FOTO LÉO CALDAS
01 de Maio de 2013
Vanderson, 11, e Vanessa, 13, são alunos da sociedade e aguardam novo apoio do CPM
Foto Léo Caldas
[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 149 | maio 2013]
Do mirante do Morro do Redentor, a cerca de 700m de altura, Limoeiro se espraia com o Capibaribe a delinear sua paisagem típica de cidade do interior: a igreja, fazendas desativadas de coronéis já falecidos, a prefeitura, as estações de rádio de outrora transformadas em espaços culturais, a praça. Um morador desse município do Agreste de Pernambuco, a 77km do Recife, é capaz de apontar outro prédio que desperta o carinho dos limoeirenses.
De fachada azul, com três janelas superiores desgastadas e uma porta precedida por uma grade de ferro, a casa de número 189 da Rua Dr. José Cordeiro, no centro, é a sede da Sociedade Musical 25 de Setembro, a “instituição mais antiga de Limoeiro, só perdendo para a própria cidade”, avisa Marinalva de Souza Mateus, a Nalva, a tesoureira, gerente e administradora da banda que todos tratam por “25”. Seu marido é Pedro Mateus de Lucena, o maestro Pepê, regente e atual presidente da escola de música “mais querida de todo o interior”, como dizem os próprios alunos e outros que por lá já passaram.
A 25 de Setembro foi fundada em 1936 por dissidentes da Banda Independência. Pepê nasceu em 1962, filho de José Mateus, que foi seu professor e de quem herdou as afinidades musicais. Aos 12 anos, mudou-se para a capital pernambucana para estudar no Conservatório Pernambucano de Música – CPM. Quatro temporadas de “cara nos livros” de teoria e solfejo lhe renderam galhardia no trompete. Ele saiu pela estrada a tocar, dar aulas em Cumaru e João Alfredo, assumindo a tarefa de educar alunos com deficiência auditiva em uma escola de Limoeiro. Em 1996, quando a 25 de Setembro completava seis décadas de existência e uma década desativada, assumiu a banda. “Saímos do trabalho que fazíamos com 60 crianças, em um projeto da infância missionária no Alto José Bonifácio, e viemos cuidar da banda”, conta a esposa, Nalva.
Por “cuidar” compreenda-se fazer tudo. “Aqui não teve pedreiro, fui eu quem botou reboco nessas paredes. Subi o telhado, ajeitei o piso, arranjei os instrumentos, tirando dinheiro não sei de onde… Na hora de trazer os meninos, eu saía de bicicleta, tangendo 50 garotos, todos de bicicleta, para não perder a aula, que é gratuita”, evoca o maestro.
Ressurgiu, assim, a 25 de Setembro em seu naipe completo: flauta transversa, flautim, requinta, clarinete, sax alto, sax tenor, sax barítono, trompa, trompete, trombone, bombardino, tuba, bombo, surdo, prato e caixa. Faltava algo, não para a constituição oficial desde a gênese da banda, e, sim, para as aspirações do maestro. “Sempre fui ligado às cordas, queria modernizar a banda, trazer os violinos, pensar em arranjos para os meninos tocarem com sopros e cordas”, pontua Pepê.
Em 2009, o projeto Orquestrando Pernambuco, criado pelo Conservatório Pernambucano de Música, com o intuito de revelar e formar músicos de sinfônica, lançou-se para o interior a partir de Limoeiro e o maestro, enfim, pôde reinventar a 25.
Toda a estrutura educativa e administrativa é de responsabilidade
do maestro Pepê e da esposa Nalva
Durante três anos, a agenda da banda – cujas aulas vão de segunda a sexta, a partir das 19h; segundas e quartas, alunos novatos, terças e quintas, os veteranos – incorporou o sábado pela manhã para as aulas de violino e violoncelo. Os professores vinham do Recife e, na parceria firmada entre a instituição e o CPM, as refeições, o combustível e acomodação, quando preciso, eram de responsabilidade da 25 de Setembro. “Foi no dia 13 de junho de 2009 que começamos, lembro bem porque foi um dia histórico para todos nós”, Pepê fala, enquanto anda pelos 270m² da casa de telha brasilit sem forro, com cadeiras de plástico e utensílios característicos de um local de ensaios, que abriga os objetos, as fotografias e a memória da 25 de Setembro.
“Pedi viola e contrabaixo também, mas não vieram”, recorda. Para garantir os instrumentos, além dos que vinham com a chancela do CPM, tudo era válido. Nalva recorreu a políticos e entidades comerciais, angariou doações da Orquestra Criança Cidadã, pediu ajuda a quem conhecia e a quem não conhecia. Já obtivera êxito ao inscrever projetos de aquisição de instrumentos de sopros em editais da Funarte e do Banco do Nordeste do Brasil. Logo, 20 violinos e cinco violoncelos estavam na sede da 25.
“Tem que criar um adjetivo para a 25”, propõe Aldemir Freire, 30, saxofonista que passou 10 anos na trupe e hoje dá aulas a jovens de 15 a 17 anos em situação de risco. “Quando eu era aluno, era muito menino para pouco instrumento, então tinha hora que todo mundo dividia sax, trompete, flauta e trombone. Vi o mesmo quando começaram as aulas com violinos e violoncelos, mas isso não impediu o maestro de seguir em frente e ainda bolar arranjos para sopros e cordas”, elogia o pupilo. Desde o início, Pepê colocou Beethoven e Ravel para duelar com Luiz Gonzaga, Roberto Carlos e Frank Sinatra, e incutiu no imaginário musical das crianças e adolescentes a sonoridade delicada dos violinos e cellos. Criou o embrião de algo maior.
BALÉ DA MÚSICA
“Quando você junta as cordas friccionadas à estrutura de uma banda filarmônica, tem o arcabouço instrumental da orquestra sinfônica”, ensina Sidor Hulak, gestor-geral do Conservatório Pernambucano de Música, formado em Música e Administração pela UFPE e com curso na Berklee College of Music, de Boston (EUA). O Orquestrando Pernambuco, acrescenta, despontou em 2007. No ano seguinte, veio o trabalho nos núcleos: Brasília Teimosa, Coelhos, Alto do Céu e Santo Amaro. O método adotado é o Suzuki, criado pelo violinista japonês Shinichi Suzuki, na década de 1940.
“O Suzuki funciona como mola-mestra, mas não o usamos 100%, até porque, depois, o aprendizado é mais intenso e buscamos sempre o máximo. O desafio é o Conservatório dialogar com as comunidades. Já participei de algumas reuniões para conversar com pais e mães. Tem pai com preconceito com o filho que escolhe o violino, o ‘balé da música’. Mas depois eles entendem, vão às aulas e ficam escutando os filhos. A música entra num ambiente inóspito, dividido geralmente com alguma outra atividade, como liga de dominó ou distribuição de leite, e muda aquela realidade”, observa Sidor Hulak.
Na 25 de Setembro, era assim também. Jocelina Silva percorria 2km, de bicicleta, de moto ou a pé, para trazer Vanessa, 13, e Vanderson, 11, para as aulas. Na primeira vez em que apareceu na casa azul, chovia muito, e Nalva, ao atender o chamado na porta, espantou-se com a cena: “Corre, Pedro, que a mulher está aqui toda molhada, com uma menina no braço e um outro chorando”. Valeska, hoje com seis, não tinha nem três anos, quando seu irmão, que adora ajudar os pais na roça e pastorear cabras, chegou em casa com a notícia de que queria aprender sax. Um amigo tinha lhe dito isso e ele, em atitude normal na infância, quis imitá-lo. A mãe veio ter com o maestro. “Mostrei os instrumentos para os meninos, fui mostrando como é que se tocava, como guardava”, relembra Pepê. Vanessa escolheu o violino e com ele se agarrou; Vanderson, ao receber a notícia de que seu amigo tinha esquecido o sax para ficar com o violino, fez o mesmo. Ficou com um de tamanho 1/4 – a gradação crescente é 1/16, 1/8, 1/4, 1/2, 3/4 e 4/4, sendo o último o tamanho ideal para qualquer instrumentista a partir dos 12 anos. Meses depois, o amigo largou as aulas e os dois irmãos persistiram. “Meu sonho era tocar violino”, confessa Vanessa. “Acho que ela via nos comerciais na TV, porque lá em casa não entrava esse tipo de música”, diz a mãe.
Nos encontros, o maestro Pepê ensina todos os procedimentos em torno da erudita
Vanessa passou seis meses na aula teórica e chegou a pensar em desistir, quando a prática lhe feriu as pontas dos dedos. Pegou o costume. Ansiava pelos encontros dos sábados, porque a aula seria completa. Ao longo da semana, com o maestro Pepê, eles passavam as lições dos professores do CPM.
Mozart é o compositor de quem ela, que caça partituras na internet, mais gosta. Rivalidade com Vanderson? Não. Ela quer aprender violino e ser médica, ele quer tocar todas as músicas e ser veterinário. Já a mãe, durante os três anos de aulas, perdeu seus dois assistentes na barraca em que, de quarta a sábado, vende lanches na frente da penitenciária Dr. Ênio Pessoa Guerra.
Não achou ruim. “Cresci em cima de um cavalo e ajudando meu pai na roça. Vanderson é assim também, só quer saber de estar no meio das cabras, até um jumento arranjou para criar. Hoje, eu e meu marido achamos bonito ver os dois ensaiando em casa, tirando som do violino e se preocupando se os vizinhos vão ouvir. Fico pensando que eu tinha o sonho de estudar, fazer faculdade, mas já que não estudei, vou deixar eles escolherem”, afirma Jocelina.
É por isso que ela lamenta a interrupção das aulas. Em 2012, por ocasião do fim do contrato com os professores temporários, o Orquestrando Pernambuco cessou sua ligação com a 25 de Setembro, prostrando Vanessa e Vanderson e deixando o maestro Pepê e a esposa Nalva reféns da própria impotência. “De todos os outros instrumentos ele pode dar a aula, mas desses não”, lamenta a administradora. “Já pedimos por tudo que mandassem outros professores para cá. Chega dá tristeza ver os meninos com os instrumentos parados em casa”, murmura o maestro.
FÃ DO CELLO
Marcelo Ribeiro, 11, mora numa modesta casa de dois quartos no Bairro Frei Estevão. Na sala, próximo à máquina de costuras de sua mãe, Ednalva, o violoncelo recostado na parede. “Ele só fez seis meses de aula prática, depois de passar um ano na teoria. Aí ficou sem professor. O maestro já ofereceu o clarinete para Marcelo não ficar parado, mas quem disse que ele quer?”, comenta Ednalva. Introspectivo, Marcelo conta, em voz baixa, que gosta de Legião Urbana e outras bandas de rock por causa dos irmãos mais velhos, Rafael e Gabriel. Explica que existem dois tipos de violoncelo – 3/4 e 4/4 – de acordo com o tamanho de quem o manuseia (o seu já é um 4/4).
A mãe e o maestro insistem que o cello é “melindroso”, requer cuidados mil, atenção exagerada. Marcelo não desiste e cobre o instrumento de afeto, mais até do que destina à cadela Nega. Tanto, que se desespera quando vai ensaiar em casa e o cello – “deve ser por causa da umidade”, informa Pepê – soa meio rouco, preguiçoso.
O ensaio de gala reúne, na sede da instituição, alunos dos mais variados instrumentos
Partituras xerocadas dão pista de que ele leva o assunto a sério. “Quero ser músico, tocar numa grande orquestra”, sussurra. Do seu celular, mostra a música que mais quer aprender: As quatro estações, de Vivaldi. “E aqueles forrós de que tu gostas?”, provoca Ednalva. “Tá doida, é?”, rebate o filho. Em vez das variações forrozísticas tão famosas no Nordeste, o aparelho de DVD do quarto dela, onde Marcelo passa boa parte das tardes pós-colégio, contém um disco do maestro e violinista holandês André Rieu.
“O Orquestrando Pernambuco parou em Limoeiro porque os professores eram temporários. A parada foi necessária para fazer o novo concurso, e os que estão chegando devem entrar ainda agora em maio, para sustentar o projeto. Também queremos levar os outros instrumentos que ficaram só na demanda, mas isso esbarra em uma dificuldade grande, que é identificar, no próprio município, alguns músicos que possam replicar o conhecimento e seguir como monitores”, situa o gestor geral do Conservatório Pernambucano de Música, Sidor Hulak.
Em tese, o Orquestrando teria quatro módulos in loco, com duração de cerca de dois anos (tempo que varia, segundo Sidor Hulak, conforme as especificidades de cada comunidade atendida ou, no caso de Limoeiro, eventuais paradas). A segunda fase de estudos é o curso técnico. A terceira, o ingresso na Orquestra Sinfônica Jovem.
Desde 2008, 39 alunos passaram pelo crivo do projeto: dois deles estão na OSJ; um, no curso técnico. Nos últimos três anos, cerca de R$ 2 milhões foram investidos na democratização do acesso à música erudita, incluindo a OSJ em si, a circulação da orquestra pelo interior e o Orquestrando Pernambuco. São gastos referentes a cachês, compra de instrumentos e equipamentos e custeio de pessoal.
Maestro Pepê, Nalva e seus alunos espelham um novo desenho da música erudita em Pernambuco. Rodrigo Lopes, 19, o flautista que chega atrasado ao ensaio de gala na Sociedade Musical 25 de Setembro, estuda no Conservatório, depois de quase uma década vindo de Carpina a Limoeiro apenas para não estancar. “Dormia lá em casa para não perder a aula, foram nove anos nessa pisada”, conta Pepê. Seu caso não é mais uma insólita exceção, mas a consequência direta de investimentos, por parte do Estado, e, principalmente, de alunos e professores perseverantes, numa maior afluência entre contextos distintos de fruição e ensino musicais.
“Nos últimos 10 anos, a música erudita tem encontrado seus caminhos, com o Conservatório, a Orquestra Sinfônica Jovem, o Virtuosi, a Orquestra Criança Cidadã, para quem faz e quem ouve. A democratização do acesso é levar às pessoas o som da música sinfônica, levar uma canção de Luiz Gonzaga orquestrada com violinos, ou seja, propor uma legenda para esse sabor estranho. O CPM tem buscado, ao formar músicos e plateia, que eles se apropriem da cultura erudita”, condensa Sidor Hulak. O Orquestrando Pernambuco, ele garante, “tem mais duas perspectivas já acordadas: Surubim, na Associação Capiba, e Carnaíba, no conservatório local”. Que seja presto, prestíssimo.
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