Pernambuco, somos 22, 12 de uma associação e 10 mulheres parceiras.” Nuala realiza o Surf Day, em que ensina as técnicas às mulheres. Acontece uma vez por mês, com um dia inteiro de atividades, como aula de surfe, ioga, roda de conversas sobre feminismo e saúde da mulher.


As amigas Flávia Pimenta, Ligia Levy e Nuala Costa, que dá aula de surfe para mulheres em Maracaípe. Foto: Alcione Ferreira

***

A 55 quilômetros de Maracaípe, em Boa Viagem, trabalha o dono de barraca Edmilson Guedes. “Cheguei no Recife em 1988. Sou de Feira Nova, que fica perto de Limoeiro. Já trabalhei com Casa de Farinha, carregando bebida, tomando conta de gado. Saí de lá com 19 anos. Vim direto para o Recife e estou aqui até hoje. Saí de lá para arrumar serviço. Perdi meu pai muito cedo. Aí ficava difícil e tive que correr atrás. A maioria do pessoal que trabalha aqui na praia é tudo do interior. O interior, naquele tempo, não tinha muito serviço. Mas agora a cidade começa a movimentar. Meus irmãos vivem lá, a família vive tudo lá. Mas eu vivo aqui mesmo. Não tem mais como voltar. Estou com minha família aqui trabalhando comigo também”, conta o vendedor de refrigerante, cerveja, coco, petiscos, que trabalha com mais três rapazes, incluindo o filho. “É uma pequena empresa.”

“Quando eu vim pra cá, trabalhei, trabalhei e comprei um barraquinho perto do shopping. Construí um pra morar. Aluguei. Fiz duas lojinhas, aluguei, graças a Deus, e vim morar aqui com o aluguel de lá”, conta o simpático barraqueiro, que, há três anos, tem o prazer de morar de frente ao trabalho e de frente para o mar.

“Não é difícil morar em Boa Viagem. Tem apartamento de milhões, mas tem apartamento barato. Eu fiz um investimento que deu pra tirar de um lugar e colocar em outro. Enquanto eu puder, estou por aqui. Eu adoro essa praia, todo dia de 5 da manhã venho trabalhar. Dou uns quatro mergulhos, vou pra casa, volto de novo. Meu escritório é na praia”, diz Edmilson, que usa uma camiseta estampada com a famosa frase de Chorão, do Charlie Brown Jr. “Eu também presto serviço pra Federação de Vôlei de Praia, tenho acesso e monto para o pessoal. Cobro uma taxinha de R$ 20. Mas meu trabalho é minha barraca. Tenho 200 cadeiras e 100 guarda-sóis. Há 621 barracas na praia e todo mundo cadastrado na Dircon. Estou com 50 anos. Tenho três filhos e dois netos. Tudo criado dessa praia, graças a Deus.”

Edmilson Guedes é um dos moradores de um dos espigões que formam um paredão na beira-mar. Assim como em outros bairros que comportam praias urbanas, aconteceu em Boa Viagem um inchaço imobiliário. A população, que era de 27 mil pessoas, em 1950, passou para 75 mil, em 1960, e hoje é de 123 mil, maior que a quantidade de habitantes de dezenas de municípios pernambucanos, como Igarassu e São Lourenço da Mata. Durante a década de 1970, o bairro deixou definitivamente de ser um local de veraneio, como era nas primeiras décadas do século XX.


Na sua barraca praieira, Edmilson Guedes vende cocos, refrigerantes e bebidas.
Foto: Alcione Ferreira


Embora seja o bairro mais populoso do Recife e considerado o mais verticalizado, a arquiteta Iana Ludermir, professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, afirma que Boa Viagem tem 70% de seus imóveis com até quatro pavimentos. “Essa condição de a gente de ter essa hiperverticalização na orla, que faz a sombra na praia, é o que é muito chocante, por causa dessa alta concentração na orla. Em outras cidades, há um escalonamento e essa forma de ocupação e de incorporação do nosso mercado imobiliário, que muitas vezes faz desmembramentos e verticaliza. Como não tem nenhuma lei impeditiva a essa verticalização nessa primeira faixa da praia, esse é o resultado que a gente tem no Recife.” Hoje, apenas três edificações baixas, que destoam do paredão da beira-mar, são protegidas por lei (Imóvel Especial de Preservação): Acaiaca, Castelinho e Cassino Americano. O Caiçara foi derrubado em 2016 e o Oceania, onde foi rodado o filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, virando, com isso, ponto turístico da cidade, aguarda aprovação do pedido de tombamento.

A professora aproveita para lembrar que Brasília Teimosa está protegida da especulação imobiliária por ser considerada uma Zeis (Zona Especial de Interesse Social), “mas nem tanto”. Ela argumenta que o terreno onde hoje é o prédio do JCPM estava metade fora e metade dentro da Zeis. “No momento em que existiu um interesse, o proprietário daquele terreno entrou em acordo com a prefeitura, com o Prezeis, que é quem regulamenta essas Zeis dali, e deu uma contrapartida, que foi a construção de um equipamento público e a qualificação de uma praça, e, com isso, ele conseguiu alterar o desenho das Zeis. Então, se você for pegar um mapa das Zeis de 20 anos atrás é diferente de hoje. Da mesma forma que isso aconteceu e foi um processo legalizado, por que é que não aconteceria outra vez? Outra coisa que a gente está percebendo é que já existe uma verticalização do mercado imobiliário informal em Brasília Teimosa”, observa.

“Aqui tem muito esse pessoal de prédio de olho nesse pedacinho de terra da gente aqui, doido pra tirar a gente daqui. Porque é um bairro que chove a noite todinha, quando amanhece aqui é assim, seco. O pessoal tá tudo de olho aqui, mas o nome daqui é Brasília Teimosa. Já apareceu muita gente quando começou a fazer esse JCPM e aquela orla, pra Brasília ficar valorizada e o pessoal ficar querendo tirar a gente daqui, botar a gente pro morro, pra quando chover, ligar a televisão, ver a gente embolando com lama, com barro e tudo. Mas a gente não sai daqui, não. A gente aqui somos teimoso. Aqui é um lugar bom de morar. Tem o que todo canto tem, o que acontece no mundo, roubo, assalto. Mas um bairrozinho bom de morar é Brasília Teimosa, é perto de tudo, da cidade, de hospital, de tudo. E o único ônibus que é o mais barato é o daqui, R$ 2,25. Aqui em Brasília Teimosa já se acorda com o cheiro de peixe fritando. Aqui todo dia sai peixe”, relata o pescador Damião Isídio da Silva, 55 anos, filho de pescador, que diz já ter nascido pescando.


Pescadores de Brasília Teimosa: Paulo Fernandes, Claudio Antonio, Sandro Gomes e Damião Isídio. Foto: Alcione Ferreira

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Nesse mesmo domingo em que Damião conversava com seus colegas na Vila dos Pescadores, a Praia do Buraco da Velha fervia em torno de sua água tranquila, que mais parece uma grande piscina natural. A faixa de areia estava abarrotada de mesas e cadeiras. A música que saía do sistema de som de diversos carros com o porta-malas aberto misturava-se e encobria o agradável som das ondas. Mas, mesmo assim, os banhistas preferiam esse espaço a estar na vizinha Boa Viagem, uma praia bem maior, com oito quilômetros de orla. “Saímos de Afogados para cá. Venho com o meu marido, amigos e vizinhos. Aqui as coisas são mais baratas, a praia é mais calma, mais tranquila para quem tem filho”, disse a técnica em farmácia Tanielle Félix. “Aqui não tem tubarão e arrastão, como em Boa Viagem. Já testemunhei até tiro lá.” Coincidentemente, duas horas depois desse depoimento, um policial militar à paisana matou um banhista a tiros, no trecho de areia em frente à Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem, por causa de um copo de cerveja derrubado sem intenção.

Junto ao pescador Damião, em Brasília Teimosa, está seu colega Paulo Fernandes. “Eu comecei a pescar novo, 14 pra 15 anos. Agora vou fazer 63. A pescaria de 30 anos pra cá caiu muito, a produção de peixe caiu muito, camarão, lagosta. Tem menos peixe, a produção de hoje não é de 20 anos atrás. Caiu a produção de atum”, afirma o pescador, que recebe o complemento de Damião. “Antigamente, você chegava de meio-dia com a agulha. E não botava a quantidade de material de pesca como bota hoje. Antigamente, a gente botava pouco material e a produção era maior. O que a gente vê mais no meio do mar é esse pessoal rico com lancha atrapalhando a pesca da gente, pescando com lancha pra lá e pra cá. Ali (onde é o RioMar) era um berçário grande das espécies daqui. Eu nunca mais vi um cavalo-marinho aqui dentro. A gente via direto. Siri mole também. Nunca mais vi nada disso. Eles aterraram tudo. Quando é um pobrezinho que aterra um pedacinho de lama pra fazer um barraco, o pessoal vem e derruba, chama logo a polícia. Hoje em dia, você abrir uma ostra não é mais como há 10 anos, uma ostra limpinha. Eu mesmo não como ostra. Meu negócio é peixe-frito, de coco e tá tudo certo. Tem vida melhor do que essa? Viver do mar. Tudo aqui é festa, peixe-frito, camarão, cerveja.”

“Eu pesco todo dia, saio de quatro da manhã, chego de meio-dia, dependendo da pesca, dependendo do produto. Minha pescaria mais é agulha. Vendo para o atravessador. Ele paga cinco reais pelo quilo da agulha. Não é um bom preço, porque aumenta o óleo diesel, só não aumenta o produto da gente, que continua baixando. Agora, mesmo, com esse problema do óleo, o pessoal vai para o mar, chega com o peixe e fica com dificuldade de vender e tem que vender por menos do preço, pra não ficar com o produto na mão. E quem compra é quem ganha dinheiro. O pescador sempre tem que passar por isso. Diminuiu muito a venda”, reclama Damião.

“A gente tá pagando por uma coisa que não fez, porque não foi a gente que jogou óleo no mar”, diz o seu colega de profissão Claudio Antonio da Silva. “Chega um negócio desse, o governo não tá nem aí, diz que vai sair esse dinheiro e até agora só conversa. Faz dois meses que caiu a produção da venda. O governo federal vem sabendo disso há muito mais tempo. Eu sempre morei aqui. Estou com 56 anos. Sempre pesquei. É o único trabalho que tenho e agora tá acontecendo isso. Isso acabou com a gente e quem trabalha vendendo peixe. Aí estava abarrotado de peixe. A cioba, que era a R$ 20, chegou a R$ 8. Chegaram uns 300 quilos de peixe, foi guardado na casa do dono do barco, porque não tinha a quem vender.”

A maior tragédia ambiental do litoral brasileiro já atingiu quase mil pontos no país. Para o biólogo e oceanógrafo Clemente Coelho, professor da UPE, o problema social é o pior de todos. “Primeiro, porque a gente tem um contingente de profissionais da pesca que está com sérios problemas. Eles perderam sua renda. Pessoas deixaram de consumir peixe com medo de que esteja contaminado. Então, a gente está vendo um problema social seriíssimo. Talvez seja o pior dos problemas. Quase 80% da produção pesqueira no litoral do Nordeste é de pesca artesanal. Estão usando apetrechos e uma logística bem simples, de barcos pequenos. Ou seja, atuam realmente na região mais próxima do litoral, que é a mais afetada. Hoje, a gente tem poucos estudos mostrando se os peixes estão ou não contaminados. Um deles, por exemplo, foi um primeiro estudo do governo federal, que coletou peixe de peixarias, que mal se sabe quando foram pescados, onde foram pescados, e deu um resultado no qual mostra que não estariam contaminados. Foi de uma irresponsabilidade sem precedentes”, critica.

“O que a gente orienta, por questão de precaução, é que alguns organismos ficam mais em contato com o óleo e estão mais em contato com as moléculas nocivas, principalmente aqueles que estão próximos aos manguezais ou dentro dos manguezais: sururus, ostras, caranguejos. Desses, não se tem ainda nenhum estudo da contaminação. Os peixes de alto-mar, por exemplo, possivelmente não estão contaminados, mas aqueles mais costeiros, há uma probabilidade grande de estarem contaminados. E, como um dos problemas da contaminação é cumulativo, você hoje pode comer um peixe que tem uma baixa concentração de metais pesados, benzenos, dos HPAs (hidrocarbonetos policíclicos aromáticos), que são moléculas bastante nocivas, só que eles são cumulativos”, explica.


Preparo para pesca na Vila dos Pescadores, em Brasília Teimosa.
Foto: Alcione Ferreira


O professor acrescenta que pode durar décadas o efeito crônico da contaminação das águas e que, por isso, é preciso que haja uma análise de amostras de areia e de água de cada praia. “Isso tem que ser feito. Eu acho até importante que a sociedade saiba disso, pra cobrar. A literatura científica mostra que, em todas as áreas que sofreram impacto – não são poucas, são milhares delas no mundo –, a contaminação fica presente por algumas décadas e é necessário um monitoramento a longo prazo.”

Isso vem a agravar o problema que já atinge os oceanos. “Esgoto, plástico, sobrepesca e mudança climática, aquecimento da água, elevação do nível médio do mar, isso já está dentro da panela de pressão. Aliás, está dentro de uma panela na qual chega o óleo e bota a tampa de pressão. E aí se aumenta e potencializa o problema. Acho que nós estamos agora num momento, eu diria, crucial para se tomar medidas urgentes. Para as mudanças climáticas, essas medidas já estão sendo divulgadas, que não há mais tempo para se discutir, e, realmente, não tem muito mais o que fazer e toda a sociedade vai ter que se mobilizar. A gente tem uma menina que representa até muito a nossa luta, Greta Thunberg. Ela acaba carregando uma bandeira que vem lá de trás, do ambientalismo”, pontua Clemente Coelho.

Séculos depois de o mar ter perdido a imagem de lugar misterioso e temível, ele volta a ser personagem de um roteiro sombrio, desta vez não alimentado pela religião ou ficção e não como vilão, mas vítima. “O mar traz paz, quietude, contemplação, gratidão pela vida, humildade, o mar é muito poderoso. Eu sempre aprendi muito com o mar. Sempre que estou perto do mar sinto tudo isso. É vida, purificação. O mar lava a alma”, diz Carlos Burle. “Espero que a gente possa retribuir, como seres humanos, à altura. Que o ser humano pare de jogar lixo nos mares, rios e lagoas. Que a gente vá para um momento na vida da gente que repense os nossos valores, que a gente consiga cuidar do nosso meio ambiente, como a gente deveria cuidar da nossa casa e do nosso corpo. Eu tenho certeza de que a gente está indo para esse lugar. Como seres humanos, a gente só aprende perdendo. Como a gente está perdendo qualidade de vida, as novas gerações vão ter outros valores, vão ter uma consciência diferente do que a gente tem hoje”, acredita o surfista, que um dia viu seu futuro numa cena prosaica – e atualmente inexistente, por conta dos ataques de tubarão – de surfistas pegando ondas na Praia de Boa Viagem.

Mais de um quarto de século depois do primeiro de uma série de ataques de tubarão na orla, existe hoje uma geração que nunca desfrutou do prazer de “ir e vir, de entrar no mar e sair, sem nenhuma preocupação”, como lembra o surfista. “É um impacto social e impacto direto no esporte. E, quando você vai procurar a causa disso, sabe que é um desequilíbrio ambiental provocado pelo homem.” A inevitável mudança de comportamento dos banhistas na principal praia urbana do Recife (“área sujeita a ataque de tubarão”) afetou a relação da cidade com o mar, e mostrou, em sua nostalgia do mergulho sem medo, a importância desse ambiente para a vida do ser humano.

Mas, mesmo que haja esse lamentável perigo, assim como a shoppinização do entorno das praias, a exemplo de Porto de Galinhas e Miami Beach, a disneyzação de Coney Island, a elitização de Fernando de Noronha, a privatização de muitos trechos do litoral brasileiro e do mundo afora, a praia ainda é o espaço público que proporciona a maior interação coletiva e individual com a natureza. E, por mais que haja a inconsequente intervenção do homem, sempre haverá o território do encontro entre as ondas e a areia branca, formada há milhões de anos. Ao caminhar com respeito sobre essa grandiosa história que independe de nós, com sorte, pode-se achar uma concha, ouvir o som do infinito, olhar o horizonte e se sentir em casa.




Imagens da Praia de Boa Viagem, no Recife. Fotos: Alcione Ferreira

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente e colunista da Continente Online.

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