Crítica

Uma carta de amor e nossa coleção nacional de escombros

Sociólogo e professor José Henrique Bortoluci faz sua estreia como escritor com o ensaio biográfico 'O que é meu', no qual conta a história do pai caminhoneiro e reconstrói relações de afeto familiar

TEXTO Felipe Cordeiro

01 de Junho de 2023

Imagem VITO SANTIAGO COM FOTOS DE ACERVO PESSOAL DO AUTOR

[conteúdo na íntegra | ed. 270 | junho de 2023]

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"Você foi feito na boleia de um caminhão." Assim começou a história de José Henrique Bortoluci, nascido em 1984, em Jaú, um pequeno município do interior de São Paulo. Em 2023, o até então sociólogo e professor, tornou-se escritor, fato sacralizado com o lançamento de O que é meu, em março, pela Editora Fósforo. Trata-se de um ensaio biográfico que parte de entrevistas realizadas com seu pai, que trabalhou como caminhoneiro por 50 anos, para criar uma espécie de arqueologia de seus afetos familiares. Antes do lançamento, o livro já era um fenômeno editorial, com seus direitos de publicação vendidos para 10 países, em editoras com catálogos imponentes, como Fitzcarraldo, Grasset, Iperborea, Aufbau, Literatura Random House, Nordsedts e Aschehoug.

A estreia de fato, ocorrida na Livraria Megafauna, situada no Edifício Copan, em São Paulo, confirmou o que já era prenúncio: o livro bateu dois recordes de vendas em lançamentos, o da editora e da livraria. Ao longo dos últimos meses, notícias sobre a obra estamparam longas matérias dos jornais brasileiros de maior circulação. Pedro Bial fez um programa inteiro sobre o livro. Levando consigo seu filho mais novo, José Bial, ele visitou Dirce e Didi, pais de José Henrique, para entrevistá-los. Mais tarde, o próprio autor foi entrevistado nos estúdios do programa Conversa com Bial. Durante o episódio, Bortoluci respondeu à entrevista valendo-se de uma narrativa envolvente, que habilmente orquestrava jargões sociológicos e a complexidade das relações interpessoais com uma comunicação acessível e dinâmica.

Na escrita, a relação de José Henrique Bortoluci com seu pai José Bortoluci – o famoso Didi, para os familiares, ou Jaú, para os companheiros de estrada – é esmiuçada e preenchida por nuances literárias. O texto oscila de sofisticadas formalizações estéticas até os silêncios mais corriqueiros das interações humanas, que muitas vezes falhamos ao tentar nomeá-los. Enquanto escreve essa carta de amor do pai, o autor convida os leitores a cruzar o Brasil algumas vezes, falando tanto de nomes recorrentes em nosso linguajar nacional quanto dos arrabaldes de pequenos lugarejos das fronteiras ao norte do país.

Logo na primeira epígrafe, o escritor cita Roland Barthes, quando pontuou que “não há texto sem filiação”. Esse conceito de filiação enfatiza a ideia de intertextualidade no campo artístico, que se refere à maneira como os textos estão interconectados e se constroem uns sobre os outros. A afirmação de Barthes é particularmente relevante nesse contexto, pois aponta a importância de compreender os contextos históricos e culturais a partir dos quais um texto foi produzido. Ao traçar a filiação de uma obra, ou seja, sua linhagem literária, é possível obter uma compreensão mais profunda de seu significado e importância. E, se todo texto sugere uma genealogia, a narrativa de Bortoluci combina diferentes tradições ensaísticas e literárias. Suas influências e inspirações podem ser rastreadas nas obras das nobelizadas Annie Ernaux e Svetlana Alexievich, em Maggie Nelson e no ensaísmo estadunidense, além da tradição sociológica brasileira.

A presença de Barthes nesse primeiro momento é também catalizadora de uma forma de escrever. Em seus escritos, o escritor francês discute a relação entre a fotografia e a morte, argumentando que a fotografia é uma forma de “morte em vida”, pois captura um momento no tempo que nunca mais poderá ser recuperado. Ele sugere que a fotografia é uma forma de embalsamamento, uma maneira de preservar a imagem de uma pessoa ou objeto fotografado, como se fosse uma representação daquilo que nunca mais poderá existir novamente. Em suma, Barthes argumenta que a fotografia é uma forma de lidar com a mortalidade e de tentar preservar a vida por meio da imagem fotográfica.

Podemos dizer que são justamente movimentos como esses os que Bortoluci realiza ao longo de O que é meu, uma vez que o autor ambiciona construir um relato em duas vozes sobre as memórias que envolvem o corpo de um homem e o corpo de um país. Durante a escrita do ensaio, Didi foi acometido por um câncer de intestino e, conforme escreve seu filho, “o tumor brotou em seu corpo, se espalhou em nossa vida familiar e chegou até este livro”. E segue: “Escrevo entre duas devastações. Uma delas acomete o corpo de meu pai. A outra é coletiva, nacional. Nos últimos anos, fomos abatidos pelo macabro experimento político do grande mal que escancara os dentes para a pilha de mortos que nem mais conseguimos contar”.


As entrevistas realizadas com seu pai, que trabalhou
como caminhoneiro por 50 anos, foram a base para
Bortoluci compor o livro. Imagem: Editora Fósforo/Divulgação

Para converter esse relato em substância literária, tanto o pai quanto o filho foram convocados a voltar às fotografias do passado, as ampliadas e as que só os olhos viram. Restavam apenas as lembranças e a criatividade de um filho, atreladas à memória de um senhor de quase 80 anos, já um tanto embaralhada pelo tempo. “A única coisa que dava era pra ter fotografado com uma Kodak, essa máquina de fotografia branco e preto, mas o pai nunca teve. Porque se eu tivesse gravado tudo que eu fiz, você ia sentir o maior orgulho do seu pai. O que é meu é tudo aquilo que eu vi e gravei na memória. Então, a única coisa que posso fazer é tentar recordar e contar.

O assombro da morte permeia as páginas do livro. E, se a fotografia é uma espécie de “morte em vida”, a literatura também seria? Naquelas frases, vemos o filho perseguir os rastros do pai, preservar a imagem de pessoas que nunca viu e lugares onde nunca esteve. A escrita evoca as décadas intensamente vividas por Didi enquanto trabalhava como caminhoneiro. Somos conduzidos Brasil afora na boleia de um caminhão e numa brochura de papel com letras impressas.

Valendo-se da linguagem como artifício, o filho é quem segura o volante da narrativa, pois sabe que é com elas que conectamos os pontos entre o presente e um passado que não podemos mais acessar. “Palavras são cicatrizes, restos de nossas experiências de cortar e costurar o mundo, de juntar seus pedaços, de atar o que teima em se espalhar.” E continua: “Falar é trazer os mortos para dançar na festa dos vivos, é reviver o trajeto de gerações passadas e de nossa história de encontros e de perdas”.

Neste ponto, retomo a segunda epígrafe do livro, dessa vez escrita pelo brasileiríssimo Graciliano Ramos: “De qualquer modo, desejamos um milagre de oito milhões de quilômetros para o Brasil”. Curiosamente, é também um número oito que nos conta muito sobre a relação dos protagonistas do livro. Oito mil quilômetros é a distância que separa Jaú, terra dos pais, de Ann Arbor, cidade estadunidense onde José Henrique morou por seis anos para cursar seu doutorado. Apesar das distâncias que esse ato simbolizava, os números não impressionavam o pai que havia rodado tanto mais que isso. “Um dia ele pediu que eu calculasse quantas vezes seria possível contornar a Terra com a distância que ele cobriu como motorista. E será que dá pra chegar na Lua? No imaginário do meu pai, uma viagem da Terra à Lua de caminhão é coisa mais concreta do que minha vida de acadêmico, professor, escritor.”

Didi estudou até a quarta série e sua relação com os estudos do filho sempre foi de ordem mais prática do que abstrata. “Lembra que esse aeroporto o pai ajudou a construir pra você poder voar. Ouço essa frase do meu pai sempre que tenho de pegar algum voo no aeroporto de Guarulhos. E eu sempre lembro, mas demorei para aprender.” Em que pese a vida do filho ter trilhado o caminho dos estudos formais, o pai sempre esteve por perto. Enquanto o filho, um prodígio escolar desde cedo, participava de olimpíadas e congressos internacionais, em países como Rússia e Estados Unidos, o pai vendia rifas para auxiliar com parte desses custos.

Dirce, esposa de Didi e mãe de José Henrique, em entrevista à Continente, conta que a relação entre pai e filho sempre foi especial: “Ele é um filho de ouro, desde muito novo, em tudo que ele fazia ou participava, ele só dava alegria. Quando o José Henrique e o João Paulo faziam faculdade, eu costurava para fora e tivemos um amigo que nos ajudava. Ele dava uma viagem de areia por mês e o Didi vendia. Foi uma luta, mas valeu a pena. Eu sou muito feliz pelo meu marido e meus dois filhos. Têm algumas coisas no meio que atrapalham a gente, mas levanto e vou em frente”.

Além dos relatos do pai e das poucas fotografias de seus tempos de caminhoneiro, o diário que Dirce manteve durante aquele período foi um material importante para a construção dos afetos familiares que tecem O que é meu. O caderno documenta todo o relacionamento do casal, e ela somente parou de escrever após o nascimento de José Henrique.

“Minha mãe nunca teve outro diário e quase não escreveu cartas depois do meu nascimento. A última anotação no caderno é um bilhete a meu pai. Ela o assina em nome dela e em meu nome, numa época em que eu era recém-nascido. Essas linhas são a pré-história da minha escrita, assim como uma espécie de despedida da escrita para ela:

Dido eu ti Amo
Somente sou feliz tendo você a meu lado.
Eu você e o nosso filho
Cada dia que passa te amo mais
Agora é dois coração que te ama, o meu e o nosso filho
Dido, lembre-se desse alguém que muito o ama e sempre estará te
esperando
Dirce – e o fruto do nosso
Amor nosso filho”

Dirce nos conta que começou a escrever o diário porque sentia muita falta do namorado, que chegava a passar meses na estrada. Sobre não ter voltado a escrever, relata: “Depois que casamos, eu fiquei grávida logo. Com nove meses e 12 dias o Zé nasceu. E quando ele tinha quatro meses eu engravidei do João Paulo. Como a nossa vida estava difícil, com pouco dinheiro, eu costurava muito. Eu colocava o Zé num carrinho e o João em uma cesta, um de cada lado da máquina”.

No livro, ao refletir sobre essas particularidades de sua família, o autor escreve: “Esta passagem em que Ernaux fala de sua mãe me soa estranhamente familiar: ‘Eu tinha, ao mesmo tempo, certeza do amor dela por mim e consciência de uma injustiça flagrante: ela passava o dia vendendo leite e batatas pra que eu pudesse frequentar uma sala de aula para estudar Platão’. A história de pais e filhos que tiveram trajetórias educacionais radicalmente distintas é sempre atravessada de silêncios e esquivas, já que partes significativas de nosso cotidiano, nosso trabalho, nossas leituras, nossos gostos e nossos gastos são dificilmente traduzíveis para o universo de nossos pais. Um dia, ao explicar a meu pai que eu estudava no doutorado a política em torno da arquitetura e da habitação popular, ele ordenou sem rodeios: Fala pra eles que os pobres merece ter casas maiores”.

Bortoluci, ao buscar maneiras de escrever a história de sua família, endossa a realidade de que seus ancestrais, assim como escreveu Maria Stepanova, parecem ter sido meros hóspedes na morada da história. Em suas próprias palavras, afirma ter entendido desde cedo que cresceu em uma família assombrada pelo risco de pobreza extrema, inflação desenfreada e adoecimento precoce. Ele se acostumou a viver em um estado de incerteza, sujeito à urgência de contas prestes a vencer e aos limites estreitos do que podiam comer, conhecer e desejar.


José Henrique Bortoluci. Foto: Caio Oviedo/Divulgação

“Nunca conhecemos a fome, em alguns momentos graças à ajuda de vizinhos, amigos e parentes quando a renda da minha família se esgotou e as cobranças a meu pai estavam em seu auge. Lembro-me, contudo, de me acostumar com aquela espécie de ‘meia-fome que você sente com o cheiro de jantar vindo das casas das famílias mais abastadas’, como descreveu a poeta dinamarquesa Tove Ditlevsen em suas memórias. Uma meia-fome insistente que costumamos menosprezar, dando-lhe o nome enganoso de ‘vontade’.”

OS HOMENS DA ESTRADA
Didi trabalhou na lavoura ainda na infância e posteriormente se tornou mecânico. Na oficina, ouvindo motoristas contarem suas histórias sobre viagens, ele se apaixonou pelas aventuras que as estradas prometiam. “Atravessar as grandes distâncias do país em rodovias sem asfalto, repletas de atoleiros, porções de mata virgem, trechos em construção e outros obstáculos”, descreve o autor. “Que forma é essa de ver um país pelas suas margens de asfalto, pelos seus lugares de passagem? Ele entrou em poucas capitais do país, mesmo tendo margeado todas de caminhão. A geografia dos caminhoneiros é a das conexões, e seus ambientes são aqueles que nos relatos dos demais indivíduos são transitórios e sem importância.”

Bortoluci apresenta uma reflexão sobre a ausência de representações dos caminhoneiros na arte e na indústria cultural brasileira. Apesar de sua importância para a economia do país, esses trabalhadores não ocuparam um lugar de destaque nas várias imaginações de país que diferentes movimentos artísticos ou políticos formularam. O autor aponta que isso se deve às limitações das elites culturais brasileiras em elaborarem imagens do povo que dialoguem com a vida real dos trabalhadores, com seus universos culturais, suas estéticas e suas gramáticas políticas múltiplas.

O que é meu traz reflexões sobre a narrativa da vida de um homem comum, que habita uma classe laboral que muitas vezes é negligenciada e maltratada pela sociedade. O autor destaca a dificuldade em encontrar registros sobre esses trabalhadores, que não costumavam fotografar, escrever diários ou dar entrevistas, mas que fazem parte das verdadeiras categorias construtoras do mundo. “Sou desafiado pelo silêncio das fontes, o apagamento de registros daqueles (...) que escrevem suas histórias com mãos e pés, com palavras ditas e cantadas, com suor e a pele marcada.”

Sendo assim, a partir de quais estratégias se conta essa história? A narrativa proposta não é a de uma biografia convencional, com informações precisas sobre a vida de Didi, “a verdade dos fatos”, mas, sim, uma tentativa de trazer à luz algumas singularidades de suas vivências, alguns pormenores específicos. O texto nos convida a refletir sobre o esquecimento do trabalhador comum, sobre esse vazio acusatório, e o papel que a arte e a literatura podem assumir ao representar essas histórias.

Metodologicamente, Bortoluci remonta os caminhos de Barthes e seu conceito de biografema. Trata-se de um fragmento, um pequeno elemento ou detalhe da vida de um indivíduo que pode ser destacado do contexto geral da biografia e que, ao ser analisado, revela algo sobre a sua personalidade ou história. É uma espécie de “unidade mínima” da biografia que pode ser usada para criar diferentes narrativas sobre a vida da pessoa. Esses biografemas são vistos por Barthes como algo que ultrapassa a ideia de biografia tradicional, que tenta dar conta da totalidade de uma vida, e permitem uma leitura mais fragmentada e poética da história individual.

Nas palavras de Bortoluci: “procuro os construtores dos palácios e das muralhas, não os nobres e generais que os comandam; as cozinheiras, motoristas, jardineiros e faxineiras, e não os dignatários nos salões do poder”. O autor, ao falar sobre seu pai e outros caminhoneiros envolvidos em projetos como a construção da Transamazônica, funda novos léxicos a partir de perspectivas afetivas, que não se baseiam em projeções, mas em termos próprios. “Quando pergunto se ele se lembra de propagandas da ditadura sobre a Transamazônica, a ‘colonização’ da região Norte, sobre como os militares prometiam levar ‘progresso’ para essas regiões, sobre a guerrilha do Araguaia ou outros episódios de resistência ao regime, suas respostas são sempre breves: Disso eu não sei falar. Ou então: Não tô lembrado disso não.”

Isso acontece porque Didi não recebeu esses relatos críticos de uma maneira que pudesse compreender, enriquecer suas experiências e apresentar novas perspectivas para contar a história dele e a história do país. “Nas histórias do meu pai, não aparece nenhum Marighella, nenhum Golbery, e as batalhas que ele presenciou não aconteceram na Rua Maria Antônia ou na Cinelândia.” E é durante toda essa construção simbólica que o autor, de maneira epifânica, anuncia: “Só podemos falar nossa própria língua quando acertamos as contas com a língua de nossos pais”.

Ao mesmo tempo em que escreve sobre o mais íntimo de sua família, Bortoluci descreve como as grandes e pequenas rodovias da Amazônia são responsáveis pela derrubada e queima da maior floresta tropical do mundo, além de incentivar ações criminosas como garimpo ilegal, tráfico de drogas e minerais, caça e pesca predatórias, prostituição infantil e a brutalização de povos tradicionais. Os territórios indígenas, quilombos e reservas extrativistas são alvos frequentes da incursão de grileiros, madeireiros e mineradores, e a região é marcada por tragédias humanas e ambientais pouco valorizadas pelas elites das grandes cidades. A rodovia também provocou a destruição de culturas milenares de 29 povos indígenas, com massacres e expulsões. Há ainda relatos de assassinatos de líderes indígenas e de defensores de direitos humanos, como Dorothy Stang, morta em 2005, e Bruno Pereira e Dom Phillips, assassinados em junho de 2022.

“A triste ópera do progresso naquela Amazônia arrasada era encenada por motosserras e metralhadoras, grileiros e jagunços, soldados e jovens prostitutas, caminhoneiros e pequenos agricultores em busca de terra e trabalho, trabalhadores de empreiteiras, gente pobre de lá e de outros cantos, as várias faces de nossos condenados da terra a serviço dos ‘grandes negócios da nação’”, analisa. Embora a guerra seja frequentemente associada ao horror, para muitas sociedades, como a brasileira, outras formas de violência e opressão têm sido igualmente devastadoras. Bortoluci inclui a destruição ambiental na arqueologia dessas catástrofes, a qual também é causada por meio de rodovias, cercas, balas e pobreza.

Para o sociólogo, assim como a destruição da floresta, o câncer representa a materialização do dogma do crescimento a todo custo. “O câncer também segue uma lógica colonial. Ocupa territórios que não são dele, nutre-se da matéria viva e, se deixado à sua própria sorte, mata o hospedeiro e então morre junto dele. Para falar do câncer, procuramos palavras como crescimento, expansão, colonização, metáforas espaciais de uma doença que é a verdadeira epopeia da ocupação do território do corpo, um Fitzcarraldo biológico que todos nós somos capazes de produzir como parte de nosso próprio processo de crescimento, cura, regeneração celular, vida – e que é, ao mesmo tempo, a segunda causa de morte no mundo.”

O que é meu sinaliza que a enfermidade não se limita ao âmbito biológico, pois se torna também um domínio linguístico, repleto de palavras e expressões que se infiltram em nossa fala e experiências cotidianas. Para o autor, é “como se a palavra só pudesse surgir quando aceitássemos a farsa de que não somos intestinos, uretras, próstatas, urina, pele, pelos e merda, como se a civilização só passasse a existir quando escondemos essas dobras e matérias proibidas que nos põem de frente à nossa condição última de animais”.

Em suma, Bortoluci nos apresenta não apenas a história de seu pai, mas também nos convida a refletir sobre a experiência de migração de classe. Mostra-nos como, ao mudarmos de classe social, somos compelidos a nos afastar de nossas origens e das pessoas que nos moldaram. Ainda que, mesmo com a distância, há algo que sempre permanece. Para José Henrique, são as palavras de seu pai, que o acompanham desde a infância e o ajudam a lidar com a iminência da morte. Ele tateia que, com a partida do pai, também se encerraria a possibilidade de novas histórias contadas por ele. É nessa herança linguística que ele encontra uma espécie de patrimônio, uma riqueza que só eles puderam narrar.

FELIPE CORDEIRO, doutor em Letras pela UFMG e Universidade de Buenos Aires.

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