A instituição arte, que por séculos tendeu a engendrar os corpos segundo ideais da pintura, escultura ou mesmo da dança, com os seus códigos preestabelecidos, viu nascer, através da arte viva do século 20, criações totalmente distintas, como as de Marina Abramović. Não apenas ela, mas uma leva de colaboradores de peso para a arte contemporânea, tais como Bruce Nauman (1941), Vito Acconci (1940), Joseph Beuys (1921–1986) e Cindy Sherman (1954), na performance; ou Trisha Brown (1936), Yvonne Rainer (1934), Steve Paxton (1939) e Merce Cunningham (1919–2009), na dança. No Brasil, os artistas visuais Hélio Oiticica (1937–1980), Lygia Clark (1920–1988), Lygia Pape (1927–2004), Artur Barrio (1945), Paulo Bruscky (1949) e Daniel Santiago (1939) foram exemplos que trouxeram o corpo para o meio das experimentações artísticas. Independentemente da área, essas pessoas, cujos trabalhos eclodiram com mais força nos anos 1960 e 1970, mudaram nossa concepção de arte e trouxeram a reboque uma quebra de fronteiras entre linguagens instituídas pelo campo, como música, teatro, dança, artes plásticas, cinema. Isso abriu caminho para outras possibilidades de criação, através de expressões híbridas que guiam, até hoje, boa parte das produções, embora as expressões pictóricas e escultóricas sigam existindo. Na história, afinal, nada é estanque.
Trademarks registra performance de 1971 do artista norte-americano Vito Acconci.
Fotos: Reprodução
Como lembra a artista e pesquisadora carioca Flavia Meireles, a historicidade desse período pode contribuir para pensarmos outros tempos e colocá-los lado a lado, refletindo sobre o momento no qual “o corpo que se apresenta se coloca como objeto de arte”, o suporte que “absorve” diferentes linguagens como potência experimental – ao mesmo tempo ou em separado. Ele surge, portanto, como o meio e o fim da experiência estética, que, na visão da psicanalista e especialista em arte Suely Rolnik, é uma ação fundamentalmente política. Não necessariamente engajada, rótulo insuficiente para compreender, por exemplo, obras como a performance Os lábios de Thomas, mencionada no início deste texto. Uma ação política, porque, ao despertar determinados entendimentos do e no corpo, é capaz, segundo Suely, de “incidir na política dominante de subjetivação”, de construção daquilo que somos. Isso significa, para ela, ativar o “corpo-que-sabe”, ou seja, “que sabe dos efeitos do outro na própria consistência ou tessitura de si”.
MEMÓRIA DO TRAUMA
Quando Marina Abramović realizou Os lábios de Thomas, na Áustria, o marechal Tito exercia plenos poderes como presidente da então Iugoslávia, à época um retalho de povos subordinados a um regime comunista. Os pais da artista estavam não só de acordo com o sistema, como se envolviam na luta política. Enquanto isso, empenhavam em casa uma educação de rigor militar com a filha, “performatizada” por gestos como tapas, dedo em riste e ausência completa de afeto. A estrela que Marina riscou em volta do umbigo na performance, fazendo sangrar sua pele, aludia às suas origens relacionadas à família e ao ícone comunista que flamejava junto à bandeira da ex-Iugoslávia. O autoflagelo e a cruz eram claras evidências da presença da cultura cristã no seu corpo (ou no nosso). O mel e o vinho, por sua vez, referências a rituais religiosos. Sem falar no canto, na nudez e no frio como excertos-chave de uma obra catártica repetida por ela até pouco tempo, em sua trajetória pautada pelo limite.
Repetição, circularidade e minimalismo em Walking in a Exaggerated Manner Around the Perimeter of a square, de Bruce Nauman. Foto: Reprodução
Suely Rolnik certamente diria que a experiência estética de Marina Abramović ativou a memória de um trauma que habita o seu corpo e, ao libertar essa representação identitária de si, despertou também o germe de uma subjetividade que está no “ponto de interrogação”, não no de afirmação; que está no “corpo-que-sabe”. Um ponto em que a arte negocia o seu ser no mundo; uma fissura entre o ego e um eu mais profundo, um corpo que é “inumano, porque escapa à instituição de valores”, “vivo”, porque afetado pelos sentidos e pelo outro, e “estranho”, uma vez que distinto da normatividade cultural vigente. Um corpo, enfim, que sabe e existe em potencial até serem “ligadas” suas conexões sensíveis e performativas em relação ao meio circundante.
Lygia Clark e Hélio Oiticica expandiram seu campo com a criação dos Objetos relacionais e dos Parangolés. Fotos: Reprodução
“A criação artística vem da escuta desse ponto de interrogação e a arte acabou se tornando o campo no qual ficou confinada a possibilidade da ação e do saber do corpo, e do pensamento dele. Temos que fazer isso transbordar, até porque a arte está um pouco cafetinada hoje”, proferiu a pesquisadora paulista em 2013, durante o 8º Encontro do Instituto Hemisférico de Performance e Política, em São Paulo.
Estudiosa da obra de Lygia Clark, outra artista de experiências estéticas com o corpo, Suely se refere ao conceito de “corpo-que-sabe” como um sistema de pensamento oposto ao “corpo recalcado”. Este último seria o sustentáculo do saber ocidental moderno, amparado pela visão racionalista, mas ainda pela forte presença da igreja católica, sobretudo nos processos civilizatórios das colonizações. A mesma, como ela lembra, que contribuiu para reduzir a cultura de povos nativos do Brasil e a ofuscar um saber do corpo que está na nossa pele tanto quanto o trauma dessas sobreposições culturais.
"O que é a arte? Pra que serve?", questiona o artista Paulo Bruscky aos passantes.
Foto: Reprodução
Se algumas criações artísticas reforçaram uma perspectiva estéril de corpo ao longo da história, outras lograram o contrário, tornando-se patentes essas contradições que habitam a nossa dimensão físico-mental. Poderíamos dizer que, nesse sentido último, as manifestações populares nordestinas compostas por múltiplas gramáticas artísticas, a exemplo do frevo e do cavalo-marinho, estão no mesmo patamar da arte contemporânea.
CORPO-HISTÓRIA
“Quando inserido no contexto, o corpo é atravessado por diferentes forças ou tensões políticas. O trabalho do corpo revela certos estados da subjetividade contemporânea e aponta possibilidades de imersão e transformação de formas de vida”, acredita o artista pernambucano João Lima, de 34 anos, que não consegue enxergar seu processo criativo separado da dimensão corpórea. Ator, dramaturgo, diretor de teatro e performer, João é radicado em Barcelona, na Espanha, e já fez trabalhos como Morder a língua (2014), Ilusionistas (2012), Natureza monstruosa (2011) e O outro do outro (2010), pesquisa coreográfica subvencionada pelo Programa Rumos Itaú Cultural Dança 2009/10, no Brasil. Em todos estes, o corpo emerge como alavanca indispensável; são na verdade, crias da arte performática, marcada, na visão do artista, por fronteiras móveis e flexíveis. “Desde que comecei, sempre me interessei pelo corpo. Quando escrevo, atuo, faço performance. O teatro, mesmo, é a arte do corpo e da presença, embora alguns tenham uma visão ‘textocentrista’. O corpo é a unidade mais simples e complexa de se relacionar com o mundo e os outros”, defende ele.
Registro da performance O velho e o mar (2012), de Daniel Santiago. Foto: Reprodução
Liana Gesteira, artista e pesquisadora em dança no Recife, dialoga com essa linha de atuação e pensamento, e acredita nesse potencial. Porém, para ela, membro do Coletivo Lugar Comum, “o entendimento de corpo ainda é muito etnocentrista, modernista, muito centrado no eu (em outras palavras, no corpo recalcado, de Suely Rolnik)” e isso automatiza a criação, pois muitos treinamentos reproduzem isso.
“A performance tem tentado explodir esses lugares, provocando descolamentos desse corpo eu e identidade, e algumas pessoas também têm buscado outros treinamentos, como a ioga, cuja concepção da matéria é mais ligada ao cosmos, por exemplo”, diz Liana. João comenta que, como performer, já passou por várias fases nesse sentido: “A gente vai se transformando, envelhecendo, se descobrindo. Já fiz tai chi chuan, acrobacia, ioga, esportes… A performance é heterogênea e pouco ortodoxa, inclui a vida cotidiana como prática corporal. O sujeito que está sentado no computador o dia todo, que corpo tem ele? E os da atividade doméstica e os que se deslocam pela cidade?”.
Ator pernambucano João Lima, em cena com Natureza monstruosa, não enxerga processo criativo separado da dimensão corpórea. Foto: Paula Kossatz/Divulgação
Na visão de João, a ação performática seria justamente o ato artístico que se insere na realidade como gesto. “Essa consciência é diferente do que seria a arte tradicional. A performance questiona os meios, o contexto; na verdade, assume o contexto da ação. Você se assume e, assim, se insere no real de forma mais potente”, defende ele, um dos idealizadores e realizadores do Articulações, ao lado da própria Liana. O encontro teve sua segunda edição no ano passado, no Recife, reunindo pessoas interessadas em debater, na teoria e na prática, a arte da presença. “Na performance, há um natural cruzamento de linguagens; há teatralidade, plasticidade, poesia, música, difícil demarcar como algo preestabelecido. Então, qual seria o início da performance? Poderíamos perguntar. Nos anos 1950, com as experimentações de John Cage na música? Com os happenings dos surrealistas (no início do século passado)?”, indaga o pernambucano.
Por isso, talvez seja mais prudente trabalhar com a ideia de paradigma, em vez de gêneros ou escolas artísticas mais datadas, a fim de buscar compreender o lugar do corpo na arte, até porque, como sabemos, diferentes expressões e tempos se manifestam atualmente. A professora, artista e pesquisadora em dança Roberta Ramos, também de Pernambuco, acredita ser interessante observar essas transformações a partir de um espectro mais amplo. Citando o autor francês Michel Bernard, ela conta que houve, na História, “uma passagem da civilização contra o corpo para a civilização do corpo”. Se, antes, havia mais fortemente uma “condenação”, sobretudo cristã, que interferia até nas ciências e na filosofia, com o passar do tempo, essa outra visão de mundo, também inserida na modernidade, começa a ganhar (literalmente) vida, sobretudo no mundo contemporâneo.
Para a bailarina Liana Gesteira, o entendimento do corpo ainda é etnocentrista, modernista, centrada no eu. Foto: Alice Moreira/Divulgação
Apesar de considerar que a ideia de controle e repressão do corpo ainda esteja presente na sociedade, para lembrar Michel Foucault, a pesquisadora identifica diferentes campos de conhecimento se alinhando dentro de uma perspectiva mais favorável. “O corpo ganha força e se valoriza. Na arte, e particularmente na dança, ele se torna o assunto e não o suporte para outros assuntos. É a ideia de corpo performativo, termo usado por Jussara Setenta e Judith Butler”, explica Roberta, para quem tudo isso também reverbera no próprio ensino da dança no Brasil, que começa, cada vez mais, a adotar noções mais atuais. Não por acaso, a própria Suely Rolnik constata e defende o retorno paulatino do “corpo-que-sabe”, diferente do “corpo recalcado” que pauta, a grosso modo, o ensino do balé clássico, por exemplo.
“Embora as descobertas do corpo não sejam uma novidade da atualidade, foi no decorrer dos últimos 40 anos (55 anos agora) do século 20 que elas ganharam uma importância inusitada. Após os movimentos sociais da década de 1960, por exemplo, o corpo foi redescoberto na arte e na política, na ciência e na mídia, provocando um verdadeiro ‘corporeísmo’ nas sociedades ocidentais”, escreve, em seu artigo As infinitas descobertas do corpo (de 2000), a historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna, professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC–SP.
Roberta Ramos lembra as diferentes perspectivas teóricas nessa construção de conhecimento. Na arte, segundo ela, houve uma ruptura entre o corpo abstrato da visão platônica e o corpo do qual se extraem conceitos a partir da própria experiência, ou da própria prática, como defendeu o filósofo Friedrich Nietzsche. Denise, por seu turno, afirma que “as descobertas do corpo possuem uma história secular e vasta, pontuada pelos avanços e limites do conhecimento humano. Pois, se o corpo não cessa de ser descoberto, é preciso não perder de vista a provisoriedade de cada conhecimento produzido a seu respeito: constantemente redescoberto, nunca, porém, completamente revelado”.
Leia também:
Uma dimensão política para as experimentações
O corpo na era da digitalização. Ainda somos humanos?
Digital: Arte que atua em rede