Um dos destaques da antologia, no sentido da criação de um contraponto às narrativas mais recorrentes do Romantismo (como o citado indianismo patriótico), é O pão de ouro, de Bernardo Guimarães (1825-1884), célebre autor de A escrava Isaura. Através de uma história fantástica, que tem como base uma lenda sobre a investida dos bandeirantes, Guimarães tece críticas ao indianismo e, ainda, aos “paulistas”, colocando-os na posição de caça, em vez de caçadores. Segue caminho semelhante, mas a partir de uma narrativa de viés histórico, o conto Camirã, a quiniquinau, de Visconde de Taunay. Nele, o autor desloca o indígena da época da colonização para o contexto oitocentista da Guerra do Paraguai e mostra como os povos originários, que não faziam parte do conflito, fundaram uma vila solidária à população em geral durante a invasão paraguaia.
Na parte das histórias cotidianas de O sino e o relógio, há também espaço para leituras com sorriso no canto da boca. São exemplos disso Que desgraça, publicado por autor anônimo e que se assemelha bastante à crônica contemporânea; O banho russo, de João Manuel Pereira da Silva, que narra uma visita a uma casa de banho russo, em Paris, e Achar marido num ovo, de Escolástica P. de L. São histórias curtíssimas que nos colocam diante de uma situação inesperada, como o fim de um noivado causado por um macaco, ou sobre uma viagem de transporte público que promove um cômico contato entre classes sociais, e um certo flerte do autor com uma garota acompanhada do namorado.
Questionados sobre a importância do resgate desses singulares contos através de uma antologia, os organizadores Hélio de Seixas e Vagner Camilo respondem em conjunto: “Vivemos num momento em que predominam as disputas de narrativas, as posições irredutíveis, em que tudo parece reduzido ao verdadeiro ou ao falso, o fake. Isso tudo resulta em cerceamento brutal à imaginação, em subordinação da ficção aos ‘fatos reais’, em desqualificação das nuances da ironia e do humor. A leitura de ficção, e especialmente da ficção produzida num tempo já relativamente distante do nosso (mas que, de alguma maneira, ainda é o nosso), permite pensar em outros modos de simbolizar e de pensar o mundo, o país e a nossa própria condição humana”.
VICTOR AUGUSTO, estudante de Jornalismo (Unicap) e estagiário da revista Continente.