Entrevista

“Fiz o contrário do que se esperava” [Parte 2]

O cineasta Kleber Mendonça Filho narra a ascensão de sua trajetória, que contribui para o cinema vencer preconceitos estéticos, fortalecer e descentralizar a produção audiovisual no Brasil

TEXTO DÉBORA NASCIMENTO E LUCIANA VERAS

02 de Setembro de 2019

Foto BRENO LAPROVITERA

[conteúdo na íntegra | PARTE 2 | ed. 225 | setembro de 2019]

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CONTINENTE
Essa ida para Cannes foi a primeira vez em que um jornalista pernambucano foi fazer essa cobertura?
KMF Foi a primeira vez que um jornalista foi especificamente enviado por um jornal para fazer uma cobertura em Cannes. Em 1995, Alexandre Figueirôa estava morando em Paris, fazendo o doutorado dele, e ele viajou para Cannes e mandou algumas matérias para cá.

CONTINENTE Mas você foi o primeiro jornalista diretamente enviado do Recife, não é?
KMF O que é incrível, porque a imprensa tinha um ranço muito provinciano e achava que bastava pegar e publicar matéria de agência. Inclusive, eu ouvi isso dentro do jornal. Mas aí é que entra uma mulher foda chamada Carole Scipion, diretora da Aliança Francesa na época. Ela me conhecia e disse: “Vamos pra Cannes?” Ela chegou ao jornal, teve uma reunião lá e disse: “Vamos pra Cannes”.

CONTINENTE Foi importante sua ida a Cannes, porque virou uma tradição.
KMF Essa ideia é quase uma filosofia de vida: faça um negócio tão foda, que vai ser impossível depois alguém não querer de novo. E teve um impacto. O próprio jornal fez uma medição com os leitores. Foi superbem-recebido. Houve um avanço nas relações com a cultura, com o relato da cultura.

CONTINENTE Era importante descentralizar a produção, mas também o olhar crítico.
KMF Esses últimos 20 anos trouxeram tanta coisa boa para o audiovisual de Pernambuco, por tantos personagens diferentes, que acho que hoje há algo como se as pessoas estivessem mimadas, sabe? Como se fosse normal estrear um filme em Sundance, em Berlim, em Cannes. Eu lembro que, quando o Baile perfumado ganhou o Festival de Brasília, foi uma Copa do Mundo. Eu ganhei o Rio Cine com Enjaulado, um vídeo, Melhor Vídeo de Ficção. E saiu no NE TV. Hoje, alguém pergunta: “Visse que vai ter um filme em Cannes?” – É, faz parte… Não faz parte. Não é normal isso. Lembro quando Cinema, aspirinas e urubus e Vinil verde foram para Cannes. Era uma coisa incrível. Um curta e um longa. Nunca jamais um filme de Pernambuco esteve em Cannes e ali a gente tinha dois.

CONTINENTE Você foi pra Cannes esses anos todos como jornalista, levou Vinil verde, depois seus dois longas estrearam em Cannes.
KMF Eu acho incrível. Não paro de achar incrível. Ano passado, na filmagem, os atores diziam: “Eu vou lá comprar minha passagem pra Cannes”. E eu dizia: “Vocês são loucos? Como assim? Primeiro, tem que terminar o filme, montar o filme, mandar pra alguém, pra, talvez, quem sabe, gostar do filme”. – “Não, mas vai estar lá.”

CONTINENTE Mas antes, como realizador, você fez Enjaulado, em 1997, e depois A menina do algodão, em 2003.
KMF Na verdade, entre 1998 e 2002, eu dei 100% da minha energia para o Cinema da Fundação e para a crítica. Deixei de lado a produção, porque cansei. Porque, nos anos 1990, eu não aprovava nenhum edital. Nunca ganhava. Eletrodoméstica era de 1994 e eu só filmei em 2004. Virou um filme de época. O que eu achava estranho é que parecia uma piada. Quando tinha três prêmios, eu era o quarto. Quando tinha um prêmio, eu era o segundo. Quando tinha três prêmios, eu era o terceiro. Era uma coisa um pouco estranha.

CONTINENTE Mas a que você atribui isso?
KMF Eu não sei, porque era um edital muito provinciano, era local, em que basicamente as mesmas pessoas participavam. Elas já conheciam o roteiro. Mas acho que existia uma questão de hierarquia. Eu era tipo a ala mais jovem. E tinha a ala mais velha.

CONTINENTE Ou será que existia um preconceito porque você era crítico?
KMF Talvez.

CONTINENTE Você está falando do Concurso Firmo Neto/Ary Severo, que era o edital que existia?
KMF Era. Aí comecei a ir para os federais também. Petrobras, e também não ganhava. Até que, em 2003, ganhei o do Minc. Filmei em 2004. Nos anos 1990, eu fiz só vídeo. E vídeo era tratado como o que eu chamava de racismo de formato. Era subcidadão. O diálogo era meio assim: – Cê é cineasta? – Sou. – E seu filme é qual? – É Enjaulado. – Massa. É 35mm? – Não, é betacam. – Ah, é vídeo… Não é filme. É vídeo, pô.

CONTINENTE E tinha a palavra videasta.
KMF Videasta. E, aí, você chegava ao festival e entrava na van com os curtas-metragistas de 35mm. – A gente vai te deixar primeiro na pousada. – Ah, a gente não tá junto não? – Não, não, o pessoal do 35mm tá no hotel. E você está na pousada. – Ah, ok. E a que horas passa o meu vídeo? – Vai passar de três e meia da tarde na sala de aula da universidade. Mas tem que sair antes, porque é meia-hora pra chegar lá. – E os curtas? Não, os curtas vão ser exibidos à noite. O Cine Ceará era uma exceção. Era exibido no São Luiz à noite. Só que o projetor era um quadro dentro da tela grande. Mas todos os outros eram numa sala isolada. Aí eu fui me cansando disso, porque eu até fazia filmes bons, mas ninguém via. Para um vídeo, Enjaulado foi um fenômeno. Mas, quando assumi a Fundação, comecei a ter prazeres muito maiores com programação e com escrita. E aconteceu uma coisa incrível: a revolução digital. Quando a revolução digital chegou em 1999, na verdade chegou com Os idiotas e Festa de família em Cannes, em 1998. Quando eu li no Jornal do Brasil, pensei: “Ah, é um vídeo isso aqui, mas é tratado como filme. Isso é de que eu preciso”. Levou dois anos pra essa revolução chegar na realidade do Recife. Em 2001, recomecei a minha produção, em digital – que agora já era mais nobre, era cinema digital. Aí, A menina do algodão virou cinema digital. E, então, há uma geração de energia: quanto mais você faz, mais você faz. Quanto mais você não faz, mais você não vai fazer nada. Aí veio A menina do algodão, veio Vinil verde. E, magicamente, o Eletrodoméstica é aprovado no Minc.


Foto: Breno Laprovitera

CONTINENTE Para a realização do primeiro longa, como foi esse processo de deixar a crítica? Porque você era, talvez, o crítico mais badalado da cidade, imitado, as pessoas estavam na faculdade e queriam escrever como você.
KMF Na verdade, eu estava me sentindo… sabe burn out? Entrando num processo de estafa, não era estafa física, mas me perguntava: “Qual é o sentido de continuar emitindo opiniões sobre qualquer coisa?”. Porque, às vezes, eram seis filmes por semana. Era tipo: “Kleber, são 30 linhas sobre esses óculos aqui”. – Cara, esses óculos… Não sei o que dizer sobre esses óculos. E isso foi me cansando. E aconteceu uma coisa incrível. Eu escrevi o roteiro de O som ao redor em oito dias, num hotel em BH, pra mandar para um deadline e mandei. Aí, ele ficou entre os 20 finalistas e não passou. Mandei o roteiro pronto.

CONTINENTE Como é para você trabalhar com a mesma equipe, que vem desde O som ao redor, passa por Aquarius e chega a Bacurau?
KMF Existem questões muito delicadas na criação artística que envolvem cultura e isso é muito importante para mim, na verdade, para toda essa equipe de colaboradores. É muito delicado falar isso, mas, aqui em Pernambuco, não é que a gente esteja em uma redoma, pois cada região tem um jeito de fazer, de pensar e de agir. O jeito aqui é muito profissional, mas não da maneira de uma cartilha de ser profissional. Tem muitos membros de equipe do Rio e de São Paulo que parecem seguir uma cartilha do mercado de “como ser profissional”. A gente não segue essa; a gente tem outra cartilha. Para eles, que vêm de fora e veem a gente trabalhando, ficam encantados. Claro, tem os que não ficam encantados e tentam lutar contra isso, e isso gera conflito. Isso aconteceu em O som ao redor, em Aquarius e, de uma maneira maior ainda, até hoje, em Bacurau. E de uma maneira muito intensa, porque a gente estava no Sertão e lidando com pessoas que jamais haviam participado de um filme. Elas foram tratadas com muito respeito e carinho e isso é importante dizer, pois a máquina de fazer um filme às vezes tritura pessoas. Tem gente que acha isso normal, mas não, não acho que faz parte. Não é preciso triturar e machucar as pessoas. Prefiro evitar isso. Não acho uma boa e muita gente da equipe também concorda. Fazer um filme é muito tenso. Não gosto de gente que artificialmente acrescenta tensões em cima das tensões que já existem.

CONTINENTE Vamos aproveitar o que você disse para uma pergunta relacionada a uma fala de Federico Fellini, no livro Fazer um filme. Ele diz que faz um filme “como se estivesse fugindo, como se houvesse uma doença que precisasse superar, cheio de sofrimento e rancor com relação ao filme, como se fosse uma desgraça da qual eu devesse me libertar”. Como é para você fazer um filme?
KMF Até agora, não vejo esse sofrimento de que ele fala. Mas, pelo que já li da história do cinema, é algo totalmente viável e possível de acontecer. Consigo entender como isso pode acontecer, mas, tirando as tensões e preocupações inerentes ao processo de fazer um filme, eu não tive ainda esse sofrimento.

CONTINENTE Alguma ansiedade?
KMF Ah, ansiedade sempre. A principal ansiedade é se vale a pena esse trabalho todo. É um esforço físico fazer um filme, uma prova de saúde: você passa oito semanas e cinco dias no Sertão, e todo dia está bem, pulando, com muita saúde. Acho isso incrível, de verdade. E ainda não tive nenhum momento miserável fazendo um filme, mas tenho certeza de que pode acontecer. O que acontece, e muito, são preocupações. Em Bacurau, por exemplo, a gente perdeu três dias por causa de tempo ruim. Imagina você estar de braços cruzados, vendo uma tempestade e o dinheiro indo embora… Cada dia parado era, sei lá, R$ 90 mil. No dia seguinte, outra tempestade: mais R$ 95 mil. Isso dá uma agonia, mas a gente é ninja e conseguiu não perder nenhuma cena. Teve alguns momentos em que fizemos algo que deu certo. Por exemplo, Juliano foi para um lado e eu fui para outro. Tudo é difícil, na verdade. Tudo era difícil, mas, ao mesmo tempo, tudo deu certo. Um filme sempre tem muitas peças. É feito um Lego. Imagina que você compra um Lego gigante e “Caralho, vou ter que montar isso agora, não vai dar certo”, e você leva muito, muito tempo para montar.


Kleber e Sonia Braga nas filmagens de Aquarius (2016).
Foto: Victor Jucá/Divulgação

CONTINENTE Os finais dos seus filmes trazem a sensação de um soco: o confronto entre os personagens de Irandhir Santos e W.J. Solha, no final de O som ao redor; Clara indo na construtora em Aquarius e o desfecho de Bacurau. Como é essa construção dentro do próprio filme? Você pode falar do processo de como você pensa a narrativa e estrutura tudo para chegar a esses finais?
KMF Acho que deve ter um senso de showmanship, de você querer dar um certo prazer de espetáculo à narrativa. Isso está na literatura, na música… Você não pode ouvir Bohemian rhapsody e achar que tudo aquilo acontece porque ele estava simplesmente sem fazer nada numa terça-feira. Aquilo é espetáculo, feito para… Fico arrepiado só de falar. Não é normal. Claro, tem umas folk songs que o cara fez quando estava deitado e é maravilhoso. Bob Dylan tem muita coisa assim e ele é um talento especial. Acho que a narrativa tem que ter um final, mas também um bom início. Fico um pouco pasmo que alguns filmes começam no nada e terminam no nada. Às vezes, o filme não é tão ruim, mas podia ter alguma dinâmica. Dinâmica é muito importante na narrativa. Agora que estou nesse momento da minha vida em que conto histórias para crianças de cinco anos, vejo que as grandes histórias, todas elas, têm uma dinâmica. Elas começam, geram uma curiosidade, você vê as crianças fazendo assim (abre os olhos) e aí começa a explicar e elas vêm e fazem assim (mexe com os ombros, inclinando-se um pouco para frente) e tem outro ponto e elas já reagem diferente. Isso pra mim é clássico, vem desde os gregos, não há nada de novo. Mas, sim, acho que os finais são muito importantes. E, para chegar aos grandes finais, você tem que os ter construído. Tem gente que fala que, em Aquarius e em Bacurau, leva uns 30 minutos para… “Mas quando chegam os 30 minutos, a coisa fica boa”, me dizem. Eu acho que os 30 minutos são bons também. Você está ali, apresentando as pessoas. Tem que apresentar o lugar.

CONTINENTE Uma pergunta com relação a roteiro: você é muito rigoroso ou o roteiro pode ser modificado durante a filmagem?
KMF Sou rigoroso para ele ficar muito bom e você ler e ficar muito entusiasmado. Ele pode ser modificado, e muitas vezes é. Por exemplo, a cena em que Tony Jr., prefeito no enredo de Bacurau, visita a comunidade, foi reescrita na segunda semana de filmagens, Porque, do jeito que estava no roteiro, ia levar quase uma semana de filmagem. E a gente não tinha esse tempo. E aí eu disse: “Só vou reescrever se ela for ficar menor e melhor”. Acho que ficou melhor.

CONTINENTE Mas tem algo que você e Juliano falaram anteriormente sobre Bacurau: que o mote surgiu quando vocês estavam em um festival de cinema e ficaram incomodados com o modo com que as pessoas que estariam nesse festival se relacionavam com os personagens de um documentário em exibição.
KMF Alguns filmes, documentário e ficção, mostram pessoas no Nordeste sendo tratadas como pessoas simples. Sou muito sensível a isso, e Juliano também, porque nós somos do Nordeste. Vocês já devem ter passado por momentos assim no Sul e no Sudeste… Preconceito é a palavra correta.

CONTINENTE Como se fosse uma caricaturização dos nordestinos.
KMF Isso. Uma vez eu fui ao Copacabana Palace para uma junket da Dreamworks (evento de lançamento para filmes de grande porte, em que geralmente se convidam jornalistas do país inteiro para ver a obra e depois entrevistar a equipe). Chego lá no final do corredor e tem duas assessoras de imprensa de São Paulo cuidando da junket. Dou meu nome: “Kleber Mendonça, do Jornal do Commercio”. Aí ela diz: “Ah, Kleber, bem-vindo. Você vai precisar de tradutor, né?” (imitando sotaque paulista). Eu: “Não, não, eu falo inglês”. “Pô, bacana, pessoal do Recife falando inglês!” (novamente em sotaque paulista). Essas coisas você vai acumulando ao longo de muitos anos, e, sabe como é? É normal, é brincadeira, mas é estranho, muito estranho. Acho que mostra muito como funciona a lógica do país. Isso está em Bacurau, numa cena que é forte, quando alguém diz: “A gente é feito vocês”. A resposta: “Mas eles são brancos e vocês não são brancos”.


Funeral de Carmelita (personagem de Lia de Itamaracá) no filme Bacurau (2019). Foto: Victor Jucá/Divulgação

CONTINENTE Nesse último tiroteio em massa nos Estados Unidos, em El Paso, no Texas, uma parte da imprensa se apressou em dizer que o assassino tinha uma doença mental, mas depois se descobriu que ele tinha viajado nove horas apenas para chegar mais perto da fronteira com o México e assim poder matar mais “pessoas de cor marrom”. E ele era branco. Se fosse negro, ou árabe, poderia ter morrido e já seria um terrorista.
KMF Eu devo me isolar para escrever um roteiro novo e acho que, dessa vez, vou me fechar das redes. Mas, para Bacurau, a gente achava até importante estar conectado o tempo todo. Às vezes, era um problema, com a perda de tempo e procrastinação, mas estar aberto à permeabilidade nos dava acesso a informações constantes do mundo. Muito do que entrou no filme vem dessa relação muito forte de violência enraizada na sociedade americana, que, de nenhuma maneira, deve ser vista como um resumo dessa sociedade. Os Estados Unidos são uma sociedade extremamente complexa, e todos nós nos alimentamos dos Estados Unidos: eles têm uma cultura riquíssima na música, na literatura, mas é inegável que tem uma história de violência, até com a comercialização dessa violência, e isso veio muito no roteiro. Uma história como essa de El Paso é fascinante. Não só isso: quando o cara é branco, não é terrorismo, é doença mental, ou um massacre puro e simples. Na Boate Pulse, na Flórida, quando um árabe que não lidava bem com sua sexualidade fez aquele massacre, era terrorismo. Isso tudo entrou no roteiro, com propriedade. Eu não sou americano, mas sei o que está acontecendo. Juliano não é americano, mas também sabe, e as narrativas são muito impressionantes, porque têm uma carga cultural, política, de raça e religião. E produtos desenhados para matar gente.

CONTINENTE Isso tudo está em Bacurau: aquelas pessoas acham que têm o direito de estar ali para caçar outras pessoas. Essa é uma discussão que a gente pode trazer para o cotidiano do Brasil, tendo em vista que a Polícia Militar entra numa favela do Rio de Janeiro e um bebê de um mês morre vitimado por uma bala perdida. É como se fosse um efeito colateral.
KMF Uma pessoa branca de classe média morta num assalto é capa. Seis meninos negros mortos numa comunidade, num sábado à noite, é contracapa. E embaixo. Esses pesos diferentes para violência são a base da escrita de Bacurau. Uma comunidade inteira dizimada… Por que não? Mas a comunidade matar todos eles e cortar suas cabeças, “Ah, que absurdo, selvagens!”.

CONTINENTE Vocês viajaram muito para escolher a locação de Bacurau?
KMF A gente viajou muito e a gente precisava de uma comunidade isolada, de uma rua. Sobre essa ideia do Sertão: meu terror era escrever uma coisa de turista e na verdade chegar lá e ver que não é assim. Mas, quando a gente visitou o Sertão, não só agregou coisas novas, como confirmou muitas outras, como o senso de comunidade, a inteligência, como as pessoas eram antenadas, a visão política que elas têm. E trabalhar com 100 figurantes da região nos ensinou muito. Eles não só nos ensinaram, como até em cenas de que estavam participando sem receber exatamente um briefing completo; só de olhar para a cena, aquelas pessoas sabiam exatamente o que estava acontecendo, pois aquilo ali fazia parte da vida delas. Meu maior medo era inventar uma coisa de “menino de cidade”, mas isso não aconteceu. Aconteceu uma coisa: não chovia há oito anos e, quando a gente começou a pré-produção, começou a chover como não chovia há muitos anos. E aí, bum!, tudo verde, uma explosão hollywoodiana de natureza. Que massa, então, vai ser esse o Sertão.

CONTINENTE Quando esse roteiro foi fechado? Porque tem muita coisa atual.
KMF A gente fechou na segunda semana de março do ano passado. Mas alguns detalhes entraram na mixagem e na montagem. Por exemplo, na montagem entrou a leitura de nomes no final do confronto, em um aceno a Marielle Franco (vereadora carioca negra assassinada em março de 2018, no Rio de Janeiro). Quando Sônia veio filmar, Marielle tinha morrido três semanas antes. Tinha estado com Marielle e estava muito impactada pela sua morte. A morte de Marielle é a execução de uma mulher negra, que tinha um posicionamento social e político forte e que foi assassinada de maneira profissional. É impossível essas coisas não estarem no filme. Acho inacreditável você fazer um filme no qual o Brasil não está. Aí você vai falar com o diretor e com a diretora, e eles: “Mas você não viu que tem um chapéu vermelho ali no fundo, atrás”. – Não, não vi. “Ah, mas aquilo representa o Brasil”. Não, não, a gente precisa de algo mais forte nesse tempo de subtração de direitos.

CONTINENTE Falando nisso, qual a forma de driblar o desmonte no cinema?
KMF Se você pensar em termos do que é normal no mundo, que é o governo apoiar a cultura, acho que é um desafio muito grande. Porque, se eles querem cortar, vão cortar. Mas eu diria que é um momento muito importante para jovens partirem para fazer filmes muito provocadores, bem fortes, com o mínimo de equipamento. Estamos em um momento fantástico para isso. Com uma câmera dessa (aponta para a câmera do fotógrafo Breno Laprovitera), você faz um filme de muita qualidade, aí leva pra casa e edita no seu colo. Literalmente nas coxas (risos). E faz um filme foda. Gostaria de ver uma reação nesse nível, de cineastas homens e mulheres jovens fazendo filmes muito simples e muito fortes. Porque hoje o Brasil tem todo tipo de filme. Eu fiz A menina do algodão com R$ 78 e fiz Bacurau com 8 milhões de reais. Bacurau é um tipo de filme e A menina do algodão é outro. Vinil verde é um tipo de filme e As boas maneiras é outro, e os dois são de gênero, são brasileiros. Então, acho que é um momento bom para reagir. Agora, em relação ao cinema feito com estrutura comum, normal, me parece que há uma real ameaça nesse sentido. Hoje, o cinema brasileiro é muito diverso: em orientação sexual, em temas, regionalmente. Você tem todos os diretores fazendo filmes em Pernambuco, o Ceará fazendo filme, os meninos de Contagem, em Minas Gerais, gente de Curitiba… Tá diverso de uma maneira que nunca foi. E é exatamente agora que esse cinema começa a ser desmontado. Porque um filme pernambucano, filmado com lentes Panavision, de aventura, mas que é meio estranho, vai para Cannes e ganha prêmio lá é uma prova dessa diversidade.

CONTINENTE A sua carreira está ameaçada nesse sentido? Porque existe essa perseguição, essa cobrança para devolver mais de R$ 2 milhões relativos a O som ao redor.
KMF A minha, eu espero que não. Isso faz parte de um momento triste que a gente está vivendo agora e é algo completamente sem precedente na história do MinC e da realização de cinema no Brasil. Nunca aconteceu com um filme que existe, que foi entregue. Aconteceram algumas cobranças com relação a filmes que nunca foram feitos, o que acho até normal que aconteça, mas isso é uma ação de extorsão em um momento terrível do Brasil, contra os artistas. O que me faz dormir bem à noite é que não sou o primeiro artista a ser perseguido nem vou ser o último. É curioso que nesta entrevista a gente esteja falando de toda uma trajetória, de quando eu era criança, dos anos 1980… Estou há 25 anos fazendo cinema, tudo público e aberto, sempre claro, e nada mudou no que eu faço, exceto que eu vou fazendo cada vez mais. Tem o Janela Internacional de Cinema do Recife (festival criado por Kleber e Emilie Lesclaux em 2008), tem o trabalho com a imprensa, tem os filmes que faço e todo filme que faço gera mais energia. A única coisa que mudou foi o Brasil. É um pouco suspeito que a única coisa que mudou foi o país. E é exatamente quando o Brasil muda, e assume atitudes que não são democráticas, que um negócio desse aparece com relação a um artista como eu, que sempre fez tudo da maneira mais clara, até com repercussão internacional. Enfim, a gente está em um processo judicial, com advogado.

CONTINENTE Isso vai para onde, para o STF?
KMF Imagino que sim. Mas é o equivalente a você ser assaltado pelo seu país.

CONTINENTE O que o MinC alega? Que vocês receberam recursos e havia um teto que não poderia ser complementado com incentivo de outra fonte, é isso?
KMF O edital do qual a gente participou, a gente e vários outros projetos, tinha uma abertura de interpretação, que foi esclarecida com a Ancine e com a Secretaria do Audiovisual, e que as duas disseram: “Sim, é fato, vocês podem complementar com dinheiro, mas não federal”. Então a gente usou dinheiro do Estado de Pernambuco, outros projetos complementaram com dinheiro municipal, e isso tudo foi documentado e arquivado e estava tudo certo. Quando entrou o governo Temer, entraram pessoas que não acreditam no estado como apoiador da cultura. O alvo mais fácil de fazer alguma coisa fui eu, até pelo sucesso dos filmes.

CONTINENTE E talvez também pelo protesto feito em Cannes, em maio de 2016?
KMF Tenho um orgulho enorme do protesto que a gente fez, mas isso já vinha rolando ao longo de um ano dentro da Ancine, por parte de uma pessoa que criou essa situação dentro de um laboratório. Porque já existia uma guerra interna lá, uma guerra de narrativas, pois ela, nos últimos anos, tinha estado no período Manoel Rangel (diretor-presidente da Ancine entre 2006 e 2017), então tinha uma coisa de inimizade.

CONTINENTE Você vai dizer quem é essa pessoa?
KMF Eu não posso falar aqui, mas vocês deveriam ir atrás. Aí, quando o MinC virou golpista, eles pegaram isso e simplesmente deram continuidade, mesmo não fazendo o menor sentido. Qualquer sentido. Até porque o filme foi entregue, sem falar de que todos os outros filmes, que fizeram o mesmo procedimento legal, nenhum deles está sendo investigado.

CONTINENTE Isso já estava sendo gestado ao longo de 2015?
KMF É, mas o que aconteceu mesmo foi quando mudou o ministério e ele passou a ser um MinC golpista.


Maeve Jinkings, Sonia Braga e Emilie Lesclaux e Kleber realizam protesto no Festival de Cannes, em 2016. Foto: Valery Hace/AFP

CONTINENTE Pegando a lembrança do protesto, queríamos que você falasse da importância de ir para Cannes naquele ano. Você era crítico, ia para o festival sempre e, de repente, estava lá como diretor de um filme brasileiro na competição.
KMF Eu conhecia Cannes durante todos os anos como crítico, conhecia todas as portas e salas e todo o jeito de Cannes operar e agora estava lá com um filme, vendo todas as portas do outro lado. Isso foi muito forte, estar lá com os meus amigos, tendo feito um filme tão pessoal, infelizmente num mês terrível para o Brasil, quando os ritos democráticos estavam sendo abandonados. A imprensa internacional não estava sabendo, não estava entendendo nada. Na verdade, a imprensa internacional estava repetindo o que saía na imprensa nacional, botando no Google translator. Acho que o protesto alertou, dizendo “se liguem”. Vários jornalistas vieram me falar isso: “A gente não tinha noção do que estava acontecendo, agora a gente tem”. Que bom que Aquarius foi parte de um momento histórico e é curioso como sobreviveu ao protesto. O filme poderia ser só o protesto, mas ganhou vida própria e seguiu uma carreira.

CONTINENTE Três anos depois, com Bacurau em Cannes, você decidiu não fazer nenhum protesto oficial?
KMF Não, porque quando o filme foi anunciado em Cannes, toda a imprensa fazia a mesma pergunta: “Qual vai ser o protesto?”. Parecia que eu era o cineasta do protesto. E eu lembrava muito do Los Hermanos: “Vai tocar Anna Júlia?”. “Hoje vai ter Anna Júlia?”. E, na verdade, todo mundo sabe o que está acontecendo no Brasil. A imprensa internacional está dando, até melhor do que a daqui.

CONTINENTE Que tipo de espectador você é com seus próprios filmes?
KMF Faço os filmes que gostaria de ver. Isso vem de uma formação, de muitos anos indo ao cinema. Tenho memórias afetivas de grandes sessões de cinema que vi, às vezes sozinho, às vezes com outras pessoas, e quero repetir um pouco daquele sentimento – como acontece sempre com os artistas, sempre tem uma tentativa de volta. Lembro quando fui ver Robocop sozinho no São Luiz, em 1987, e era o filme perfeito de ação, mas ao mesmo tempo era algo muito especial porque não era normal. Era isso que eu queria fazer: um filme anormal. Bacurau é totalmente brasileiro, mas, ao mesmo tempo, tem alguma coisa ali que não é muito comum. Não sei se é a imagem, a câmera, a violência, alguma coisa que nos atraía muito, eu e Juliano, e a gente queria mostrar nesse filme algo que não era normal. Algo que talvez vocês já tivessem visto, mas não daquele jeito.

CONTINENTE As imagens do filme trazem mesmo uma reincidência afetiva, que nos leva a filmes já vistos, mas também traz ecos do Sertão, do cangaço, que é tão nosso, e tem a referência literal das cabeças cortadas, mas também o senso de comunidade.
KMF Algumas pessoas se apegam a essa ideia do cangaço, por causa das cabeças cortadas, mas é incrível o que aconteceu durante a escritura do roteiro e na semana passada: quando se tem uma rebelião nos presídios no Brasil, são arremessadas 14 cabeças e algumas viram bola. Não tem nada a ver com o cangaço, tem a ver com o Brasil. Quem sabe Lunga, personagem de Bacurau, e o bando dele não passaram um tempo, dois anos numa penitenciária, e lá viram esse negócio acontecer e, quando eles estavam em Bacurau, pensaram “eu vou é cortar cabeça também?” Não é só o cangaço, é muito mais complexo. Teve uma pessoa que viu o filme e veio me dar aula: “Olhe, mas o cangaceiro não cortava cabeça, quem cortava era a volante”. É mais complexo do que isso tudo, pois a sociedade brasileira é violenta demais e agora parece que perdeu o pudor. Essa da rebelião em Altamira (no Pará, ocorrida em 29 de julho) foi relatada sem pudor. Caralho… Decapitados? Sob tutela do Estado?

CONTINENTE O que você achou dessa mudança nos critérios para seleção ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro? Agora vão ser nove indicados. Você foi prejudicado no ano de Aquarius.
KMF Acho ótimo, mais chance. Aquilo foi estranho. Um harakiri.

CONTINENTE Qual o impacto que um Oscar tem, na realidade?
KMF Incrível, é muito assustador. Para a divulgação do filme, é gigante. Não sei se depois que a pessoa ganha tem algum impacto, talvez para o próximo projeto. Porque tem muito realizador que ganhou Oscar e não aconteceu nada. Mas, para divulgação, é algo gigantesco. É o que a grande massa entende como cinema. Cannes é bem importante, mas o Oscar… outro nível.

CONTINENTE Você é uma pessoa muito presente nas redes sociais. Sofre com haters?
KMF Não, mas às vezes aparece um e, em três segundos, a pessoa está bloqueada. Crio um Reino da Carochinha… Minhas redes sociais são o Reino da Carochinha, só gente que concorda comigo (risos). Isso é bom para a saúde mental. É bom para não ter que acordar e ver um cara que postou a execução de um cachorro no Facebook. Isso faz mal. Então, no início do Facebook, eu já via isso e bloqueava a pessoa. Não que ela postasse para eu ver, mas é o tipo de gente que acha execução legal, que gosta de agressões. Na semana passada, apareceu uma doidinha, ainda fui paciente, mas depois vi que era bolsominion mesmo e bloqueei. Essas pessoas trabalham com marcadores de realidade. A gente está aqui no Café Santa Clara, a pessoa aparece e diz: “Está de noite lá fora, são 20h, os carros estão passando com a luz acesa”. Mas não está de noite, são 11h50 e o sol brilha lá fora. É isso o que está acontecendo no Brasil, é sobre isso que Antônio Prata escreveu. Quando a Folha de S.Paulo fala que Bolsonaro é polêmico, não, ele não é polêmico, ele é um escroto, idiota, mentiroso e filho da puta. Isso é o que ele é. Ele não é polêmico. Usei as redes sociais para escrever o roteiro de Bacurau e vou sair agora para me isolar, para escrever um outro roteiro. Porque esse roteiro se passa em 1970, não preciso de rede social para falar sobre como era 1970; preciso ir para o Arquivo Público, ver arquivos de foto, ler livros. Mas, para Bacurau, foi superimportante ver que tinha uma matéria no New York Times sobre um grupo de soldados no Afeganistão que saiu atirando em civis. Que não tinha nada melhor para fazer, pois estava achando tudo monótono, chato pra caralho, e isso foi interessante para o projeto. Quando você está escrevendo, descobre que o vocabulário da maldade humana é muito maior do que a gente pensa.

CONTINENTE Quem seria o cineasta que você gostaria que visse Bacurau?
KMF Não sei se tenho fetiche de determinado cineasta para ver meu filme. Talvez John Carpenter. Ele estava em Cannes no mesmo dia em que a gente ia apresentar o filme, mas estava recebendo um prêmio. Mas, no fundo, acho que tenho medo. Ele é um velho meio rabugento.

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Extra: Confira Homem de projeção (1992), Enjaulado (1997), A menina do algodão (2003), Vinil verde (2004, na foto), Eletrodoméstica (2005) e Recife frio (2009), alguns dos curtas-metragens de Kleber. 
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DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da Continente e colunista do site da revista.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.

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