Matéria Corrida

Palavras difíceis

TEXTO José Cláudio

02 de Agosto de 2018

Imagem José Cláudio

Na minha prosa rasteira não dá para empregá-las, mas tenho uma devoção de analfabeto por palavras difíceis. Não importa a que vocabulário específico elas pertençam. Aprecio-as em si, tanto pela sonoridade abstrata, já que geralmente não conheço o significado, quanto pela capacidade de designar, com precisão, fenômenos que nem sequer imaginávamos que existissem, nem muito menos terem sido batizados. E mil outros motivos certamente. Como não falar javanês nem húngaro.

No meu Aurélio tamanho grande comecei a anotar uma ou outra dessas palavras que despertaram interesse, para não esquecê-las nos espaços em branco, e talvez escrevesse um dicionário de palavras difíceis, se Jesus me desse mais uns cinquenta anos de vida, eu que já tenho oitenta e bote força. Às vezes lembro até a pessoa que me ensinou, como “braquigrama”, que foi Lygia Peregrino, diabética como eu, que me telefona às vezes para dizer: “Tô comendo um açúcar empurrado”. “Braquigrama”, segundo ela, é esse sinal gráfico que também chamam de, “e comercial” (&), originado da fusão das duas letras do et latino. Quando se fazia curso para ser revisor, alguns sinais de revisão tinham até nome, como “deleatur”, uma espécie de letra “o” manuscrita com a perninha puxada para baixo, que indicava supressão de letra ou palavra. Alguns outros sinais também tinham nome, como “revertatur” para virar letra ou palavra, no tempo da composição manual, claro, ou “antífen”, para separar ou por um espaço (Dicionário de Artes Gráficas, Frederico Porta, Editora Globo). “Cártula”, muito comum em quadros barrocos, uma fita com alguma coisa escrita e as pontas dobradas, é mais conhecida como “faixa falante”. Folheando ao acaso esse dicionário de Porta, encontro, na biografia de Teofrasto Renaudot, nascido em 1586, considerado pai do moderno periodismo, perdendo tudo no fim da vida, que, no dizer de Gui Pantin, “morreu miserável como um pintor”: vocês pintores que se cuidem!

“Lipotrópico”, foi em Aldeia, uma placa: “Guaiamuns lipotrópicos”. Como gosto de guaiamum, fui ver do que se tratava. O dono da granja era Seu Melo, ex-expedicionário. Ele até já me conhecia. Devia ter lido a página de Ladjane no Diário da Noite. Quando lhe perguntei o que significava “lipotrópico”, respondeu: “Ora, Seu José Cláudio, o senhor sabe muito bem que ‘lipotrópico’ é ‘gordo’”. Seu Melo também vendia patos, criados em gaiolas de tela de arame suspensas a cerca de metro e meio do chão, que abatia na hora e depois de depená-los queimava os canhões (tocos de pena) com maçarico; tinha-os também defumados, defumação feita por ele próprio, num túnel de carcaças de geladeira emendadas de uns dez ou vinte metros, patos defumados esses que você podia saborear ali mesmo. Outra curiosidade é que os patos de seu Melo, pintos ou adultos, não emitiam som nenhum. Os patos aprendem a grasnar com outros. Os de Seu Melo eram isolados ao nascer.

“Platelmintos”. Isso devo ter aprendido com Paulo Vanzolini. Minto: é que quando o assunto é bicho me lembro logo dele, zoólogo do primeiro time, com quem viajei pelo Rio Madeira (ver José Cláudio da Silva, 100 Telas, 60 Dias & Um Diário de Viagem Amazonas, 1975, Imprensa Oficial, São Paulo). “Platelmintos” são animais sem ânus. O que é a natureza!

“Uropígio” é um caso em que o popular é unanimidade, embora por eufemismo também se diga “sobre”: “sobrecu”. O correspondente nos humanos é “cóccix”. Ou “mucumbu”. Às vezes é mais o sentido a prevalecer, a beleza da ideia, como em “sinestesia”: “Relação subjetiva que se estabelece espontaneamente entre uma percepção e outra que pertença ao domínio de um sentido diferente” (Aurélio). O dicionário dá um exemplo maravilhoso: “Avista-se o grito das araras” (João Guimarães Rosa, Ave Palavra). A próxima eu dedico ao escritor Fernando Dourado Filho, já se vê por que: “arctogéia”, “região ou terra dos ursos”. Ele já deve estar cheio de eu tanto falar nisso mas realizou um meu antigo sonho que jamais imaginei poderia concretizar: comer carne de urso, lembrança juvenil dos livros de Karl May. Trouxe da Finlândia, enlatada a vácuo pelo próprio caçador. Considero isso, como foi de fato, uma grande distinção. Éramos apenas três, ele que conhece meio mundo. Acho até que cometo uma indiscrição. Ano de 2018.

“Esteatopigia”: a rigor, acúmulo de gordura nas nádegas. No Brasil significa “belas nádegas”, daí Vênus Esteatopígia, a conhecida escultura. “Hipocorístico”: nome carinhoso que se dá a familiares, em vez de José, Zezé, como eu era chamado em casa. Aliás eu prefiro escrever Zézé, com dois acentos, porque no Rio de Janeiro se diz “zêzé”, em que não me reconheço. “Ecolalia” vi nas palavras cruzadas: mania de falar rimando. “Acetábulo”: cavidade em forma de taça. “Amaxofobia” é doença que nos atinge cada vez mais: medo de automóvel. E assim, milhares.

Nesse hipotético dicionário devia ter uma seção de palavras técnicas vindas do tupi como “gaponga”, “bola feita de osso de peixe-boi presa por uma linha à ponta de um caniço para se bater na água imitando a queda de um fruto e assim atrair o peixe”. Ver “gapuia” e “gapuiar”. Devíamos nos interessar mais pela língua tupi, imprescindível para conhecer o Brasil, com mil perdões pela obviedade. E palavras de origem africana já que nossa língua também vem da senzala. Mas extrapolo. Tupi nem hotentote dão prestígio. Latim, sim. É coisa que até esteve ao meu alcance na época em que fiz ginásio. Mas a gente estudava para passar. Bem que gostaria de umas tiradas em latim. E falei, sim, quando ajudava missa e a missa era em latim. Mas às vezes consulto as páginas rosa do Petit Larousse ou Não perca o seu latim de Paulo Rónai.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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