Mirante

"Pessoas como nós"

TEXTO Débora Nascimento

30 de Setembro de 2020

Stevie Nicks, cantora e compositora do Fleetwood Mac, em imagem dos anos 1970

Stevie Nicks, cantora e compositora do Fleetwood Mac, em imagem dos anos 1970

Foto Fin Costello/Reprodução

Uma das coisas que costumo fazer ao ouvir música no YouTube, além de pular os anúncios, principalmente aqueles nos moldes de "Oi. Meu nome é Bettina, eu tenho 22 anos e 1 milhão e 42 mil reais de patrimônio acumulado...", é dar uma olhada na seção de comentários (cada um com sua mania). Fora o comentário típico "Alguém ouvindo em (espaço para o ano vigente)?", dá para encontrar, algumas vezes, observações cômicas ou úteis sobre alguns artistas e músicas, ou até mesmo desabafos. Um desses foi o de um homem, cujo comentário, que li no último dia 29 de setembro, recebeu mais de 900 curtidas e mais de 100 comentários subsequentes. Esse usuário do YouTube tinha um nome bem diferente. Foi fácil encontrar o seu perfil no Facebook.

Não o adicionei. Apenas quis saber como era a pessoa. Na foto de perfil, ele parecia um tipo como John Bonham na fase mais detonada e largada da vida, aparentando uns 50 e muitos, com aspecto de quem não fazia um exercício físico há décadas, barba ao deus dará, cabelo nos ombros estilo anos 1970 e bochechas brilhantes de quem bebe um bocadinho. A timeline desse homem era repleta de teorias trumpistas, piadas cafuçus sem graça, posts contra os democratas e memes defendendo o porte de armas. Ou seja, era um típico exemplar dos Angry White Men, base do eleitorado de Donald Trump. Na seção da descrição no Facebook, ele escreveu: "Describe who I am? Would anyone even care to know?" Realmente, ninguém liga para um ogro eleitor de Trump, que deve ter adorado todas as vezes que o "clown" candidato à reeleição interrompeu Joe Biden para dizer bobagens, grosserias e mentiras no primeiro debate da eleição americana, ocorrido na última terça-feira.

Mas o que me fez entrar no perfil desse ser, digamos, repugnante? Bem, eu não sabia que ele era trumpista. Poucos segundos antes, esse homem tinha me feito derramar algumas lágrimas com o comentário que ele havia postado no YouTube, com data de um mês atrás. Ele escreveu em inglês, mas aqui segue a tradução: "Minha primeira namorada e minha noiva, o nome dela era Sara, era um clone ambulante de Stevie Nicks. Ela se parecia com ela. Ela era linda por dentro e por fora. Ela foi morta por um motorista bêbado dois meses antes de nos casarmos. Eu rastejei em uma garrafa de uísque por meses após sua morte, ouvindo essa música (Gyspy) junto com a música de FM Saraolhando para sua foto por horas, sem me importar se eu vivia ou morria. De alguma forma, consegui superar isso, desisti da garrafa e encontrei paz, finalmente percebendo que ela queria que eu vivesse, fosse feliz e encontrasse o amor novamente. Mas sua vida e morte ainda me assombram até hoje. Já se passaram mais de 30 anos desde que ela morreu. Nunca mais encontrei o amor verdadeiro. Mas eu vivo e, enquanto eu viver, sua memória e beleza viverão. Sara, eu sinto sua falta e ainda te amo e sempre amarei. RIP baby. Um dia estaremos juntos novamente e começaremos de novo".

Não sei se o leitor desta coluna se emocionou com o relato do homem tanto quanto eu, mesmo após saber que ele é trumpista e armamentista. Mas também não sei se eu teria me emocionado ao receber essas informações antes. Como fiz o caminho inverso (ler, primeiro, o desabafo dele e, depois, descobrir que o autor era um defensor das ideias de Trump), seus posts ultrajantes não me fizeram sentir raiva ou revolta, mas exatamente pena.

Esse episódio do ouvinte do YouTube me fez pensar que a nossa empatia talvez seja mais flutuante do que gostaríamos e constatar, mais uma vez, que figuras desprezíveis como Bolsonaro e Trump tendem a despertar o pior de certas pessoas, as desumanizam através daquilo que as tornaram mais humanas: casa, emprego, religião e família, aquilo que consideram mais sagrado em suas vidas. Em sua maioria, vidas muito simples. Não à toa um truque muito usado nas fake news e teorias conspirativas (como as do Q-Anon) é atribuir pedofilia aos adversários políticos. O que seria mais repulsivo do que isso? É o tipo de acusação que costuma evocar o Charles Bronson adormecido nas pessoas: "Atire primeiro, pergunte depois".

O usuário do YouTube é caminhoneiro há 27 anos. Fora suas três fotos de perfil disponíveis publicamente, uma outra imagem aparece: foi tirada de dentro do parabrisa do caminhão no acostamento, de onde se avista outros caminhões seguindo em uma pista molhada ao entardecer. Uma cena solitária em um não-lugar, frequentado por um homem que diz ter sido salvo da morte na estrada várias vezes pelo espírito de sua amada. Por instantes, pensei que a apologia às armas talvez fosse um desejo de vingança alimentado por causa do motorista bêbado que matou sua noiva, como nas histórias cinematográficas de vingança. "E tem sido uma batalha emocional e difícil todos os dias, desde então, não ficar amargo e com raiva de tudo e de todos", afirmou ele a outra pessoa. 

Respondendo aos comentários dos que ficaram chocados e tocados com seu desabafo, ele disse que estava vivendo um período muito difícil. E dá para notar, nos seus termos gentis, como ficou satisfeito e agradecido em ler os vários comentários de desconhecidos que se importaram com sua história, que vai ganhando o acréscimo de outras tragédias, como a morte de dois filhos gêmeos logo após o nascimento, 20 anos atrás. Talvez esses gestos de solidariedade contrariem temporariamente sua ideia, registrada por ele na descrição no Facebook, de que ninguém se importaria com ele.

Esse homem me parece ser um desses alvos muito fáceis das armadilhas dos discursos de ódio e fake news, denunciados, mais uma vez, pelo documentário O dilema das redes. É uma dessas pessoas que não acreditam numa transformação significativa em suas vidas ou no mundo, por votarem em algum candidato. Muitos deles o fazem na esperança de apenas garantir o pouco que têm, mesmo que isso signifique entender como inimigos os que forem estrangeiros ("que vão tomar nossos empregos") ou simplesmente diferentes. Foi assim que a decadente região do Rust Belt (Cinturão da Ferrugem) votou maciçamente em Donald Trump.

Muitos deles sentem que tiveram seus "direitos prejudicados", como expressou o sociólogo Michael Kimmel (autor do livro Angry White Men: American masculinity at the end of an Era). Há, nesses homens brancos, uma sensação de que foram roubados deles aqueles benefícios que acreditavam serem devidos. Uns se metem em grupos extremistas como os Proud Boys, citados por Trump no debate com Biden. Outros, como esse usuário do YouTube, ficam nas redes a espalhar fake news e tentar levar a vida como pode. Não estão preocupados com movimentos sociais igualitários, como cantou David Byrne em People like us (1986): "We don't want freedom / We don't want justice / We just want someone to love". 

No comentário do usuário do YouTube, ele escreveu "FM", em referência ao Fleetwood Mac, banda britânica que ele voltou a ouvir e cuja vocalista, Stevie Nicks, que tem semelhança com sua noiva, reacendeu fortemente os sentimentos do passado. "Não tinha pensado muito nisso até encontrar FM e as músicas Sara e Gypsy. Então, todas as memórias voltaram, como se um maremoto me atingisse. Eu fico me perguntando o que e como as coisas teriam acontecido se ela não tivesse sido tirada de mim. Eu nunca saberei. O tempo deve curar todas as feridas, mas nunca parece funcionar dessa maneira. A vida continua. (...) A música sempre me ajudou a superar esses tempos difíceis e é a única coisa que tenho agora para me apoiar".

Trinta anos depois, na vida desse desconhecido, o fantasma do amor permanece como Kathy, de O morro dos ventos uivantes, ou aqueles personagens do documentário As canções, de Eduardo Coutinho, presos a relações que acabaram em outras épocas, atados a um passado através de uma composição. A amada desse trumpista ressuscitou através de uma Stevie Nicks jovem, que tinha largado há pouco tempo Lindsey Buckingham, guitarrista do grupo e companheiro há anos, e tido um caso com o baterista da banda, Mick Fleetwood. Quando compôs Sara, Stevie tinha 30 anos. Hoje, se ela, aos 72 anos, apoiadora do Partido Democrata, fosse ler os comentários de seus fãs no canal oficial do Fleetwood Mac, iria descobrir que sua imagem jovem, acessada a qualquer momento no YouTube, promoveu o agridoce reencontro de um homem com sua felicidade e sua dor, embaladas pela música.

"There was a heartbeat and it never really died / Yes it never really died".



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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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