Matéria Corrida

Escultor Wilton de Souza, Recife, 1932-2020

TEXTO José Cláudio

06 de Maio de 2020

'Vendedor de cavaquinho'. Gesso, 53 x 26 cm, 1953, Wilton de Souza

'Vendedor de cavaquinho'. Gesso, 53 x 26 cm, 1953, Wilton de Souza

Imagem Reprodução

Parece ter ficado mais como capista dos discos da Rozenblit, já que vivemos na era do disco. Para mim, que o vi nascer, ou melhor, nascemos juntos, no Atelier Coletivo, sempre foi escultor. 1952. Wilton de Souza, Itinho. Irmão mais moço de Letinho, Wellington Virgolino, pintor, Recife, 1929-1988. Apesar de a gente se ter visto pouco nos últimos tempos, sem contar que passei uma temporada fora, quase dez anos, nunca perdemos a intimidade que o Atelier Coletivo nos deu. Era como se estivéssemos na Rua da Soledade ou na Rua Velha, mesma rua em que sua família morava. O Atelier ficou como uma nossa origem da qual nenhum de nós se afastou, não importa o lugar da residência neste ou naquele momento, Ionaldo em São Paulo, sempre ligado a jornal por causa de seu irmão Carlos Luiz, Ivan Carneiro no Rio trabalhando em publicidade, Marius Lauritzen não sei onde, que há tempo não dá notícias. Enquanto um de nós viver, todos estarão vivos.

Wilton falava pouco. Ficava no canto dele modelando seu barro, a ver se naquelas discussões que às vezes travávamos sairia alguma coisa. Não por indecisão. Ele e Samico foram os primeiros a se juntarem a Abelardo da Hora nessa jornada que resultou no Atelier Coletivo, mesmo antes de Wellington. Estava sempre pronto a assumir responsabilidades por árduas que fossem. Prestava contas solene e minuciosamente como se se tratasse de uma firma ou serviço público essencial. Nós todos éramos homens sérios. Tanto que todos seguiram, cada um a seu modo, o ofício da arte, sendo esse o lugar sagrado de nossas vidas. Dentro de todos sempre subsistiu aquele respeito à arte incutido por Abelardo da Hora que, diga-se, nunca chegou a pregação política explícita.

Também nunca ouvi sair da boca de Wilton uma palavra de engajamento em nenhuma tendência como se em todas as situações já tivesse opinião formada, como se soubesse do que lhe tocava na edificação do mundo, como trazido do berço.

Aconselhado a ficar em casa por causa do novo coronavírus, idoso e diabético, grupo de risco, bem que gostaria de sair procurando seus trabalhos, já que na divulgação deles era sempre muito parcimonioso. Taí uma bela tarefa para os candidatos à crítica de arte entre nós, montar uma retrospectiva minuciosa da obra do artista que morreu aos oitenta e oito anos. Em muitas de nossas vidas ele esteve presente, do mesmo jeito de sempre, confiável, produtivo e silencioso.

Fisicamente não mudou nada. Só que, em matéria de fala, o volume foi baixando cada vez mais tanto em quantidade quanto em altura. Numa conferência que fizemos de parceria, nem eu, sentado ao seu lado, ouvia o que ele dizia. Nem o microfone ajudava. Me lembro que Gil Vicente compareceu. Lula Cardoso Ayres Filho; Eduardo Correa de Araújo.

Acho oportuno encerrar com um trecho do depoimento do próprio Wilton, que além de nos dar aspectos da sua vida e do seu pensamento revela a mentalidade da época (José Cláudio, Memória do Atelier Coletivo, 1952-1957) publicado pela inauguração da galeria Artespaço, Recife, 1982.

“COMO SE COLOCAVA FRENTE À POSSIBILIDADE DE SEU TRABALHO COMO ARTISTA VIR A SE TORNAR MEIO DE VIDA?

Nunca pensei em meus trabalhos se transformarem em fonte de negócio. O teatrólogo Paschoal Carlos Magno ao nos conhecer, procurou ver meus trabalhos, no Atelier Coletivo, onde desejou adquirir uma tela, de minha autoria. Indagando o preço, Paschoal teve uma surpresa, ante minha reação. Fui tomado de surpresa. Era a primeira pessoa que procurava comprar um quadro meu. Paschoal vendo o amor que tinha pela minha Arte, insistiu.

Realizando assim, minha primeira venda. Daí então passei a vender normalmente. Seria um paradoxo dizer que Paschoal me iniciou na prostituição. Por sinal muito sofrida. Com os conhecimentos artísticos desenvolvidos me iniciei como ambientador (decorador) e passei a dirigir a Loja do Bom Gosto, dos Irmãos Rozenblit, onde igualmente criei a primeira Galeria de Arte, do Recife, aproveitando a sugestão do pintor Montez Magno que a inaugurou. Logo em seguida surgia a Galeria de Arte do Recife, como fruto das solicitações dos componentes, do Atelier Coletivo, que tendo Abelardo da Hora na Prefeitura, conseguiram construí-la, às margens do Capibaribe.

Na Galeria Rozenblit proporcionei tanto para mim como para os colegas artistas um local onde poderíamos expor nossas obras. Nesta galeria, como na Bela Aurora e Três Moedas comecei a desenvolver um bom mercado de Arte apresentando trabalhos de Montez Magno, Maria Carmem, José Tavares, João Câmara, Roberto Amorim, Brennand, Adão Pinheiro, Paul Garfunkel (francês radicado em Curitiba), Wellington Virgolino, Abelardo da Hora, Elezier Xavier, José Cláudio com o seu polimaterialismo, Guita Charifker, Inalda Xavier, Manoel Arruda, Corbiniano Lins, Genilson e Cremilson Soares, Vicente do Rego Monteiro, João Batista, Inaldo Medeiros, Irineuza, Tiago Amorim e muitos outros.

Dentro deste trabalho de um semi-profissionalismo, mais amadorístico que profissional propriamente dito, comecei a criar um incentivo de venda, aos amantes das Artes. Continuo como decorador, onde negocio Arte tanto de minha autoria, como dos amigos, colocando-a no seu lugar certo, na ambientação de um lar.

Hoje estou completamente integrado a minha Arte, onde as atividades de desenhista, de tapeceiro, de cronista de Arte, de pintor e decorador, são minha forma de vida.

Não parei e as raízes concebidas do Atelier Coletivo são integralmente respeitadas, onde procuro realizar uma arte com o cheiro da terra, onde suas cores e costumes permitem realizar uma forma de expressão pernambucana, para o Brasil e para o mundo. Realizo uma coisa minha. Se estou errado, o problema não é meu. Faço aquilo de que gosto, essa é a razão de minha vida, de minha Arte."

Ele sempre me deu impressão de satisfeito com a vida, sem necessidade de arroubos, como se tudo lhe chegasse na hora certa, quem sabe mais e melhor do que poderia imaginar. Não sou de ir a enterro. Não fui nem ao de minha mãe. Mas você merecia que eu fosse e batesse palmas.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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