Crítica

'Fleabag': quando o humor revisa seus dispositivos

A série de "dramédia", dirigida e protagonizada pela inglesa Phoebe Waller-Bridge, já ganhou quatro Emmys, dois Globos de Ouro e outros três prêmios do Critics' Choice Awards

TEXTO Manu Falcão

16 de Janeiro de 2020

'Fleabag' é resultado da adaptação de um monólogo homônimo produzido por Phoebe Waller-Bridge para o teatro

'Fleabag' é resultado da adaptação de um monólogo homônimo produzido por Phoebe Waller-Bridge para o teatro

Foto Divulgação

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Quando a atriz inglesa Phoebe Waller-Bridge entra em cena, ora no teatro, ora na televisão, seus gestos e feições poderiam remeter a uma boa sátira da estadunidense Rosalind Russel. E, quem sabe, de uma Myrna Loy, ou Irene Dunne, com seus cabelos escuros armados em cachos, um longo nariz afilado e lábios desenhados, vermelhos, vulgarmente exprimindo uma observação mordaz sobre o quê (ou quem) a cerca. O fato é que, em seu tempo, Waller-Bridge, também dramaturga e realizadora, dá corpo à protagonista da premiada série Fleabag com a língua tão afiada quanto a das mulheres escritas pelo cineasta Howard Hawks em comédias screwball quarentistas. À primeira vista, ela poderia também evocar certo caráter de uma femme fatale do cinema noir deste mesmo período.

Quatro anos atrás, em 2016, sua peça Fleabag, um monólogo que marcou o Festival de Edimburgo, fora adaptada para o seriado homônimo, produzido pela Amazon e disponível na Amazon Prime Video, plataforma de streaming recentemente lançada no Brasil. Tempos depois, em 2019, ganharia sua segunda temporada: uma pequena continuação exclusiva à televisão. Esta rendeu-lhe quatro Emmys em setembro passado, dois Globos de Ouro no último dia 5, e, mais recentemente, dia 12, outros três prêmios na cerimônia do Critics' Choice Awards, despertando, enfim, uma merecida atenção generalizada.

Em ambos os textos, o nome da personagem central nunca é dito, referindo-se a ela, no roteiro, como apenas “Fleabag”. No inglês norte-americano, a palavra designa um hotel decadente. Para o britânico, por sua vez, significa a decadência de um indivíduo: diz respeito a uma presença desagradável, pútrida. É possível que Fleabag se valha de ambas as derivações. Há, de fato, um DNA compartilhado com outras mulheres francas e moralmente desafiadoras do cinema e da televisão clássica. Esta protagonista, no entanto, dispõe de uma escuridão própria; e logo o espectador toma ciência de suas fissuras.

Fleabag é indócil, tempestuosa, aversa a si mesma e sexualmente compulsiva. Chamá-la de anti-heroína, porém, não faz jus ao charme oblíquo da personagem, que também é fortemente afável. Ela está de luto: em um passado recente ao início da trama, sua melhor amiga e sócia (Jenny Rainsford) havia se suicidado. Três anos antes, sua mãe, de quem era próxima, fora vítima de um câncer. A família que lhe resta – um pai (Bill Paterson), uma irmã (Sian Clifford) e uma odiosa madrinha (a "oscarizada" Olivia Colman) – é fria e reticente. Não tem amigos. Por fim, a cafeteria temática de porquinhos-da-índia que administra sozinha, o triste simulacro de seu luto, está falindo.


Foto: Divulgação

Assim sendo, a solução para o isolamento é encontrada em um dispositivo que se origina no teatro, mas que se tornou caro às comédias em qualquer linguagem. Fleabag nos escolhe, então, como interlocutores de seus causos profundamente conturbados, narrando-os diretamente à câmera ou lançando-os a expressões ligeiras, que surgem em seu rosto como uma peripécia do tempo em seus cursos mais soturnos. E como é lisonjeiro ter a permissão de observar alguém tão sincero, comicamente caótico e ferido, fazendo uso da sexualidade como vingança por um descontentamento geral e uma tangível busca por autocontrole. “Passei a maior parte da minha vida adulta usando sexo para desviar-me do gritante vazio no meu coração", diz ela, de forma debochada, mas honesta, numa sessão de terapia. A terapeuta (Fiona Shaw), então, a pergunta se tem amigos para conversar. Em resposta, Fleabag fita o espectador e pisca.

Pensemos no cinema, em Buster Keaton ou Charlie Chaplin, e seus olhares indefesos voltados à câmera. Este tipo de conexão, estabelecida no limiar entre o ator e seu público, parece buscar alguma compreensão mútua – assim fizera, também, Groucho Marx em Os galhofeiros, de 1930, ao escapar de um momento embaraçoso com duas mulheres que pretendiam se casar com ele. “Perdoe-me enquanto tenho um estranho interlúdio”, diz o personagem, antes de nos confidenciar seu desgosto pelas duas.

Nos últimos anos, este estranho interlúdio de Groucho se tornou onipresente no humor feito para a televisão, como uma nova conduta estilística a ser seguida. Com o surgimento de falsos documentários humorísticos, como The office (2005-2013), os sitcoms se atentaram a uma forte influência da realidade. Os interlúdios substituíram as faixas de claques. Trata-se de um dispositivo tão familiar, que certas reações à câmera, recorrentes em Fleabag, se tornam anedotas na própria história.

Como esses realizadores e obras ensinam, Waller-Bridge inclusa, a quebra da quarta parede é boa para uma piada. Mas há, também, a melancolia subentendida, uma barreira sugerida na própria narração. Quando um personagem interage com a câmera, não apenas o ritmo da cena é alterado, mas também a perspectiva em que podemos vê-lo. Vislumbramos Fleabag com o filtro curioso e frágil de pessoas em uma festa. No teatro de Bertolt Brecht, seus personagens demagogicamente chamavam atenção a este artifício para forçar o público a sair dos subterfúgios aprazíveis do espetáculo. Já Phoebe Waller-Bridge direciona vagamente sua personagem (e, junto dela, o espectador) à direção contrária, mas não sem assombrá-la, aos poucos, com lampejos esparsos de memórias não quistas. É aí que paira a tese de Brecht: é nos confrontos com a fantasmagoria latente de sua história que Fleabag foge à câmera, compreendendo a existência do público como a negação de sua profunda dissociação. A protagonista o tem como esconderijo, dos outros personagens e de si mesma.

A confabulação de Fleabag é uma ilusão de intimidade. Voltemos à impressão inicial da femme fatale, cujo modo de se relacionar com o mundo é através do flerte. Ela flerta com todos, até mesmo com a câmera, direcionando-nos seu olhar mesmo durante as cenas de sexo. Ela nos guarda suas respostas autênticas e sorrisos conspiratórios, como um conluio metalinguístico, mas que se trata de um feito de pura performance. Ao longo dos 12 episódios existentes, o espectador observa não a construção de um personagem, mas seu desmonte – ao passo que seus gestos, sempre precisos, conduzidos pelo rigor minucioso do roteiro de Waller-Bridge, tornam-se turvos e cada vez mais silenciosos.

Não à toa, na cena final, Fleabag tira da câmera a autoridade de a seguir, afastando-se para longe, até o último corte. Alguns episódios antes, já na segunda temporada, a atriz britânica Kristin Scott Thomas faz uma pequena participação, interpretando uma mulher com quem Fleabag conversa em um bar. Em determinado momento, a mulher segura seu rosto: “Saia daí”, diz ela, “as pessoas são tudo o que temos”. A implicação desvela, tão somente, a necessidade da personagem de sair de sua cabeça, onde mora o público deslumbrado e assíduo.

Percebemos que a narrativa se aproxima de um fim definitivo à medida que Fleabag alcança uma reconciliação existencial, precisando, portanto, livrar-se da plateia, da performance e do espetáculo.

SEGUNDA TEMPORADA
“Esta é uma história de amor”, alerta Fleabag na abertura da segunda temporada. Passado um ano após os eventos da primeira, um novo personagem adentra a trama: O Padre (Andrew Scott, o Moriarty da minissérie Sherlock). Tal como a maioria dos personagens, seu nome nunca é dito. O jovem clérigo, gentil e espirituoso fora escolhido para celebrar o casamento do pai de Fleabag com sua madrinha. A chegada d’O Padre parece despontar como a antítese da natureza niilista da protagonista, provocando a dinâmica mais curiosa do seriado. A partir dela, Waller-Bridge quebra a suspensão inicialmente posta por Fleabag diante da autoconsciência de sua alienação, aquela que fora apontada por Brecht, e que estava à espreita, insinuada ao longo do enredo.

Em seus diálogos, O Padre a enfrenta abertamente, reconhecendo a existência de um lugar para o qual Fleabag, nas palavras dele, desaparece – a plateia por detrás da câmera. Porque ele a viu, consequentemente, ele nos viu, percebendo, ali, sua estratégia de distanciamento. Ela também o retruca ao longo dos episódios, apontando-lhes suas próprias figuras invisíveis, como a crença em Deus.


Foto: Divulgação

O flerte entre os personagens é imediato e relutante – poderia evocar alguma estranheza, não fosse Fleabag tão impulsivamente irreverente. “Eu quero transar com um padre”, confessa, novamente, à sua terapeuta. “Católico?”, ela pergunta, em resposta, desembaraçadamente. A paixão, afinal, parece adequada: assimila tanto uma diversão pungente, proibida, típica das deambulações sexuais de Fleabag, como também sua mais profunda solidão. A questão, na realidade, vai além: Fleabag involuntariamente apaixona-se por um espírito afim. Seu encontro com O Padre prognostica a conexão de dois indivíduos solitários que têm uma vida privada, mas da qual ambos ganham conforto por aquilo que há de onisciente e metafísico em suas mentes; algo pelo qual só eles podem ter acesso. A quebra da quarta parede de Fleabag, pois, parte de um ensejo também almejado pelo Padre ao rezar: ambos têm o intuito de se aliviar de seus respectivos fardos.

O clérigo, através da paixão avassaladora por Fleabag, passa, afinal, por um trajeto pessoal de conflito de fé, seguindo uma atualização de conceitos e personagens análogos que vêm desde a filosofia de Kierkegaard à literatura de Georges Bernanos, com Diário de um pároco de aldeia (1936), ao cinema de Ingmar Bergman e, também, em representações mais recentes, como First reformed (2017, Paul Schrader). No entanto, pode-se dizer que, para ambos os personagens, experienciar o amor curou-lhes de suas agruras. Há uma citação do filme Teorema (1968, Pier Paolo Pasolini) que diz: “Através do amor que você me deu, tomei consciência da minha doença”. 

Quando Fleabag chega ao fim, a percebemos mais reconciliada consigo mesma e tendo um pouco de seu niilismo, enfim, rompido. É aí que O Padre, assertivo, admite escolher Deus em lugar da protagonista. Ao fazê-lo, Fleabag é levada a uma escolha semelhante e, assim, acontece o rompimento esperado com a conversação infundada à câmera; num último e saudável aceno a nós, e em uma concessão resoluta à Brecht.

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Para acompanhar o trabalho engenhoso de Phoebe Waller-Bridge, ela também é criadora dos seriados Crashing (2016), The killing Eve (desde 2018) e co-escreveu o próximo e 25º filme da franquia 007: 007 – Sem tempo para morrer, a ser lançado em abril de 2020.

(Mais: ouça o podcast do Feito por Elas sobre Fleabag)

MANU FALCÃO é cinéfila e jornalista em formação pela Universidade Católica de Pernambuco.

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