Crítica

Juan José Saer

São publicados simultaneamente, no Brasil, dois títulos do escritor argentino que se radicou na França, o romance 'O limoeiro real' e a coletânea de ensaios 'O conceito de ficção'

TEXTO Kelvin Falcão Klein

03 de Abril de 2023

O escritor Juan José Saer

O escritor Juan José Saer

Foto ULF ANDERSEN/AURIMAGES VIA AFP

[conteúdo na íntegra | ed. 268 | abril de 2023]

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I
O limoeiro real, romance que Juan José Saer publica em 1974, retorna frequentemente a uma espécie de refrão: “Amanhece, e já está com os olhos abertos”. Nascido em 1937, estreando na literatura em 1960 – com um livro de contos intitulado En la zona –, Saer sempre encarou o trabalho ficcional como um experimento com a linguagem. Suas obras, com frequência, chamam a atenção do leitor para a performance da língua, para o evento de construção do sentido que se dá sempre que o olhar encontra um significante na página. Por isso, o refrão, que dá ritmo à narração, reiterando sua dimensão artificial. Em entrevista dada a Guillermo Saavedra, em 2002, Saer conta que começou a escrever O limoeiro real em versos, mas que desistiu depois de duas páginas e meia.

Como escreve Beatriz Sarlo (Zona Saer), sua obra solicita a lentidão da escritura poética, sendo melhor “lê-lo em voz alta”, “como acontece com James Joyce”, dando o tempo necessário para que ocorra uma sorte de homeostase entre a consciência do leitor e a prosa de Saer. Além disso, continua Sarlo, Saer escreve “a partir da poesia”, como outros que escrevem “a partir da história” ou “a partir dos gêneros”; para Sarlo, o ponto de vista de Ninguém nada nunca, A volta completa, O enteado, As nuvens – em suma, da obra de Saer como um todo – é sustentado por um “fazer poético” marcado pela repetição, pela digressão e pelas antecipações, algo que se percebe desde En la zona até o romance O grande, de lançamento póstumo (Saer morreu em 11 de junho de 2005).

O limoeiro real – que agora chega ao Brasil pela 7Letras, com tradução de Lucas Lazzaretti – desliza com liberdade pelo tempo, pelo espaço, pela linguagem, à semelhança da canoa do protagonista Wenceslao, que o leva ao redor da ilha onde mora. Não há indicação de ano ou de região, não há sobrenomes, apenas nomes – breves e genéricos – como Rosa e Amelia, ou apelidos sugestivos, como Torto, Chacho e Negra. Pouco acontece, e essa redução dos elementos é acompanhada por uma ampliação das possibilidades de descrição: “No bosque de acácias os pássaros cantam e voam de árvore em árvore ou ao redor de uma mesma árvore, saindo bruscamente de entre os galhos para o ar e voltando a submergir neles com a mesma rapidez”.

A linguagem é densa e elástica, transformando uma cena corriqueira – melancias em uma carroça, a colheita dos limões, os pássaros nas árvores – em uma oportunidade de contemplação, de meditação. Wenceslao acorda cedo e prepara o chimarrão do lado de fora do casebre com sua mulher; relembra a morte do filho, evoca a primeira vez que pisou na ilha, ainda criança, com seu pai; projeta o que ainda deve fazer nesse mesmo dia: ir com a canoa até a casa dos parentes, matar e assar um cordeiro, celebrar o ano-novo. A vida de Wenceslao e sua família se organiza ao redor dessa entidade que dá título ao livro, o limoeiro real: “As pessoas da região diziam que era uma árvore milagrosa, porque dava frutos muito bons, tanto no inverno como no verão, e nunca secava”.

O limoeiro, contudo, é tanto entidade mágica como personagem do cotidiano; está ali para ser contemplado com respeito e, ao mesmo tempo, para dar flores e limões. Antes de pegar a canoa em direção à casa dos parentes, Wenceslao é instruído pela mulher a pegar alguns limões para a festa – ele vai sozinho, pois a mulher ainda está de luto pela morte do filho (ocorrida, no entanto, seis anos antes). “A árvore ultrapassa muito em altura a Wenceslao e viverá mais que ele”; apesar disso, “deposita com cuidado no interior da bolsa de palha os limões que vai arrancando, até que a enche.” Mais tarde, alguns limões serão cortados sobre a mesa; cada metade será espremida no interior de um copo de vinho, e essa mistura regará a tarde de conversa de Wenceslao, Rosa e Rogelio.

O apelido de Wenceslao é “Layo”, o mesmo nome do pai de Édipo. Ao contrário do mito grego, contudo, no qual o filho mata o pai quando chega à cidade de Tebas, em O limoeiro real o filho já está morto, o que transforma a relação entre o pai e a mãe: “Pela primeira vez em dez anos, Wenceslao não sabe como tratá-la. Já está muito velho para que possa voltar a aprender mais uma vez”. Em seu silêncio obstinado, a esposa continua costurando nas camisas do marido o tecido negro do luto; a impressão de Wenceslao é de que a mulher o culpa pela morte do filho e que, de certa forma, deseja uma transformação dos eventos: é Layo quem deveria ter morrido no lugar do filho. É altamente simbólico, portanto, que seja Layo o responsável pela morte do cordeiro, operação que funciona como uma etapa do luto: “O animal começa a se sacudir com violência, e então Wenceslao puxa com ainda mais violência, meio inclinado na direção que dá ao seu movimento, o cabo da faca, degolando”.

O andamento do dia é cadenciado pela presença e pelo uso de alguns objetos: a bomba d’água no quintal, o facão que ajuda a clarear o caminho, os remos que servem à canoa, o canivete que corta os limões, a faca que degola o cordeiro para o jantar, o chapéu de palha que tomba sobre os olhos na hora do sono da tarde e assim por diante. Entre uma interação humana e outra, entre um deslocamento e outro, a presença constante dos animais: os cachorros da casa, que circulam pelo terreno, vasculham, roendo os ossos; a nuvem de mosquitos que surge no fim da tarde; a onça-pintada que, no escuro, entra em casa; os incontáveis peixes, pássaros e borboletas; o cavalo sem ferradura, levado ao extremo durante o transporte das melancias até a feira da cidade.

Wenceslao não fala muito, mas transita pelo espaço, sentindo e vendo: “Seu corpo está metido na água como uma pá abrindo um buraco no qual não há espaço senão para um só”. Existe esse ponto de chegada muito bem determinado em direção ao qual a narrativa se projeta – a última noite do ano, que será celebrada com um churrasco –, o que dá certa tranquilidade ao leitor; a progressão, no entanto, é errática, instável e, justamente por isso, esteticamente instigante. Mas Saer sabe que a superfície homogênea do cotidiano é também muito sedutora – quando vai embora da festa, Wenceslao leva “um prato com um pedaço de cordeiro” para a mulher e “um pacote de ossos para os cães”, Negro e Chiquito.

II
Como o romance de Saer se posiciona em relação a outros do mesmo período? Em 1963, Julio Cortázar lança O jogo da amarelinha, mesmo ano de lançamento do primeiro romance de Mario Vargas Llosa, A cidade e os cães. Em 1967, é a vez de Gabriel García Márquez publicar Cem anos de solidão – lançado pela editora Sudamericana de Buenos Aires, a mesma de O jogo da amarelinha (com o mesmo editor: Paco Porrúa). No mesmo ano, Ricardo Piglia lança seu primeiro livro, uma coletânea de contos, Jaulario (que depois seria reformulado como o mais conhecido A invasão).

No ano seguinte, outro romance memorável é lançado: A traição de Rita Hayworth, estreia de Manuel Puig na literatura. Em 1969, Saer lança seu terceiro romance, Cicatrizes. Em 1970, o patriarca Jorge Luis Borges publica um novo livro de contos, O informe de Brodie. Eu o supremo, de Augusto Roa Bastos, é lançado em 1974 – é para esse amigo que Saer dedica O limoeiro real (a edição brasileira, em um desrespeitoso lapso, grafa o nome do homenageado Augzusto Roa Bastos).

Saer publica O limoeiro real em 1974, pela Editora Planeta, da Espanha. Como seus livros anteriores, teve escassa repercussão crítica, algo que se explica a partir da consideração de alguns fatores: Saer mora na França desde 1968, o que inviabiliza o corpo a corpo com críticos, colegas, editoras, publicações e instituições; essa distância geográfica é combinada com uma sorte de distância “existencial”, já que Saer nunca se sentiu confortável na construção de redes de interesse e de “capital simbólico”; por fim, é preciso enfatizar que Saer, de forma deliberada, construía sua obra literária por uma via alternativa, com o consciente intuito de escapar das modas e das correntes em voga (daí sua indiferença com relação aos autores do boom latino-americano, por exemplo). Apesar disso, alguns críticos atentos já identificam, nesses primeiros anos, a seriedade e a envergadura do projeto de Saer, como é o caso de María Teresa Gramuglio e Carlos Altamirano.

Desde seu primeiro conto até seu último romance – passando por todas as anotações que permaneceram inéditas e que foram publicadas, em espanhol, pela Seix Barral, nos quatro volumes de Borradores inéditos –, Saer estava envolvido na criação de um universo, de um sistema. Dentro desse território, temas, personagens e eventos retornam, às vezes depois de anos de ausência – como acontece na Santa María de Juan Carlos Onetti e no condado de Yoknapatawpha em William Faulkner, dois escritores admirados por Saer.

O limoeiro real está coordenado com esse pano de fundo geral, reiterando as cenas dos encontros nos armazéns e nos botequins, das rodas de conversa familiar durante um churrasco, das elucubrações silenciosas de protagonistas envolvidos em dilemas que se revelam com dificuldade, mediante muita contemplação e reflexão. Gravitando ao redor dessas cenas, estão os temas abstratos caros à poética de Saer: o tempo, a solidão, a consciência e a linguagem.

 
Ambos os livros foram editados pela 7Letras, com tradução de Lucas Lazzaretti.
Fotos: Reprodução

O limoeiro real é um romance que se passa inteiramente em um único dia, um 31 de dezembro – e também, nisso, Saer carrega precursores de peso, como o Ulisses, de James Joyce (que se passa em 16 de junho de 1904), Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf (13 de junho de 1923), ou Debaixo do vulcão, de Malcolm Lowry (o Dia dos Mortos em novembro de 1939). Essa escolha é, sem dúvida, deliberada, e se apresenta como um dos modos que Saer tem de declarar seu comprometimento com o legado das vanguardas (um comprometimento que é tanto uma continuidade quanto uma implosão das regras modernistas), confrontando esse legado, ao mesmo tempo, com a leitura de filósofos como Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty.

Além disso, Saer leva ao interior da Argentina (especialmente a cidade de Santa Fé e suas cercanias) um conjunto de técnicas narrativas compartilhadas com os nomes do nouveau roman, o “novo romance francês”, como Michel Butor, Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute e Claude Simon. Um exemplo dessa apropriação, retirado de O limoeiro real: “Detrás do sorriso estão as zonas cheias de golpes intermitentes que martelam e lampejam, os fragmentos podres de realidade que se desbotam e deslavam, empalidecendo cada vez mais e se tornando exangues, a lua móvel e tilintante errando em uma região de pântanos aos quais de súbito ela ilumina, fugaz e fragmentária”.

Mas é preciso olhar também para a vizinhança imediata, sobretudo para um escritor como Juan L. Ortiz, que Saer qualificou como “o maior poeta argentino do século XX” (Ortiz nasceu em 11 de junho de 1896; Saer morreu em 11 de junho de 2005).

Originário de Puerto Ruiz – distante cerca de 300 quilômetros de Santa Fé –, Ortiz construiu uma obra regada pelo simbolismo francês e pela poesia oriental, escrevendo poemas minuciosos com versos extensos, que imprimia em edições artesanais, cuidadas por ele até os últimos detalhes. Seu tema principal era a vida da região, as crianças, os pescadores e as viúvas, mas também os ventos, o rio, as árvores, as metamorfoses (materiais e espirituais) de sua província. Depois de ler os poemas de Ortiz, um jovem Saer, em companhia de alguns amigos, procurou o poeta em sua casa, estabelecendo uma relação que durou décadas, até a morte do primeiro, em 1978. Beatriz Sarlo, no livro já citado, postula que “a proximidade com Juan L. é talvez o dado biográfico mais importante da formação literária de Saer”.

III
Com relação às filiações literárias de Saer, é instrutiva a leitura do volume que faz par com O limoeiro real, a coletânea de ensaios O conceito de ficção (mesma editora e mesmo tradutor). São 35 textos e uma entrevista, englobando um período da produção de Saer que vai de 1965 a 1996. Como ele escreve na “Explicação” que abre o livro: “as coisas que pensava há trinta anos sigo pensando-as agora, mas, postas todas juntas, não constituem uma teoria da narrativa de ficção, antes uma série de normas pessoais para ajudar-me a escrever alguma narração que justifique tantas páginas borradas”. Em seus comentários sobre literatura, aparecem os nomes mais diversos, desde Cervantes, Shakespeare, Balzac e Flaubert, passando por Henry James, Cesare Pavese e Raymond Chandler.

Um dos textos, de 1989, intitulado simplesmente Juan, é dedicado a Juan L. Ortiz; sua obra tem uma autonomia rara, escreve Saer, apresentando um “idioma dentro do idioma”, um “cosmos dentro do cosmos”. Essa autonomia não estava apenas na obra, mas também em seu estilo de vida, em sua “moral”, sua preparação interna ao trabalho poético. A aparente fragilidade física de Ortiz, escreve Saer, era uma pista falsa que precedia a revelação da firmeza de suas convicções, de seu comprometimento com aqueles que estavam próximos: “Essa força traduzia-se também em uma capacidade de trabalho que seus amigos, em geral muito mais jovens que ele, cineastas, pintores, escritores, músicos, militantes políticos e sindicais, distávamos muito de possuir, e que com os anos foi concentrando-se no exercício de uma escrita poética na qual aumentavam a sutileza e a complexidade”.

A leitura dos ensaios de um grande escritor solicita um regime dúplice de atenção: o primeiro nível, mais imediato, diz respeito à fruição dos argumentos, aos elementos que são privilegiados, na análise, em outros textos e autores; um nível suplementar, um pouco mais esquivo, diz respeito às pistas que o grande escritor coloca em seus ensaios acerca da própria poética, ou seja, os momentos em que, ao comentar a obra alheia, está indicando – sub-repticiamente – algumas portas de entrada para seu próprio universo. Encontramos essa dinâmica nos escritos críticos de uma série de autores, desde Alan Pauls (Temas lentos) e Ricardo Piglia (O último leitor), para ficar na mesma Argentina de Saer, até nomes como Milan Kundera (A arte do romance, A cortina), J. M. Coetzee (Mecanismos internos), W. G. Sebald (A descrição da infelicidade) ou Danilo Kiš (Homo Poeticus).

Os ensaios de Saer na coletânea O conceito de ficção estão repletos de fórmulas críticas que se aplicam, simultaneamente, aos textos alheios que discute e à obra narrativa que ele próprio constrói. Quando escreve sobre A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, por exemplo, Saer declara que “uma literatura há de ser julgada sempre não com critérios de realidade, mas com critérios de verossimilitude”, algo que ecoa, também, no ensaio sobre H. P. Lovecraft, no qual escreve que “a literatura entrelaça em uma união férrea o imaginário e o existente; transforma o existente em imaginário e o imaginário em existente”; quando valoriza Roberto Arlt por “aceitar o mundo” em sua “diversidade e ameaça”, não tentando dar a ele “a forma de nossos fantasmas”; ou quando valoriza Antonio Di Benedetto por sua batalha contra o “insosso conformismo” e por sua “lucidez sem concessões”, Saer também está indicando, sutilmente, elementos reconhecíveis em sua trajetória.

Saer foi um pensador do romance, traduzido como forma e como procedimento de moldagem na massa amorfa da linguagem. Em vários dos ensaios, Saer testa filiações e percursos, aproximando poéticas e projetos, construindo linhas do tempo. Em Notas sobre o Nouveau Roman, por exemplo, fala do salto qualitativo que leva o romance do “interior ao exterior”, especialmente nos Estados Unidos e naqueles que trabalharam caminhos “abertos por Henry James”. É dessa exterioridade que descende, argumenta Saer, a primeira parte da obra de Alain Robbe-Grillet, embora seja reconhecível também em figuras um pouco anteriores, como Italo Svevo, Marcel Proust e Franz Kafka. No mesmo parágrafo, Saer chama a atenção do leitor para aqueles que denomina “os narradores mais importantes do século XX”: Cesare Pavese, William Faulkner, John dos Passos e Carlo Emilio Gadda.

Os elementos que motivam essas escolhas, no entanto, não são apresentados – ao menos não de forma direta, a partir da discussão de cada um dos eleitos (Faulkner é aprofundado em outros momentos; Gadda só aparece nesse trecho). É importante notar que Saer fala dos narradores “mais importantes”, e não dos “melhores”. No ensaio sobre Lovecraft, por exemplo, Saer escreve, em nota, que “sua obra não é literariamente perfeita, mas mostra perfeitamente a estrutura da literatura fantástica”. Já no ensaio dedicado a Raymond Chandler, Saer escreve que “o menor dos escritores americanos da geração perdida”, ou seja, nomes como Ernest Hemingway, Gertrude Stein ou Sherwood Anderson, “é sem dúvida maior que Chandler, mas nenhum autor de romances policiais, nem sequer Hammett, nem Cain, é superior a ele”. Em A literatura e as novas linguagens, Saer ressalta que nem todos os escritores citados no ensaio “são, ao meu juízo, bons escritores”; certas interações culturais, contudo, são mais nítidas “em obras menores”, que revelam “certas tendências de época”.

Ou seja, em termos críticos, essa distinção entre “importantes” e “melhores” é relevante para Saer e permeia toda a extensão de seus ensaios. Muitas vezes, quando defrontado com uma questão específica – a construção dos personagens, a relação entre texto e contexto, entre literatura e sociologia, entre “real” e “fantástico” –, Saer privilegia a análise de textos úteis para a questão, e não relevantes apenas pelo ponto de vista de um critério prévio (neutro ou “ahistórico”) de qualidade. Esse é um ponto delicado, já que Saer não se exime de juízos diretos e peremptórios – quando escreve sobre Borges, por exemplo, diz que O fazedor foi seu “último grande livro até agora” (1971), seguido “por duas obras cinzentas, quase inexistentes”: os poemas de Elogio da sombra e os contos de O informe de Brodie –, ao mesmo tempo em que apresenta uma refinada consciência da pertinência de certos movimentos críticos (como este, de diferenciar entre “importantes” e “melhores”).

Na última peça da coletânea, por fim, Saer é levado a falar de si mesmo. Isso ocorre dentro de uma entrevista feita por Gérard de Cortanze, tradutor de alguns de seus livros ao francês, que traz à conversa justamente O limoeiro real (que aparece na França, em 1980, como Les grands paradis). “Há tantos realismos quanto sujeitos”, diz Saer durante seu autocomentário na entrevista, ecoando uma série de momentos de O conceito de ficção. “Pensando bem, hoje, 15 anos depois”, continua Saer, “me dou conta que a palavra real no título do livro é uma espécie de provocação”, não a representação de “uma realidade particular”, mas “um testemunho de minha percepção do mundo, com todos os erros, as obscuridades, as contradições e projeções fantasmáticas de todo indivíduo tomado separadamente”.

É quase um afago no leitor percorrer toda a extensão de O conceito de ficção e encontrar, ao final, palavras de Saer sobre O limoeiro real, de onde toda a jornada começou. Não são palavras descuidadas, apressadas, como costuma acontecer, com frequência, nas entrevistas. Pelo contrário, Saer, de fato, se esforça para oferecer um comentário digno de nota com relação à própria obra, aproximando-a, por exemplo, da composição musical: O limoeiro real “busca se desprender dos acontecimentos para se resolver pouco a pouco em forma pura”, dentro da qual “o ritmo da prosa, as repetições, a aparição dos temas distintos, seu desenvolvimento e entrelaçamento são de natureza musical”. O fim do percurso só pode levar a um recomeço, a uma releitura – para melhor observar o ritmo da prosa de Saer e sua dimensão profundamente empática, já que, como ele próprio registra na entrevista, a literatura é uma operação na qual “o vivido passa, através do tempo, de um corpo a outro”.

KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de Wilcock, ficção e arquivo (2018).

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