Reportagem

O Agreste encourado

A indústria do couro emprega, atualmente, alta tecnologia nos processos, mas, no interior pernambucano, famílias conservam técnicas manuais que atravessam gerações

TEXTO Maryane Martins

27 de Março de 2025

José Bezerra, artesão de Caruaru

José Bezerra, artesão de Caruaru

Foto Marina Torres

Os 18 km percorridos desde o centro de Belo Jardim, no agreste pernambucano, levam ao distrito de Serra dos Ventos, pertencente ao município. Percorrendo mais 2 km na zona rural, é possível encontrar uma porteira que dá passagem a um terreno. Um enorme cajueiro e pés de bananeira parecem esconder o que, de longe, se assemelha a uma casa de alpendre, daquelas comuns na região. Mas, a qualquer um que se aproxime, o cheiro denuncia que ali uma alquimia acontece.

A casa é, na verdade, um laboratório. Um laboratório que, longe de pipetas e tubos de ensaio precisa de pele animal, casca de planta, granito, cal, água e muitos outros materiais. Sebastião – que pediu para não publicar seu sobrenome, e é conhecido por Seu Tião – é “a mão que faz a química acontecer”. Seu trabalho possibilita a transformação da matéria orgânica em inorgânica. O laboratório é, por sua vez, chamado de curtume.

O curtimento é feito através do processo físico-químico que transforma a pele (de diversos animais), uma matéria-prima perecível e sem uso específico, num material estável, com diferentes características e possibilidades de uso: o couro. Essa pele curtida é flexível e macia, e pode ser utilizada na confecção de calçados, bolsas, produtos de montaria, roupas e malas, no revestimento de estofados, na produção de chapéus, bolas, tapetes, entre outros.

O processamento tem uma série de etapas. Em todas elas, o principal ingrediente é o tempo. No curtume de Seu Tião, é preciso esperar cerca de 35 dias para a pele de bode ser curtida. A atividade requer também esforço, paciência e, literalmente, imersão.

Tudo se inicia com a esfola: a remoção da pele do animal, ainda nos abatedouros ou frigoríficos. Quando as peles necessitam ser estocadas e/ou transportadas por um tempo maior que 12 horas, principalmente em temperaturas mais altas, elas devem passar por um pré-tratamento: a “cura”. Nela, empilham-se as peles intercalando camadas de sal entre elas. A finalidade dessa conservação é impedir que haja a decomposição da matéria-prima até o início dos processos que irão transformá-la. Essa etapa pode ser feita por intermediários – os salgadores de peles –, ou nos próprios curtumes.

Para Tião, a semana de trabalho começa aos sábados. Esse, que é o último dia para a maioria das pessoas, é o primeiro de seu trabalho, quando vai até à Paraíba, em busca das peles. A viagem é também, para ele, sinônimo de lazer: “Revejo amigos; conheço outros curtumes; vou com minha companheira, às vezes passo o final de semana”, conta. Os laços criados refletem o tempo dedicado à profissão. Já são 30, dos seus 53 anos trabalhando na atividade.

“Comecei como agricultor, com plantio de verdura, mas era pertinho do curtume de Seu Antônio e me interessei pelo processo. Muita gente diz ‘não presta porque não é cheiroso’. Mas a gente se acostuma. Já passei 9 anos trabalhando como motorista de caminhão, mas não aguentei, voltei pra cá”, relembra.

Apesar de, atualmente, a indústria do couro empregar alta tecnologia nos processos, Seu Tião conserva técnicas manuais que atravessam gerações. Para ele, o mais importante é viver, segundo os próprios saberes da prática que deu movimento a mais de metade da sua vida.

Ao chegar de viagem com as peles, Tião começa a realizar as etapas de preparação do couro: primeiro, a ribeira; depois, o curtimento; e, por fim, o acabamento.

São cerca de 800 peles/mês. Na fase de ribeira, a pele é colocada num tanque, com água e cal, cavado na terra. Lá, fica cerca de 12 dias. Em todos eles, Tião entra e sai do tanque. “Todo dia coloco a pele pra fora e pra dentro, aí o ‘cabelo’ fica bem molinho, soltinho. Depois, levo para a pedra de granito e ele sai inteiro”, explica, em meio ao chão, que se confunde com o pelo retirado, que é utilizado, posteriormente, como adubo.

Em seguida, a pele, agora sem pelos, é levada para mais dois tanques: primeiro, um com água e salitre; depois, apenas água. “Aí, apoio a pele num cavalete de madeira e raspo os restos de carne que estiverem grudados. Quando acaba essa parte, a pele já está limpa e pronta para ser curtida”, completa o ex-agricultor.

A próxima etapa é onde a “mágica”, ou melhor, a química, acontece. É no curtimento que um agente desloca a água entre as fibras de proteína e “cimenta” essas fibras. Em outras palavras, as peles adquirem estabilidade e, a partir daí, recebem o nome de couro.

Há três agentes de curtimento mais amplamente usados: o tanino vegetal, sais minerais como sulfato de cromo e, óleo de peixe ou animal. No curtume de Tião, é utilizado o agente vegetal. As peles são colocadas em tanques, também cavadas em terra, e submersas na água com o agente, por cerca de 15 dias.

É nessa fase que Seu Tião fica, literalmente, imerso nos tanques para repetir o processo de retirar e inserir as peles, diariamente. Assim, elas permanecerão esticadas, mantendo o comprimento.

Por fim: o acabamento. São realizados tratamentos que darão o aspecto final ao couro pronto. São feitas correções, para reparar arranhões, e processos, para garantir a maciez, a elasticidade, impermeabilidade e a cor. Também são feitos o lixamento e a secagem, quando o couro vai para o varal, até toda água evaporar.

O curtimento de pele de boi dura quase o dobro do que uma pele de bode leva para ser curtida, devido ao peso e ao tamanho bem maiores. São 65 dias para chegar à sola, o couro do boi, em seu estado bruto. Nos arredores do curtume de Seu Tião, há também outros, todos utilizam pele de caprinos. Para a obtenção da sola é preciso mais espaço e mais pessoas trabalhando.

É devido à falta de mão de obra que um curtume de couro de bode e boi em Monteiro, no sertão paraibano, vem produzindo cada vez menos sola. “Inicialmente tínhamos na faixa de 10 a 12 trabalhadores. Hoje caiu bastante a produção. Devem ter uns dois. Isso porque meu pai, devido à idade, quis diminuir – e também não há mais quem queira trabalhar com couro ali na região da gente. Mandávamos mercadoria para São Paulo e para a região de Minas”, conta Bruna Cristina Moraes da Silva, de 34 anos.

Desde os oito anos, ela convive com o couro. O curtume é de seu pai, Jânio Bonivan de Souza, conhecido como “Cabeludo, o Rei da Sola”. Bruna, que nasceu em São Paulo, veio para o Nordeste aos 8 anos de idade. Seu pai, paraibano, que foi para São Paulo, resolveu voltar ao sítio que era dos avós de Bruna, o mesmo onde até hoje existe a produção de couro. Nesse curtume, trabalharam não só os avós, como os bisavós e trisavós de Bruna. São gerações entrelaçadas com o couro.

“Quando chegamos à Paraíba, meu pai voltou a trabalhar com o couro, fabricando e comercializando. Ele começou a viajar para vender e, falaram da cidade de Cachoeirinha, que era boa para as vendas. Me mudei pra cá aos 12 anos. Quando tinha 15, meus pais voltaram para Monteiro e eu fiquei com minha irmã aqui, trabalhando e cuidando de outros irmãos”, relembra Bruna.

É na cidade de Cachoeirinha, no agreste pernambucano, que as histórias de Bruna e Seu Tião se encontram. Lá, a 55 km de Belo Jardim, 170 km de Recife, ambos comercializam o couro. No seu armazém (na Rua Siqueira Campos, conhecida como “Rua da Selaria”, com cerca de 10 m²) é onde empilha-se e pesa-se o material. Ele, no seu veículo Strada vermelho, onde coloca todo o couro que produz durante a semana, vende a clientes fixos. A sola, couro de boi, é, normalmente, vendida por quilo, já o couro de bode por “pé”. Um pé equivale a um quadrado com cerca de 25 cm².

Devido à alta produção em artigos de montaria/vaquejada, Cachoeirinha é conhecida como “a terra do couro e do aço”. Esse tipo de atividade surgiu na cidade, na primeira metade do século passado, com um artesão chamado Júlio Jacinto da Silva. A produção se expandiu, ainda quando a cidade era vila. Com o aumento da procura dos artigos em couro, o senhor Júlio, além de produzir os artefatos, passou a fornecer a matéria-prima (couro), e a emprestar dinheiro a outros artesãos na cidade, ajudando, assim, a expandir não só o trabalho, como o mercado consumidor.

Hoje, dos pouco mais de 20 mil habitantes do município, apenas 7% têm emprego formal. A maior parte deles vive do artesanato ou da produção de derivados do leite, principalmente queijos coalho e manteiga.

A matéria-prima utilizada para a confecção dos artigos em couro e aço é comercializada na própria cidade, por mais que não seja fabricada nela. A maioria vem da Bahia, de Minas Gerais, Paraíba e do sertão e agreste de Pernambuco. Como é o caso da mercadoria de Seu Tião, que, desde o início de seu trabalho, tem, no mapa, um destino só.

É nas quintas-feiras, dia da tradicional Feira do Couro e do Aço, em Cachoeirinha, que o couro de bode fabricado por Tião encontra as mãos de Ritinha e Antônio. Mãos, que também demarcam formas de estar no mundo. São elas que permitem o gesto de produzir e tirar o couro do seu estado de passividade. No trabalho de Rita Neves e Antônio Rodrigues, todo o corpo participa do gesto do fazer.

Rita tinha 10 anos, quando começou a trabalhar com o couro; 18 anos, quando fez a primeira sela. Hoje, são 50 anos de profissão e orgulho de ser mulher seleira. Ritinha aprendeu com sua mãe, Maria do Carmo Souza, seleira pioneira de Cachoeirinha. Por meio do couro, Rita comprou sua primeira casa, o primeiro carro e, assim como sua mãe, criou seus quatro filhos. Ela, que não teve a oportunidade de ser alfabetizada, é professora de muita gente na arte de fazer selas. Uma de suas filhas, Eliane, aprendeu o ofício, e atua ao lado da mãe, comercializando as peças que fazem ao longo da semana.

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