Mirante

"A paz que eu não quero"

TEXTO Débora Nascimento

06 de Fevereiro de 2019

Gigante hoje. Ele era o garotinho do clipe de 'Minha alma (A paz que eu não quero)'

Gigante hoje. Ele era o garotinho do clipe de 'Minha alma (A paz que eu não quero)'

Foto Reprodução

Nas férias escolares de janeiro, levei meu filho e meus sobrinhos que moram em São Paulo para um passeio no Parque das Esculturas de Francisco Brennand. Durante o trajeto, coloquei no som do carro algumas faixas de Chico Science & Nação Zumbi e fui contando para os meninos o que significavam o movimento Manguebeat e aquelas músicas. O cenário era propício. Ao passarmos na frente do RioMar, falei sobre o que representava a construção daquele shopping em meio ao mangue. E, em Brasília Teimosa, expliquei a origem do nome do bairro, a luta dos moradores para permanecerem em um lugar visado pelo mercado imobiliário, que queria construir prédios naquele local. Os garotos prestaram atenção, observaram a paisagem e a movimentação das pessoas na praia, num dia de céu azul. Perguntei se tinham gostado das músicas, responderam que sim. A semente pode ter sido plantada.

Fiquei emocionada por eles, que têm idade de 13, 12 e 10 anos, estarem ouvindo, no Recife, uma música que significou muito para a minha geração e para a cidade. Canções que eram como um espelho e um motivo de orgulho numa região subestimada e onde nossa autoestima como povo era (e ainda é) sempre testada: seja pela equivocada visão de inferioridade em relação ao Sudeste e ao Sul, seja pelos altíssimos índices de miséria, desemprego, analfabetismo, violência, pelo preconceito estigmatizador, pelo apartheid velado em diversos ambientes da sociedade. Sob a Torre de Brennand, olhamos o Recife Antigo, que vem passando por transformações desde meados da década de 1990, período que coincide com o entusiasmo provocado na capital pelo Manguebeat.

Através de suas composições, que exibiam o jeito de falar dos jovens das periferias, Chico Science, morto em 1997, aos 30 anos, contribuiu para potencializar na geração dos anos 1990 uma consciência política e social. Essa mesma característica marcava Marcelo Yuka, outro compositor relevante que despontou na música brasileira dos anos 1990 e que também partiu precocemente, aos 53 anos, em decorrência de um AVC, no dia 18 de janeiro deste ano.

Yuka foi um dos raros artistas nacionais que, para além do discurso de cunho social de suas letras, tentou mudar a realidade que retratava. Mesmo após ficar paraplégico como consequência dos nove tiros que levou numa tentativa de assalto no Rio de Janeiro, em 9 de novembro de 2000, continuou com seus projetos sociais destinados a jovens das periferias e detentos. Ia, de cadeira de rodas, a presídios, falar para dezenas de presos, em celas minúsculas. Muitos deles jovens negros e pardos. Tentava conscientizá-los da engrenagem que os levou até aquela situação.

Na primeira aparição que fez num show d’O Rappa, após a tentativa de homicídio, ele pediu à plateia, que gritava seu nome: “Por favor, lembrem-se de que eu não sou vitimado por uma arma de fogo por um bandido. Eu sou vitimado por uma sociedade que é injusta e que permite esse tipo de coisa acontecer”.

É bastante simbólico que a morte de Marcelo Yuka tenha acontecido três dias após a assinatura do decreto presidencial que facilitará a posse de armas de fogo no Brasil a partir de 2019. O artista certamente seria uma das vozes potentes contra essa deliberação. Durante todos esses anos em que enfrentou com bravura os efeitos da violência, que abrangeram dezenas de cirurgias, internações e dores crônicas, o músico tentou pressionar a Taurus para saber de qual material era feita a bala ainda alojada no seu corpo. Maior empresa de armas do país e alvo de diversos processos judiciais por acidentes fatais, a marca será uma das maiores beneficiárias dessa ordem, que provavelmente multiplicará o número de homicídios, feminicídios e suicídios.

Para se ter uma ideia do estrago que a posse de uma arma de fogo pode fazer, logo após constatar que ficaria paraplégico, Yuka, que dizia já ter problemas anteriores com sua autoestima, chegou a fazer um pedido constante a pessoas mais próximas: um revólver para poder se matar. Um ano antes, ele dizia num programa de TV: “Você não pode esperar que venha uma paz armada para garantir a sua integridade. O que me chama a atenção nesse momento é como a classe média, classe média alta e a classe alta começam a achar que podem escapar ou se proteger estando com uma arma”. A frase permanece atual.

Na noite de 9 de novembro de 2000, todo ensaguentado, com nove tiros em seu corpo, Marcelo Yuka quis rezar, mas não se lembrou de nenhuma oração repetida nas igrejas, apenas de uma criada por Jorge Ben: “Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge/ Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem/ Para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem/ Para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam/ E nem mesmo pensamento eles possam ter para me fazerem mal/ Armas de fogo meu corpo não alcançarão/ facas e espadas se quebrem sem o meu corpo tocar/ Cordas e correntes se arrebentem/ sem o meu corpo amarrar/ Pois eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge”. Que Jorge de Capadócia seja a oração do Brasil.

As armas de fogo alcançaram o corpo de Marcelo Yuka, mas sua alma armada resistiu por 18 anos. Durante esse tempo, ele pôde ver, fazer e descobrir mais coisas: confirmou os verdadeiros amigos, recebeu a punhalada dos integrantes do Rappa, que o expulsaram da banda no momento em que ele mais precisava dela (a justificativa é de que ele recebia, por lei, 50% dos direitos autorais das letras e de parte da divisão dos outros 50%, quando a música era composta por todos os cinco integrantes). Disso, ele nunca abriu mão e isso possibilitou a sua sobrevivência. Filiou-se ao PSol em 2010 e foi vice da chapa de Marcelo Freixo a prefeito do Rio de Janeiro em 2012, ficando em 2o lugar na eleição.

Continuou a compor. Lançou um disco com o projeto F.U.R.T.O., que tinha dois músicos pernambucanos (Garnizé e Jam da Silva), e um único solo em 2017, Canções para depois do ódio. Testemunhou as políticas sociais do governo de esquerda, que tentaram corrigir erros históricos do Brasil, e viu uma de suas frases se tornar bandeira em protestos pelo país: “Paz sem voz não é paz, é medo!”.

Dez dias depois da morte de Yuka, Gigante (o garoto que, no clipe de Minha alma - A paz que eu não quero, pede aos jovens moradores de sua favela para ir à praia e, no meio do caminho, assiste atônito à violência policial contra esses mesmos jovens), agora adulto, participou de uma homenagem ao artista, uma recriação do premiado videoclipe dessa música, um dos hinos de Marcelo Yuka no álbum Lado A, Lado B, terceiro e último grande disco do Rappa, lançado há 20 anos, num Brasil tão distante e tão próximo.



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