Seis anos separam as filmagens de Açúcar (Brasil, 2017), novo longa-metragem dos realizadores pernambucanos Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, da sua entrada em cartaz neste final de semana. Outros três anos dividem as primeiras exibições do filme: no Festival de Roterdã e na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, desse momento em que 15 cidades brasileiras abrem suas telas para acolhê-lo – Aracaju, Brasília, Curitiba, Fortaleza, João Pessoa, Maceió, Manaus, Natal, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Teresina, Triunfo, no sertão pernambucano, e o Recife, onde estreia nos cinemas da Fundação Joaquim Nabuco e no Cine São Luiz.
“Acho o filme extremamente atual, até porque ele tem uma estética clássica, alegórica, simbólica, e isso não envelhece. O uso do realismo fantástico o torna atemporal. Com relação às questões da atualidade do Brasil, acredito que uma das coisas que pode ter provocado essa virada é justamente o incômodo da elite. A classe média se incomoda ao ver a ascensão da classe trabalhadora”, diagnostica Renata em conversa com a Continente. Ela e Sérgio Oliveira, que assinam juntos roteiro (ao lado de Renê Guerra) e direção, são casados e parceiros de vida e obra – já rodaram o documentário Estradeiros e o curta-metragem Praça Walt Disney, ambos de 2011, e Renata é corroteirista de Super Orquestra Arcoverdense de Ritmos Americanos, filme que Sérgio dirigiu em 2016.
Em Açúcar, eles escancaram feridas intrínsecas à ontologia de Pernambuco – a herança escravocrata, a monocultura da cana-de-açúcar, a luta de classes entre casa grande e senzala, as tensões raciais que decorrem disso tudo. Bethânia (Maeve Jinkings) é a protagonista, moradora da urbe que volta para o antigo engenho da família, na Zona da Mata, onde mora Alessandra (Dandara de Morais, de Ventos de agosto) e onde sua madrinha (Magali Biff) esbanja a postura de quem sempre foi rico, acostumado a mandar, e assim não quer perder a majestade. Suas raízes pertencem àquele lugar, sua pele não esconde isso, porém Bethânia é pura negação. Eis que algo começa a se passar entre ela, aquela casa, a terra, o canavial...
Cena do filme Açúcar. Foto: Divulgação
“Na verdade, a luta dela durante o filme é negar desesperadamente quem ela é. Ela tem vergonha de quem é. Isso sempre existiu, mas, em 2020, temos um presidente da República que bate continência para a bandeira norte-americana. Ou seja, Açúcar está ainda mais atual. Bethânia é uma mulher repartida que alimenta a fantasia de não ter que olhar para quem e o que ela é”, comenta a atriz Maeve Jinkings, tão à vontade com os dilemas e as negações da sua personagem como estava com a sensualidade brega de Jaqueline, a musa do longa anterior de Renata Pinheiro, o Amor, plástico e barulho (2013).
Essa cisão de Bethânia, entre o que ela é o que aspira ser (e transparecer), é a força motriz de Açúcar, que se desvela, sem pressa alguma, à medida que o vínculo entre aquela mulher e a casa grande se amplifica ao mesmo tempo em que se abre para o sobrenatural. “Sem pressa” é uma característica do cinema dessa diretora, que põe seus personagens para se expor, numa cadência própria, em imagens de delicada plasticidade, e assim cria uma narrativa que convoca o público até sequestrá-lo.
Sobre o hiato entre filmar, estrear e finalmente entrar em cartaz, Maeve Jinkings observa que é possível analisá-lo à luz de fatores positivos. “Primeiro, para que as pessoas tenham a dimensão de como é difícil captar recursos para todas as fases de filmagens. Renata e Sérgio filmaram com recursos próprios, num ato heroico, e depois conseguiram um edital público para finalizar e foram correr atrás de distribuição. Por outro lado, como o intervalo foi demorado, acho que acentua que o cinema é sempre o resultado da fricção entre o que foi feito num determinado tempo, a percepção daquele instante, e o mundo em que ele nasce. Te confesso que acho Açúcar mais atual agora do que em 2014, ou mesmo em 2015”, pontua a atriz, que nasceu em Brasília, cresceu em Belém, morou muitos anos em São Paulo e agora vive no Recife.
Luta de classes, reparação histórica, escravidão, casa grande, senzala, mulheres e a negação da História: de tudo isso, Maeve e Renata falaram à Continente e de tudo isso, também, fala Açúcar, uma produção da Aroma Filmes, em parceria com o Canal Curta e Synapse, e uma distribuição da Boulevard Filmes. Leia mais sobre o que a codiretora partilhou conosco na entrevista abaixo.
CONTINENTE Vi Açúcar numa sessão na Mostra Internacional de Cinema São Paulo em 2017 e o filme entra em cartaz agora, dois anos e três meses depois, quando o Brasil é outro país. Como você enxerga esse novo momento de estreia e o próprio filme inserido nesse novo contexto? RENATA PINHEIRO Acho o filme extremamente atual, até porque ele tem uma estética clássica, alegórica, simbólica, e isso não envelhece. O uso do realismo fantástico o torna atemporal. Com relação às questões da atualidade do Brasil, acredito que uma das coisas que pode ter provocado essa virada é justamente o incômodo da elite. A classe média se incomoda ao ver a ascensão da classe trabalhadora. No nosso filme, inclusive, usamos a metáfora de quando a personagem da madrinha de Bethânia leva o lustre da casa grande, aquele símbolo de riqueza. Em 2014, quando filmamos, a pergunta era: quem vai ficar com o lustre? Claro que ficaria na mão dos brancos. No Brasil, sempre é assim e foi que aconteceu.
CONTINENTE Você disse que rodou em 2014, Açúcar circulou em festivais em 2017 e só agora está saindo, mas de onde o filme vem? Qual era a sua inquietude que nele desaguou? RENATA PINHEIRO O filme em si, como gramática, nasceu de um sonho. Sonhei com a imagem de um barco no canavial. Juntei essa imagem com a situação que o Brasil vivia naquele momento: otimismo, transformação social, até por conta das cotas, e meu desejo era justamente mostrar a decadência da casa grande em detrimento da ascensão da classe trabalhadora, uma classe afrodescendente em sua maioria. Temos um passado cruel e quis filmar em um engenho mesmo onde se fazia açúcar, na zona da mata pernambucana, até porque esse passado, por mais cruel que tenha sido, precisa ser discutido. Não pode ser negado.
No longa, Maeve Jinkings contracena com Dandara de Morais. Foto: Divulgação
CONTINENTE Que é justamente o que a personagem principal, Bethânia, vivida por Maeve Jinkings, faz, não é mesmo? Ela nega suas origens e a si própria. RENATA PINHEIRO A personagem é isso: a elite que desconhece a sua identidade racional, ou que a nega, e pratica uma gramática do embranquecimento. No filme, essa personagem está em um momento crítico, manipulada para lá e para cá. Ela foi criada com esses valores brancos, mas a força da terra e alguns eventos sobrenaturais, que têm a ver com a energia dessa terra da Zona da Mata, vão empurrando-a para esse grande confronto. Que é, na verdade, um confronto consigo mesma.
CONTINENTE Como se ela estivesse a enfrentar sombras e fantasmas que sempre estiveram dentro dela, mas que afloram ao chegar naquela casa grande. RENATA PINHEIRO O que é ser brasileiro? O que é o Brasil? Tenho visto essa discussão com mais frequência nos filmes e é engraçado que é um debate muito atual, mas que nós já trazíamos lá atrás, quando começamos a escrever, eu e Serginho (Sérgio Oliveira, codiretor). Açúcar não é um filme regional, como alguns já disseram, até porque essa história é o início do Brasil e se repete em várias regiões. É algo maior, a formação da cultura brasileira, da cultura escravocrata, mas pegando o contexto da região da zona da mata pernambucana, onde talvez isso tenha sido mais agudo, porque a cana-de-açúcar foi a primeira economia do Brasil. Não é mérito algum, é só uma constatação mesmo.
CONTINENTE O filme traz no título a palavra-chave para a formação da economia de Pernambuco e do próprio Brasil, e um tema que foi muito discutido em livros como Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. Essas leituras foram incorporadas de alguma forma ao roteiro? RENATA PINHEIRO Na verdade, esse é um tema que conheço bem, de várias leituras, e da vida mesmo. Estive em muitos engenhos de açúcar, conheço a história, a herança. Já li Casa-grande e senzala, mas acho que Açúcar não tem nada que ver com a obra em si, com o livro de Gilberto Freyre, até porque ele romantizou muito aquele universo. O menino de engenho e São Bernardo são obras que li, mas não posso dizer que as utilizei como base, foram as vivências, a familiaridade com esse tema.
CONTINENTE Falando em familiaridade, você trabalha novamente com Maeve, que havia sido sua protagonista em Amor, plástico e barulho (2013). Como foi o convite para retomar essa parceria criativa? RENATA PINHEIRO Justamente quando terminamos de rodar Amor, plástico e barulho, no encerramento das filmagens, começamos a conversar sobre esse projeto. Ainda estava tudo muito embrionário, mas ela topou e entrou de imediato. Aí depois veio Dandara de Morais, veio também Zé Maria, um pescador de Baía Formosa, no Rio Grande do Norte, e conhecemos esse cara, que havia feito um filme lindo lá, com pessoas da sua comunidade, e o convidamos também para o filme. E chamei Magali Biff, que eu havia conhecido no set de Deserto, de Guilherme Weber, e achei que era um ótimo rosto para falar da luta de classes na região da cana-de-açúcar.
CONTINENTE Você menciona Deserto, longa do qual fez a direção de arte, e a direção de arte é uma vereda onde sua excelência é reconhecida e premiada. Em Açúcar, delegou essa tarefa a alguém? RENATA PINHEIRO Não, eu mesma fiz. Porque éramos 13 pessoas, filmando em 13 dias, com recursos próprios. Guerrilha mesmo, como gosto, com pouca gente. Tínhamos saído de Amor, plástico e barulho, que era uma produção grande, com muitos carros, um universo ruidoso, e foi muito gostoso trabalhar com parceiros com quem já tínhamos uma estrada, como o mesmo fotógrafo (Fernando Lockett), até porque eu não queria muita gente ali. Ficamos os 13 dias dormindo na locação, sentindo o lugar. Para a direção de arte, eu tinha ali um arsenal de coisas que já eram da casa, mas que não sabia se iriam entrar na história ou não. Até porque não é só chegar e abrir câmera, não é? A direção de arte minimamente organiza e reorganiza, deixa tudo mais expressivo, trabalha tudo que está ali dentro.
CONTINENTE Vivemos tempos obscuros em que a História do Brasil vem sendo negada, como abordamos na reportagem de capa da Continente de dezembro/2019. A escravidão, tema que está no lastro de Açúcar, virou objeto de disputa – há quem diga que os negros não foram escravizados, e sim vieram ao Brasil por “empreendedorismo” próprio. Renata, diante desse cenário de negação histórica, como você percebe a estreia do seu filme? RENATA PINHEIRO Aí é que a importância de Açúcar é maior. Quero que as pessoas vão assistir nas salas de cinema e que falem, bem ou mal, mas que discutam identidade racial e a formação cultural do povo brasileiro. Estamos justamente nesse momento importante e o filme foi feito para se conversar sobre os temas que levanta. Muito mais importante do que receber elogio, na verdade, é falar sobre o filme. Elogio não tem importância nenhuma. A importância de Açúcar é provocar a discussão.
LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica de cinema da Continente.