Entrevista

“Sempre a poesia é o norte”

O músico pernambucano Siba, que atualmente vive em São Paulo, prepara-se para lançar seu terceiro disco solo e fala da poesia como elemento norteador dos seus trabalhos

TEXTO Paula Passos

06 de Maio de 2019

O músico Siba Veloso

O músico Siba Veloso

Foto Fernando Martins

[conteúdo na íntegra | ed. 221 | maio de 2019]

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Formiga come do que carrega.” Nos anos 1980, Sérgio Roberto Veloso de Oliveira, já apelidado de Siba, ouviu essa frase de Baracho, mestre de maracatu da Zona da Mata Norte de Pernambuco, em um curta exibido pela TV Viva. “Aquilo foi muito definidor durante meu conflito para escolher uma profissão. Baracho quis dizer que o poeta tinha que viver da poesia. Eu já sabia que queria ser músico ou artista. Mas, depois daquilo, despertei para a poesia, que é central para mim. Percebi a importância de conseguir uma inteireza entre o que você vive e o que você faz”, contou Siba, em entrevista concedida à revista Continente, em janeiro deste ano, em São Paulo.

De quando ouviu a frase até hoje, muito se passou. O cantor integrou por 10 anos o grupo Mestre Ambrósio; foi morar em Nazaré da Mata (PE), montou a Fuloresta, banda formada por músicos da região, com quem lançou três álbuns e um EP e se tornou mestre de maracatu. Em 2012, lançou o primeiro disco solo, Avante, que marca sua volta a São Paulo, o reencontro com a guitarra e consigo. Três anos mais tarde, foi a vez do De baile solto (2015), álbum que busca a retomada de uma rítmica, presente na Fuloresta, através da instrumentação do Avante. No De baile solto, Siba produziu, compôs, cantou e tocou. Diz que não deu conta de todas as funções e, agora, trabalha em um novo álbum, Coruja muda, que conta com as participações, entre outros, de Chico César, Alessandra Leão, Mestre Anderson Miguel, Renata Rosa, Arto Lindsay e Lulinha Alencar.

Siba não gosta de rotular seu trabalho, por considerar que o som que produz está entre diversos gêneros musicais, o que lhe permite alcançar mais pessoas. Também não se agrada quando utilizam termos que vinculam o maracatu a apenas um lugar do passado, nem quando o classificam como agente modernizador dessa cultura. A única definição possível para ele, talvez, seja a de poeta. Siba é. No presente. Durante seu processo criativo, a necessidade do momento é que dita o depois. Nesta entrevista, atualizada em março e abril (quando soubemos o título do novo disco) por telefone, conversamos sobre a permanência da poesia com métrica e rima como norte de seu trabalho, sobre política, carnaval, seus 50 anos e, claro, o Coruja muda.

CONTINENTE Até junho ou julho, você pretende lançar Coruja muda, que vem depois do De baile solto (2015). O que já está encaminhado?
SIBA VELOSO Ainda estamos em um processo de muitas mudanças, mas existe uma definição musical que é mais fácil de falar. É um disco que eu tento, talvez, elaborar, de modo mais sólido e limpo, a busca rítmica do De baile solto, que tem muito a ver com a retomada daquilo que estava presente na Fuloresta e que não estava tão claro no Avante (2012). O De baile solto é o disco que, musicalmente, marca essa busca. E, depois de quase quatro anos de estrada, essa busca musical vai virando uma coisa mais elaborada, decupada, definida, mais arejada.

CONTINENTE Ele começou a ser pensado depois do De baile solto?
SIBA VELOSO O processo criativo de um disco começa no final do anterior, né? Quando acabou o De baile solto, eu fui para estrada e fui guardando ideias, levantando fragmentos, olhando para textos antigos que, talvez, sirvam agora. A gente começou a gravar em 2017 e viu que precisava de um tempo que eu não estava tendo, por questões pessoais, questões políticas, de energia, de 2017 para 2018. Tinha o disco de Mestre Anderson Miguel também pelo meio do caminho, que eu queria muito fazer. Achei que conseguiria fazer o meu e o dele ao mesmo tempo, mas não consegui. Fiz o dele e, de 2018 para cá, retomei o meu.

CONTINENTE Ele fala sobre o quê?
SIBA VELOSO O disco não tem um tema claro. Não é conceitual, mas é costurado quase todo com imagens de animais, em que eles tomam a ação do que acontece. É sobre esse lugar indefinido onde o homem não sabe onde é homem ou animal e quando deixa de ser animal e passa a ser homem. Talvez seja um lugar onde eu quis chegar de diversas maneiras no texto do disco. No começo, não foi intencional, mas depois percebi e achei curiosa a repetição dessas imagens; acabou se tornando intencional e alimentando o processo.

CONTINENTE Poucos dias antes do Carnaval você lançou o single Barato pesado, que teve uma boa repercussão não apenas pelo som, mas também pelos figurinos. Essa música vai fazer parte do disco novo? De onde vem a concepção estética dos figurinos?
SIBA VELOSO Vai sim. Barato pesado é uma música central do disco, assim como uma frase dela: “Soltei o meu bicho trancado”. Não sabemos se ela vai entrar numa outra versão, porque o disco ainda está em processo. Em relação ao figurino: ele é assinado por Marcelo Sobrinho. É uma ideia minha e dele, de brincar com a militarização do momento. Ao mesmo tempo tem uma white face, uma inversão do black face, tão presente na nossa cultura popular e, mesmo assim, tão ressignificado já, mas que a gente quis usar. E a música também traz uma ideia de sublimação pela festa, pela alegria.

CONTINENTE Você já comentou que, no De baile solto, existiam partes “meio estranhas” que se davam, talvez, por uma falta de método, de organização, do que você estava fazendo. Nesse novo trabalho, você tenta evitar essas partes “estranhas”?
SIBA VELOSO De fato, De baile solto foi um disco de produção caótica. Eu que produzi e tentei dar conta dos muitos elementos no processo. Quando produzo sozinho, dou conta do músico, do poeta, do cantor, do produtor. Embora pareça que dei conta de todos esses elementos no disco, não consegui. Ficaram faltando partes em todas essas funções. Naquele momento, eu quis fazer assim. Não me arrependo nem lamento, porque era minha realidade.

CONTINENTE E o que vem de diferente agora?
SIBA VELOSO Naquela época, havia uma banda que estava se formando. Hoje, tenho uma banda muito madura, que tem tocado há um tempo, que vai participando de todo processo do disco. Tem o Mestre Nico (voz e percussão) que já vem, tem o Lello Bezerra, que vem com a segunda guitarra, que faz um baixo, cobrindo as regiões mais graves. E isso é possível porque a guitarra tem muita possibilidade de interferência no seu som natural e pode soar com muita coisa que está distante.

CONTINENTE Antes você usava a tuba para substituir o baixo…
SIBA VELOSO A tuba foi meu baixo por muitos anos, depois da Fuloresta. Depois, não tinha mais a tuba e a banda virou um quarteto. A segunda guitarra foi virando esse instrumento que fala nas regiões mais graves, assumindo o papel do baixo. Talvez esse seja um som marcante desse disco também, como a tuba tinha sido até então. Além de Lello, tem Rafael dos Santos na bateria. Ele está com a gente há um ano, mas já é um ano de uma relação muito profunda. É um músico que vai definir muito de como o disco vai soar. Muito do disco está na mão dele e de como ele processou uma ideia sonora que estava sendo elaborada. A rítmica está muito na bateria dessa vez. Tanto é que Mestre Nico toca menos, canta mais.


Indumentária usada por Siba e banda pra lançar o single de carnaval Barato pesado. Foto: José de Holanda/Divulgação

CONTINENTE Você disse anteriormente que demorou dois anos para criar um formato de show na época do Avante (2012). Quando o álbum foi produzido, isso não foi pensado para ele? Como essa experiência interfere na criação do show para Coruja muda?
SIBA VELOSO O Avante tinha uma particularidade muito conflituosa, eu vinha de um processo com a Fuloresta, um processo de um mergulho muito longo, profundo, de dominar a linguagem, de estar com uma banda no palco, de rodar muito, depois de anos. A Fuloresta era uma potência muito grande, orgânica. Ela era inteira. E o Avante é um disco em que eu tive que quebrar com isso. Por motivos pessoais, saí de Nazaré da Mata, fui morar em São Paulo, voltei a tocar guitarra, montei uma banda a partir disso. Então, foi um disco que demorou a virar um show, fui tateando. E o De baile solto pegou essa experiência meio dolorosa do Avante, transformou numa outra ideia, mais fluida, e já começou como uma máquina que girava, funcionando bem. Então, fomos melhorando as ideias, mudando o repertório, aplicando a linguagem na parada, simplificando. E, depois que ele foi mudando de quinteto para quarteto, já foi o processo do disco novo, praticamente.

CONTINENTE No De baile solto existia, de forma simplificada, uma intenção de fazer as pessoas dançarem. Há também essa intenção com esse disco?
SIBA VELOSO Tem, porque tem a ver com a música e com a poesia que eu pratico. Todas estão muito ligadas com a festa de rua, que tem o espaço da dança como espaço central. Não gosto de pensar que é música de dança. Gosto de pensar que é uma música que traz informação para o corpo, para o movimento; e, ao mesmo tempo, a poesia também é tão central quanto. Essa é uma ideia plural que eu não inventei, que vem da cultura popular mesmo, que sempre traz esses elementos. Uma coisa não é só ela. Ela sempre traz a outra. Embora esteja fazendo um disco de música, é um disco que é pensado a partir de um texto. Então, é pensado como poesia em primeiro lugar.

CONTINENTE Como os outros também…
SIBA VELOSO Se eu não tenho o texto, eu não tenho o disco. Sempre a poesia é o norte. Existe a busca musical, mas a poesia é o norte do que o disco fala e a música não é feita só para ouvir, é feita para ser sentida com o corpo.

CONTINENTE Como tem sido o processo de escrita para este novo disco?
SIBA VELOSO Minha escrita nunca é tranquila, mas também não é mais uma questão existencialista. Chega disso. Nunca mais farei. Só um processo de escrita mesmo, que dá trabalho, que me exige atenção, energia. 

CONTINENTE Você fala isso por causa do Avante?
SIBA VELOSO É. Não precisa nada daquilo. É o conselho que eu dou. Não precisa tanto sofrimento nas coisas. Aquilo é uma coisa pela qual eu passei e precisei colocar no meu trabalho de poeta, até para passar por aquilo. Não é que eu renegue o que eu fiz, mas depois de passado, acho que não precisa tanto. Dá para ser mais leve.

CONTINENTE Você se refere, então, a fazer uma produção que não fale tão abertamente do seu lado pessoal? Não precisa de algo triste num disco?
SIBA VELOSO Tem isso. Tem um sofrimento naquele disco. Tem uma alegria e também um sofrimento. Se tiver de ter algo triste, que tenha, mas que isso não seja um valor em si. Fazer um disco com tanto peso não tem um valor em si. Foi feito desse modo e eu não renego, muito pelo contrário.

CONTINENTE Afinal, é a sua história…
SIBA VELOSO É. Tem a ver com minha história. Tem muita dignidade e verdade no disco, mas passado, eu olho para aquilo e digo: “Pra que isso, meu fi?” Não precisava (ri).

CONTINENTE Ainda sobre seu processo de escrita. Você conta que ouvia cantoria em casa. Lançou um disco que tem, em certa medida, a presença da cantoria, Violas de bronze (2009), com Roberto Corrêa. Já pensou em fazer algum trabalho com os poetas do Sertão do Pajeú?
SIBA VELOSO Tenho uma relação muito profunda com a cantoria, de ouvir em casa com meu pai, de acompanhar os cantadores. Aqui, em São Paulo, logo quando cheguei, tinha um movimento muito forte e eu não só acompanhava, como também me exercitava informalmente. Faz parte da minha formação, inclusive. Mas nunca pensei em fazer uma coisa muito exclusivista com isso, porque, na verdade, a cantoria está em tudo que eu faço. Ela é a referência maior de tudo, ela é a referência maior da poesia. Quem faz a poesia que eu faço, não tem outra referência maior senão a cantoria. Se eu não conhecesse bem, por mais que eu tivesse o processo do maracatu, só ele não daria a poesia que eu faço. A cantoria é a base fundamental. É a referência maior.


Foto: José de Holanda/Divulgação

CONTINENTE
A métrica continua sendo perseguida nesse disco?
SIBA VELOSO É como eu sei fazer. É uma linguagem que domino e que consigo me expressar por ela. Eu vejo muito mais como uma ferramenta de uso do que qualquer outra coisa a mais, como valorização regionalista ou nacionalista. Isso tudo, para mim, já ficou para trás há muito tempo.

CONTINENTE E o texto sempre vem primeiro no processo de feitura?
SIBA VELOSO Nem sempre, porque, às vezes, eu estou lidando com um material musical que pressupõe um texto, mas ele também vai pressupondo um texto que tem uma certa matemática, que pode ter um formato tradicional e pode ser um novo, que eu estou criando, mas que vai ter muita lógica com métrica, rima e oração, que é a lógica dos cantadores. O texto pode não estar presente, mas ele está sempre sendo levado em conta, como uma coisa central do negócio. E, enquanto não tiver um corpo de texto considerável, que converse entre si, não tem disco nenhum.

CONTINENTE Começar a pensar em um disco novo parte de uma necessidade interna e/ou de mercado?
SIBA VELOSO São as duas coisas. Para fazer o que eu faço, tenho que viver disso. Se eu tiver que fazer outra coisa para me manter, não consigo. É um privilégio ter conseguido isso há muito tempo na minha vida, mas, ao mesmo tempo, é uma coisa que lhe obriga a fazer, porque se eu não fizer um disco novo em, no máximo, quatro anos, já começa a ficar muito distante. Ainda é necessário fazer disco, pra fazer show, para viver. Ao mesmo tempo, tenho necessidades de fazer o que eu faço, não só de viver disso, mas também de continuar fazendo. Não só gosto, como preciso. É uma necessidade que gera a outra e que se alimenta e acaba fazendo a coisa toda fazer sentido. Chega uma hora em que eu começo a ter coisas para dizer, novos elementos, tanto na música, quanto no texto. Mas, geralmente, a necessidade física vem antes da de mercado. É algo muito subjetivo. São coisas que você não domina. O mundo te obriga a fazer, mas se eu chegar na hora e não tiver nada para dizer, é porque eu já não estou fazendo o que eu faço. Por sorte, nunca chegou esse momento. Eu sempre tenho elementos suficientes para começar uma coisa mais efetiva.

CONTINENTE Você vai produzir sozinho?
SIBA VELOSO Eu estou produzindo o disco junto com João Noronha, que é do selo EAEO Records, que é um dos parceiros. João também produziu comigo o disco do Mestre Anderson Miguel, Sonorosa (2018). É uma relação que vem sendo construída nesses últimos quatro anos. Além do selo de João, tem o Mata Norte e o YB. Todos juntos para fazer o disco.

CONTINENTE Existe alguma influência musical do que você está ouvindo para este disco?
SIBA VELOSO Sempre tem, mas eu não tenho uma influência direta nesse disco. Sempre tem muito da música congolesa, que é central para mim. Às vezes, passo um tempo longe dela e depois volto e aquilo vem como uma coisa muito forte de pertencimento. É um elemento de fertilização. São coisas que não me pertencem, como o maracatu me pertence, que é de onde parte a minha música. Então, não conta, na verdade, porque isso sempre está lá. A poesia rimada, que eu faço, também já está comigo. Então, eu busco esses elementos de fertilização, de algo que vem de fora, que eu pego algum elemento e serve para o momento que estou vivendo. Há certos períodos do jazz que sempre me fertilizaram muito, mas que não aparecem na minha música; mas a música congolesa já aparece mais.

CONTINENTE Antes, você falou sobre a forte ligação entre dança e música na “cultura popular”. Tudo bem esse termo para você?
SIBA VELOSO Não. Eu sempre briguei com esses termos, né? Tradição, cultura popular, raiz. Passei a vida brigando com eles. Depois percebi que jamais iria ter força de lutar contra o senso comum, que é muito preconceituoso, que já traz toda uma determinação de hierarquias e de uma política. É contra essa segregação feita pelo senso comum que luto para quebrar essas palavras para definições da cultura popular, sendo que eu não tenho essa força. Depois, passei a entender que era melhor passar a usar o senso comum para discuti-lo do que propriamente ficar lutando contra as palavras que todo mundo usa, inclusive, a própria cultura popular.

CONTINENTE Qual seria a palavra que você usaria?
SIBA VELOSO Eu prefiro usar a palavra das coisas mesmo. Maracatu é maracatu. Ciranda é ciranda. Quando a gente classifica, já fodeu. Não é possibilitada uma agenda política do presente. É sempre a raiz, o passado. Parece que não estamos falando do presente. É um objeto cultural, uma coisa exótica. Pernambuco é um ótimo caso. O pernambucano fala da própria cultura com muito orgulho, mas ele não conhece bem, não participa. O pernambucano classe média, claro. Ele participa pontualmente, nas prévias, no Carnaval. Ele gosta de mostrar aquilo para quem vem de fora, mas ele não faz parte daquilo, porque é uma coisa de pobre, na verdade. E, pra mim, que sou um “artista”, um cara que consegue transitar nesse mundo e falar para um outro mundo, não sem coincidência, também tenho origem de classe média. Então, claro que eu só consegui isso porque tive as ferramentas da classe média. Mas também existe sempre a armadilha de que eu sou o cara que moderniza a parada. Isso é o pior.

CONTINENTE Sempre associam essa “modernização” a você…
SIBA VELOSO Isso é fatal. Sempre cai nisso. E também isso acontece porque meu trabalho sempre fica entre os gêneros musicais, embora eu tenha toda uma história de fazer maracatu até hoje. Mesmo com a Fuloresta, que é um grupo que tem um pé na tradição, há outros elementos musicalmente. E aí é muito difícil explicar para as pessoas que eu não estou modernizando porra nenhuma, que eu estou fazendo uma coisa que eu estou a fim, porque minha formação traz outros elementos, porque acho que deve ser aberto mesmo. E a cultura popular, repetindo esse termo estereotipado, ela traz esses elementos o tempo inteiro. Ela faz isso no detalhe. Então, se você não conhece, você não saca. Aí você vai no maracatu 10 anos, vê na televisão, e você acha que é sempre igual. E a cultura popular está sempre pegando os elementos do presente e fazendo as adaptações que são necessárias. Sendo que é uma lógica mais delicada, menos preocupada com o mercado, com a quebra, com a mudança. A mudança vem quando é necessária. Ela está cagando pra saber se você percebeu a mudança. A mudança já se fez.


No álbum De baile solto (2015), Siba produziu, compôs, cantou e tocou.
Foto: José de Holanda/Divulgação


CONTINENTE Como você percebe essa renovação no maracatu?
SIBA VELOSO A partir do meu ponto de vista privilegiado, de conhecer o maracatu de dentro, eu olho para fora e, mesmo em Pernambuco, nas outras tradições, não vi nenhuma outra se renovar tanto quanto o maracatu nesses 30 anos em que acompanho. É um fenômeno. É uma renovação que vem com tudo junto, não só a música. Quando eu cheguei ao maracatu, em 1990, ele estava fazendo uma evolução na poesia. Era a geração de Zé Galdino, Antônio Caju. Os poetas estavam quebrando a poesia e colocando-a num lugar mais formalizado, tecnicamente bem mais elaborado, na métrica, pegando já uma coisa que é da cantoria de viola, que é uma arte de virtuose. E os mestres de maracatu estavam pegando esse virtuosismo da viola e colocando no maracatu, não sem conflito. Uma parte imensa pegou, outra não. E logo depois a minha geração, que é a de Barachinha, pegou isso já pensado e praticou. Depois das políticas públicas de Lula, teve um fato muito definidor e marcante, que foi o de que as pessoas pararam de passar fome. E aí a coisa explode. A geração do Mestre Anderson hoje já cresceu dentro desse novo momento. A ausência de fome nesse campo do maracatu de baque solto é definidor. A geração dele é uma coisa maravilhosa. Os moleques fazem todas as atividades. Não é só o poeta. É o povo que toca, que dança, que faz os adereços, que administra. Há agora mulheres, que quase não havia, quando comecei. E, há 20 anos, as pessoas de classe média da Mata Norte não tinham vergonha de falar que o maracatu era coisa de negro e de rapariga. Hoje, já não assumem mais falar isso.

CONTINENTE E a presença do maracatu no Carnaval?
SIBA VELOSO Existiu uma mudança muito grande não apenas no estatuto de não faminto das pessoas, mas a cultura popular em Pernambuco teve um lugar da valorização desde a virada do governo Eduardo Campos, Ariano Suassuna. A cultura passou a ter, de fato, um lugar mais central, no discurso, na visibilidade. Era um momento de um Brasil que passava a ser Brasil e determinou a mudança de políticas públicas e um fluxo muito maior de recursos para a cultura popular, para o Carnaval.Quem viu o carnaval dos anos 1980 sabe do que eu estou falando. Era um carnaval marginal. Hoje é um carnaval mais bem-cuidado. Mas quando você compara esse carnaval mais bem-cuidado com o carnaval dos artistas, a discrepância é enorme. Maracatu é uma coisa cara e tem que ter recurso e esse recurso é público. O lugar do maracatu é muito marginal. Ele é o último a ser pago. É pago em parcelas, que é um discurso de marginalidade, dentro de um discurso de valorização. Porque, em Pernambuco, quem dá a imagem pública do carnaval é o maracatu de baque solto e o frevo. Basicamente, o caboclo de lança e o passista do frevo. Mas, na hora da distribuição da grana, ele não vai para o maracatu e para a cultura popular. Vai, mas é a raspa do tacho. E, recentemente, a gente viveu a questão da perseguição policial, que mostrou quanto a cultura popular tem um lugar marginal, que se pode fazer tudo que quiser com ela, que ninguém vai reclamar. As pessoas não estão preocupadas com o que, de fato, é o maracatu.
Pelo fato de a gente valorizar o maracatu como uma questão de raiz, coletiva, que ninguém sabe de onde vem e que é uma coisa linda no Carnaval, a gente não aceita a possibilidade de que uma tradição popular como o essa é um empreendimento de dignidade, mas do que qualquer outra coisa. O maracatu é um ritual, ele é de esforço, é sofrido. Tem CNPJ, tem pedido de autorização à polícia, tem dinheiro, que movimenta a atividade. Do ponto de vista capitalista, talvez, seja uma piada considerar como empreendimento, mas ele promove a dignidade das pessoas. É um empreendimento da classe trabalhadora mais pobre, talvez, do estado, que tem sua raiz na nossa história escravocrata. Para quem faz, é uma afirmação da dignidade de que não somos iguais, somos diferentes. Não é para dizer que sabe fazer algo diferente. É para ser fazendo. Essa cultura tem resistido há décadas numa cultura de adversidade e ela tem resistido, porque ela é sendo. Essa coisa se articula ao ponto de ser algo central para o estado de Pernambuco, talvez, a imagem mais central. E, mesmo sabendo disso, de repente, vai e manda a polícia parar aquele negócio, isso com a participação ativa de Ministério Público, prefeitos, secretários de cultura. Isso já foi resolvido, mas a questão de não receber o dinheiro ainda existe.

CONTINENTE Se Siba fosse secretário de cultura do Estado, como seria o Carnaval?
SIBA VELOSO É uma festa da cultura popular. É para onde deveria ir o recurso e a cidade deveria se virar ao avesso para receber a cultura popular que vem de fora. Esse grande festival de palco, de show, que já passou a ser uma tradição, deveria ser uma coisa igual ou até secundária. Essa história de palco e de show deveria estar ligada ao carnaval propriamente. Ela não deveria receber tanta coisa que contraste tanto. Não acho que o Carnaval precisaria virar um megafestival de música de tudo que é tipo, por mais que eu defenda a diversidade, como um princípio básico. Mas o Carnaval, como uma festa nossa, não precisava ir tão longe.

CONTINENTE Acaba sendo uma forma também de construir uma agenda midiática…
SIBA VELOSO Isso foi uma coisa que a gente foi construindo, né? Todos nós construímos isso ao aceitar, ao fazer parte. Não acuso nem digo que sou contra, porque já fiz parte, mesmo não achando ser sempre o melhor caminho. Mas, ao mesmo tempo, estou sendo utópico, porque se o país não fez essa virada nesses anos de governo de esquerda, agora é o momento de lutar para não deixar de ser, de existir minimamente.

CONTINENTE Durante o Carnaval deste ano, a Prefeitura de Olinda cancelou seu show de última hora, mesmo depois de divulgado. Como você percebe esse tipo de conduta?
SIBA VELOSO Marcar show, mudar data e cancelar show em cima da hora já é uma regra no carnaval de Pernambuco. Eu reclamei por uns anos, mas agora aceitei que essa é a realidade. Isso mostra que a gente não significa muita coisa para as diferentes gestões de poder público da cultura do estado. Nós costumamos ser os últimos informados, convidados ou encaixados na programação do carnaval, embora tenha uma história profunda de dedicação a ele. Não vou deixar de fazer o Carnaval, enquanto for possível. É uma festa em que eu invisto, porque vamos para o Recife pagando passagens, estadia, alimentação, cachês de equipe técnica, muitas vezes, sem saber quantos shows vamos ter ou sem nem saber o valor que vamos receber. Na semana pré-carnavalesca, a gente ainda não sabe, mesmo já tendo feito todos esses gastos. Os cachês só vêm lá para o segundo semestre. É uma situação de abuso, mas à qual eu tenho me submetido, porque quero continuar fazendo, porque é importante para mim como artista, renovo a minha energia criativa fazendo o Carnaval. Este ano, a prefeitura do Recife foi a única que realmente, desde o começo, colocou uma posição clara para a gente.

CONTINENTE No Instagram, você sempre se posiciona politicamente. Qual sua opinião sobre o atual governo e o fim do Ministério da Cultura?
SIBA VELOSO Eu acho que não importa se tem ou não ministério. O que é importa é qual a política para cultura. Nesse sentido, acho que os governos de esquerda foram muito aquém em termos de políticas reais, tanto é que a gente está numa situação na qual não estabelecemos tantas bases fundamentais de mercado, faltou um apoio direto, um pensamento a longo prazo. Faltou quebrar o monopólio das rádios, faltou transformar os meios de comunicação em meios democráticos. Se tivesse feito isso, estaríamos bem mais seguros agora para lidar com a situação nova. Mas eu também venho de um tempo em que fazer isso era fazer algo assumidamente marginal. A cultura era para ser marginal, ela não tinha valorização. Então, de certo modo, estou acostumado com isso. Quando escolhi fazer o que eu faço, não tinha nenhum tipo de apoio nem perspectiva. Eu fiz porque precisava fazer o que faço.

CONTINENTE Precisava internamente?
SIBA VELOSO É, precisava. Era uma questão de saúde mental para mim. Mas, no meu íntimo, acho normal que seja assim, porque essa é a verdade do nosso país, embora a gente tenha um presidente de extrema-direita, que foi eleito por uma minoria, o nosso país escolheu. Um grupo razoável de pessoas está querendo isso mesmo. Mas me preocupa mais, propriamente, as outras consequências desse governo. A concentração de renda, a não aceitação do problema climático e o que vai se fazer com a Amazônia e com os meios naturais, a torra dos recursos do país e a concepção violenta da coisa como um todo, que é uma violência múltipla e que vai atingir, especialmente, os mais pobres. Isso é o que vem ao caso. A situação da cultura do país não vem ao caso. A gente também vai ter que discutir isso, porque a gente faz parte do país, mas não é isso que vem ao caso.


Siba montou a Fuloresta no período em que viveu em Nazaré da Mata. Foto: José de Holanda/Divulgação

CONTINENTE Carnaval também é política e uma das suas músicas que faz mais sucesso, A bagaceira, conta um pouco da sua história de folião. Em um dos trechos, você canta: “Não quero fantasia/ Vou me vestir como der/ Um dia eu melo a cara/ No outro eu vou de mulher”. Hoje, como você vê a utilização dessa tradição de se utilizar da figura feminina para se fantasiar, para ser engraçado?
SIBA VELOSO Hoje, esse é um assunto muito central e eu concordo. Mas também há um jogo muito complicado, de onde é o costume que te traz elementos afetivos muito fortes. Mas também tem o lado que mostra que essa é uma expressão de uma sociedade machista, porque mulher se vestir de homem nunca teve tanta graça, porque é justamente a inversão. Só tem graça, porque no dia a dia a relação é desigual. Hoje em dia, essa inversão se perdeu completamente ou boa parte dessa graça. E, inclusive, fazer isso sem consciência é mostra de uma alienação muito aguda. E o costume cultural vai ter que lidar com esse novo momento agora.

CONTINENTE Ainda observando trabalhos anteriores, No baque solto, somente (2003), na faixa Samba curto, você tenta diminuir Barachinha, na disputa de versos, fazendo uma associação dele à figura feminina, como em: “Bote batom, pinte a unhinha dos pés/ Vá frequentar os bordéis, bebendo pinga na lata/ Que em Nazaré da Mata travesti tem mais de 10”. Hoje, esse tipo de verso dificilmente seria bem-aceito. O que você pensa disso, 16 anos depois?
SIBA VELOSO Esse disco, particularmente, é de maracatu. Se você procurar, tem muito mais coisa lá dentro. Tem falas preconceituosas contra a herança afro-brasileira, quando a gente fala do catimbó como uma feitiçaria negativa; tem muita piada machista; tem elementos de racismo, inclusive. Isso tudo faz parte de uma cultura que é dali da Mata Norte, que é do maracatu. É um disco que fiz de maracatu para maracatuzeiro e há mais de 15 anos, com pouca consciência da importância dessas questões. Não tenho vergonha de nada naquele disco, mas, ao mesmo tempo, é um disco que está ultrapassado em várias ideias realmente. O povo adora o disco até hoje, eu também gosto muito, mas ele não é politicamente correto, de forma alguma. É um disco de maracatu mesmo. Mas, até hoje, o maracatu é uma cultura machista, embora tenha se aberto muito para as mulheres, mas é uma cultura conservadora, machista, vai estar lá tudo isso aí. Se você vai pro maracatu, querendo ver só isso, você também só vai ver isso. É uma outra forma de arrogância também a ser praticada e não é difícil de perceber isso sendo praticado. Mas são espaços de discussão na sociedade.

CONTINENTE Nesse cenário de música independente das grandes gravadoras, é uma necessidade para você estar em São Paulo?
SIBA VELOSO Mesmo no auge das leis de incentivo, dos editais, sempre me incomodei em estar refém de patrocínio para fazer o que eu faço. Sempre achei importante e acho que é importante você viver do que você faz numa relação um pouco mais real de mercado. Nesse sentido, Pernambuco é impossível. A gente não conseguiu se estabelecer lá, infelizmente. Não conseguimos estabelecer um mercado local nem regional. Ficou sempre como uma coisa de um nicho muito pequeno, que sempre precisou fluir para o Sudeste para expandir. É mais barato circular no Sul e Sudeste. Tem algo interessante que, agora, o Nordeste está mais à esquerda politicamente. Então, isso cria uma situação mais favorável. Vamos ver como isso se concretiza em termos de ação efetiva.

CONTINENTE Você é um artista que tem um público específico e que, agora, também está em um ambiente ainda mais de nicho, que é no universo do vinil. Como funciona essa relação com o vinil? Há também uma tentativa de chegar a um público maior?
SIBA VELOSO Claro que, como artista, quero chegar ao maior número de pessoas possível, até porque não faço um gênero específico. Acho que o que eu faço tem o potencial de se comunicar com muito mais gente. As limitações não estão no meu trabalho, mas em como funcionam as ferramentas de divulgação e de comunicação. Tem muito a ver com a grande mídia ainda e mesmo com o funcionamento da internet. Em relação ao vinil, é um fenômeno de mercado, mas um fenômeno restrito, para um certo público, que tem poder de compra, que é interessante, mas é um fenômeno de privilegiados. É legal, porque tem a relação da música com o objeto mágico que é o vinil. É a retomada de uma atenção. Aquele momento é daquilo. Essa relação foi perdida, né? Ao mesmo tempo, eu não sou saudosista. Acho mais legal o fato de que você tem de tudo num lugar, que não é físico, que você pode acessar. Poder acessar é muito mais legal do que ter que comprar um disco. O vinil não define o momento. Ele é um fenômeno que eu adoro, mas é um privilégio de poucas pessoas que podem curtir esse modo de se relacionar com a música.

CONTINENTE Você percebeu, na prática, que sua música chegou a mais pessoas com o streaming?
SIBA VELOSO Sim. Claro. Só você não ter que ir convencer ninguém a ir comprar um disco… A pessoa pode, de repente, descobrir no meio de uma playlist ou no link do YouTube que está ali do lado, ou um amigo que manda pelo WhatsApp. Esse poder capilar da internet é muito mais legal do que a obrigação da obtenção do objeto.

CONTINENTE De que modo isso interfere na venda dos seus produtos?
SIBA VELOSO Isso é muito complexo, porque não é só um elemento que determina a venda. O CD, de fato, está deixando cada vez mais de ser uma coisa minimamente considerável, mas a gente ainda faz o CD e eu ainda vendo CD. Ainda vale a pena para mim. Talvez, o próximo seja o último, mas não vem ao caso mais. O vinil ainda vem ao caso, porque ele é um mercado, movimenta um valor, que justifica toda uma coisa, mas, em termos de quantidade, o que importa, hoje, é o streaming. Apesar de que, até o dinheiro chegar no artista, como sempre, é uma linha longa.

CONTINENTE Participar de várias partes do processo de criação de um disco, como produzir, cantar, tocar, compor, é uma necessidade, para os artistas independentes das grandes gravadoras?
SIBA VELOSO Eu acho que sim. Hoje, é impossível você ser artista independente e não dominar um pouco de tudo no processo, especialmente de produção, porque aquele negócio de que você é um artista incrível, supertalentoso e alguém te descobre e uma multinacional vai botar uma grana em você e você vai ficar famoso, isso acabou. Se isso existe, é para um e outro e é um processo muito rápido. Tem essa coisa de bombar na internet e ser muito rápido. Isso não me diz respeito e eu também não saberia falar disso, porque também não me importa muito. Mas, para um artista que quer construir uma carreira sólida, ele vai ter que fazer produção sozinho por um tempo, vai ter que cuidar de todos os elementos, de show, de tudo.

CONTINENTE E em relação aos clipes. Você pensa em fazer?
SIBA VELOSO Penso, mas também acho mais legal fazer coisas fragmentadas, uma lógica meio de Instagram, porque o clipe requer muito recurso, tempo, energia, para fazer um troço que vai durar três minutos e meio. É muito mais legal fazer coisas pequenas. Eu uso meu Instagram de um jeito meio informal também e acho que consigo comunicar bem dentro do meu limite. Acho que esse disco se presta para um trato mais fragmentado para a imagem, mas ainda não sei, porque não defini a identidade visual dele. Então, posso estar falando besteira.

CONTINENTE Você divulgou no Instagram, no ano passado, um projeto de turnê entre você e a Banda Eddie para 2019. A associação de marcas facilita o fazer musical?
SIBA VELOSO A gente quer andar juntos. São duas bandas que combinam bem e isso tem uma facilidade formal de diminuir custos, porque usamos a mesma equipe de produção, podemos usar o mesmo equipamento e temos uma intimidade de convivência que possibilita mais maleabilidade no dia a dia. A música combina, porque há um lance da identidade de Pernambuco que, de algum modo, agrega um público em comum, mas que também não é. São parcerias meio óbvias, na verdade. Não há um projeto formalizado. Não há tantas elaborações, porque a coisa já está elaborada pela própria história em comum. É uma ideia que eu espero que aconteça.

CONTINENTE Quando esta entrevista for publicada, você estará com 50 anos...
SIBA VELOSO Chegou ligeiro. Eu tento não levar muito a sério.... (pensativo). A gente leva essas datas como marcos. Cinquenta parece uma coisa mais pra lá do que pra cá. Ao mesmo tempo, ainda me acho muito sensível. Ainda quero fazer muita coisa, ainda tenho muito tesão de fazer e acho que estou em um momento massa, mais maduro, enquanto artista, que pode ser bastante criativo. Espero conseguir levar isso para um trabalho novo e para o palco, principalmente. Tenho a sorte de ter conseguido fazer o que eu sempre quis, que é viver sendo criativo e ter isso como uma coisa central da minha vida. Para mim, foi uma questão de saúde, de conseguir existir, de equilibrar um desequilíbrio interno e conseguir fazer disso o meu modo de vida. Tem um lance que é de dignidade, de vitória, que, pra mim, é muito importante, que comemoro. Por outro lado, a parte física eu já sinto. Não estou igual aos 30, mas isso não tem jeito.


Foto: Fernando Martins

Extra:
Leia também a reportagem e a entrevista feita com Siba em 2015, na edição 177 da Continente.

PAULA PASSOS, jornalista.

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