Geralmente

O calendário voou

TEXTO Karina Buhr

11 de Fevereiro de 2021

Ilustração Karina Buhr

O calendário estava na frente da janela, em cima do tambor, porque o prego eu ainda não bati na parede em 2021 e o tambor virou mesinha, deu um vento forte e passou as folhas tudo, caiu no chão no mês de outubro.

Fevereiro ficou entupido dentro de algum paralelepípedo do Largo do Guadalupe. Se enganchou lá em Quixeramobim, na última vez que cantamos “adeus amigo, adeus nosso amor, até para o ano, se nós vivo for!”. Se escondeu debaixo de um isopor remendado, água a três real, mais cara, pois motivo nobre e olha o pesado! Tá quietinho o menino fevereiro, na calçada quentinha de mijo, embaixo de alguma fantasia de bêbado descansando até passar o Ceroula. Tá lá esnobado, em 2020, embaixo dos pés das duas amigas exaustas, porém guerreiras em qualquer circunstância, que pularam de manhã, teve até insolação, uma passando mal e a outra benzendo, ensinando respiração, a dupla louvando as águas da Oxum enquanto a de pé molhava a testa da criatura caída, que se recuperou bastou um almoço e um banho, tocaram e assistiram show de duas da madrugada, assim perderam o Homem da Meia Noite, mas emendaram pro último Cariri antes de 2022, ou talvez 2023 pra gente que tem o carma de pandemia com presidente que gosta de morte ao mesmo tempo.

Não faz sentido nada que pensar. É uma saudade que tem dia certo pra resolver todo ano, mas vai ficar pairando sei lá onde, não é um troço que dê pra guardar em qualquer canto sem ninguém ver. E ninguém está vendo realmente, você está? Onde guardaram as tubas assim tão discretamente? Os bonecos dormem onde por tanto tempo, se eles estavam esperando levantar, bem direitinho, tudo programado nos seus relógios biológicos? As calungas esperando o baque virar? O que se faz com essa vontade guardada, engole? Tomara que não vire doença, chega de doença!

Os porta-estandartes, como levantam pra esses dias de agora?
Seu Didi, em Olinda, o mais antigo em atividade, está na foto bonita da TCM A Porca, sozinho, de máscara, ele e o belo pavilhão.

As bruxas Gorete e Regina vão flutuar sem frevo? No chão elas são bonecas ainda pra serem paridas, precisam do carnaval pra levantar voo. Quem vai afinar bojo de macaíba na corda? Até a tontura de cola no pavilhão, depois de horas fazendo adereço, não vai precisar de comprimido pra ela passar? As kombis, ônibus e caminhões lotados de colorido e de gente agremiada? Deve ter algum trânsito paralelo, não é possível, não existe outro país do tamanho desse colado nele, mais na sombra, onde se guarde tanto escondido. Não há armário possível. Maracatu, caboclinho, escola de samba, orquestra, urso, la ursa, afoxé, guarda-se onde?

Caneta um pouco piegas, concordo, não encontro muita solução, a tristeza às vezes dá até brecha, mas nesse momento não está nem aí mesmo. A gente perdeu e vai perder muito mais ainda. Faz um ano do começo do fim do mundo. Perdi John Travolta ano passado, motivo de trabalho. 10 de Xarque e uma Latinha, o tempo está doido e fui agora pra 1997, com as Comadre Florzinha, Fulozinha, ou até Florinza, como dizia um cartaz de um show nosso em algum rincão do Canadá dos anos 2000. A gente nasceu bem ali, no Bar do Déo, botando mais uma continha no pendura pro fim da semana. “A folia começa no Amparo, Amaro Branco, Quatro Cantos e na Sé...”.

A saudade, essa palavra esvaziada e que tem canto onde ela nem existe, me jogou lá pra um dos meus começos, dormindo em turnos, com o Estrela Brilhante do Recife, no asfalto das ruas por trás do Forte das Cinco Pontas, Pátio do Terço, chegando umas dez da noite, pra desfilar umas seis da manhã, trovão de tambor pra levantar os esqueletos. Nada disso voltou pra casa, vai ter carnaval sim, não é possível, a gente é que vai levar falta!

Já toquei um carnaval inteiro sem sapato num afoxé, me pergunte não como não entrou caco no pé. Agora acabei de voltar pra dentro do meu vestido de baiana do Piaba de Ouro de Salustiano, Cidade Tabajara, bordando gola em equipe na véspera, café da manhã umas cinco, sol nascendo, cuscuz com carne guisada e café doce, toca pra sambada até o almoço e depois beirando a noite, mas lá pelas dez da manhã já bater nos portões pra ganhar fanta e água e o bucho roncando, mas feliz que não se cabia nele, segurando a piabinha. Umas rodelas de batom espalhadas na cara pra fazer blush, com purpurina em cima, invejando o terno e tocando também com ele, sempre dava pra tocar, os dias eram compridos. A Águia Misteriosa, de Nazaré da Mata, que no carnaval ela sai, eles devem ter preparado um ninho, algum lugar confortável pra ela esperar, certeza.

Vai começar a sair isso tudo aí e muito mais coisa, até boi, a Macuca não dá descanso, pelas retinas, no sábado, projetando na rua, fazendo um filme fantasma em preto e branco misturando as imagens até quinta feira, o dia em que realmente o cinzento se impõe. A Quarta de Cinzas vai finalmente parar, como tantos acham que ela parava naturalmente, mas antes do apocalipse ela era religiosamente dia de subir correndo as ladeiras de manhã, um pouquinho atrasada, perguntando em cada esquina “Bacalhau passou?” e ficar rindo bestinha, chegou foi uma hora antes da saída, foi-se o tempo que era cedinho. A mesma quarta do Boi da Gurita Seca – dele também bordei, em equipe, a gola, lá no começo dos mil novecentos e noventa – virado na Bicharada, o Case ali do lado, abraços, frutas e cachaça lá em dona Dá. E também troféu.
Isso tudo esse ano vai começar sem a gente ver, vai acabar sem nosso conhecimento e nunca haverá ressaca maior.

Publicidade

veja também

CABEÇA DE MIAEIRO

Laroyê Evoé

Clarim de ambulância