O Recife chegou a receber 30 mil norte-americanos, segundo Weller. Um contingente impossível de ser ignorado, no entanto, não muito discutido em sala de aula ou mesmo citado na historiografia oficial do estado – que trata os 24 anos da invasão holandesa no século 17 com pompa e minúcias. É impossível dissociar a atuação desses estrangeiros do contexto da Guerra Fria vivido após a vitória dos aliados em 1945, e a subsequente polarização do mundo entre os capitalistas do free world e os comunistas de Stálin. Os Corpos da Paz aludem tanto ao espírito expansionista norte-americano – com aquela missão de manter a ordem universal que eles atribuíram a si – como ao temor que Kennedy e seus partidários tinham de uma “vermelhização” da América do Sul. “Tenho certeza de que o programa será uma fonte de satisfação para os americanos e uma contribuição para a paz mundial”, apregoava JFK em seu discurso.
O curioso é que os Corpos da Paz passaram a atrair uma juventude encorajada por razões distintas. “O clima dos direitos civis dos anos 1960 propiciava o engajamento dos jovens imbuídos desse espírito libertário, mas, quando se aproxima o fim da década, começam a chegar os rapazes que não queriam servir no Vietnã. O programa passa a ser uma rota de fuga. E o que acontece? Muitos americanos vêm para defender uma ideologia liberal e terminam por se tornar simpáticos às causas dos trabalhadores rurais ou mesmo dos que lutavam contra a ditadura militar. Há casos de alguns que foram presos e torturados pelo DOPS”, aponta Fernando Weller, que já percorreu milhares de quilômetros na pesquisa e nas primeiras filmagens.
Entre as ações desenvolvidas pelo programa de "colaboração", constavam medidas de educação e saúde. Foto: Divulgação
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Desde 2012, quando Steven esteve aqui foi agraciado com recursos do Funcultura audiovisual para desenvolvimento de roteiro, o diretor já esteve em Afogados da Ingazeira que, supostamente, acolheu Spielberg, em Petrolina, Orobó, Belo Jardim e Timbaúba, no interior pernambucano, e ainda no Rio de Janeiro e em São Paulo. Fora do país, visitou Washington e Boston. Entrevistou dezenas de personagens, entre veteranos dos Corpos da Paz e brasileiros que auxiliaram o programa ou acolheram os estrangeiros. Teve acesso a um rico material iconográfico nos arquivos norte-americanos. Entretanto, a mesma sorte não lhe sorriu no congênere brasileiro, o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. “O acesso às fontes de informação histórica é incrivelmente difícil. Aqui não existe a cultura da memória. Já nos EUA, tem-se acesso a tudo. A maioria dos filmes feitos pelos Corpos da Paz com propósito de divulgar o programa ou para ser exibida aos voluntários é de domínio público e pode ser vista e usada”, explica Weller.
Em 2013, o documentário ganhou outro aporte financeiro do Funcultura, dessa vez sob a rubrica de produção de longa-metragem. Já no segundo semestre de 2014, quando mais da metade da pesquisa estava concluída, veio a aprovação no edital do Longa Doc do Ministério da Cultura – o único projeto do estado a figurar no rol dos premiados. Com o selo da Jaraguá Produções, em parceria com a Plano 9, o filme vem sendo captado em HD, com fotografia de Nicolas Hallet e montagem de João Maria (“estamos filmando e montando ao mesmo tempo”, adianta o diretor). A previsão é de lançamento em 2016.
Fernando Weller percebe Steven esteve aqui não como um documentário clássico a reconstituir a história do programa inventado por John F. Kennedy, mas como um mosaico fílmico em que a memória dos sujeitos se impõe sobre as instituições. Afinal, nada é novidade na participação norte-americana no golpe que derrubou Jango e instaurou a ditadura militar brasileira, no papel do embaixador Lincoln Gordon no apoio que os EUA deram às Forças Armadas (Gordon é visto em uma das imagens mais marcantes obtidas na pesquisa do filme ao lado do então presidente brasileiro Jango, do primeiro-ministro Tancredo Neves e do sargento Shriver, o primeiro diretor e um dos porta-vozes do programa, na assinatura do convênio para implantação no Brasil, em 1962) e na intensificação não apenas dos Corpos da Paz, mas de todos os programas norte-americanos ramificados no Brasil a partir da colaboração do regime de exceção.
“Os aspectos mais inusitados e importantes são outros. Tenho a impressão de que a presença norte-americana divertia as pessoas, que os acolhiam como se não existisse a Guerra Fria. Ao mesmo tempo, a parte dessa juventude que vinha de lá fugida, exatamente dos dilemas dessa Guerra Fria nos EUA ou para escapar do Vietnã, era vista como se fossem espiões ou os imperialistas que implantariam o plano americano. Mas a presença dos norte-americanos, embora disfarçada, não era inócua. Eles financiaram a criação de sindicatos rurais para competir com as antigas Ligas Camponesas, nos esforços contra o fantasma do comunismo, e assim formaram, indiretamente, os quadros políticos de várias cidades. Como faziam isso? Escolhiam um camponês, davam a ele uma formação e depois o levavam aos Estados Unidos, onde ele aperfeiçoava os estudos que havia recebido. Quando retornava, não demorava a participar da política daquele município. Em vários casos, esse mesmo camponês virou prefeito”, afirma o diretor, para quem o filme pretende mostrar, a partir de exemplos como esse, que “apesar das instituições, existem os sujeitos, que tornam as histórias mais complexas do que qualquer estereótipo”.
O Steven do título não foi localizado. “Desapareceu no mundo”, nas palavras de Fernando Weller. Ele era um dos que integravam o “imenso reservatório de homens e mulheres ansiosos para sacrificar suas energias, seu tempo e seus laboriosos esforços para a causa da paz mundial e do progresso humano”, como esbravejou JFK no seu discurso, dois anos antes de ser assassinado, talvez sem fazer ideia de que seus Corpos da Paz seguiriam a existir após meio século, com atuação em 139 países, algo bem típico para (qualquer que seja) a doutrina do tio Sam, ou que tampouco virassem objeto de investigação cinematográfica que se assemelha a uma prospecção arqueológica no passado recente, e ainda não muito iluminado, do Brasil e da “terra dos altos coqueiros”.
LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.