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O que sobrou da política de boa vizinhança

O professor Fernando Weller investiga, desde 2008, a presença norte-americana em Pernambuco, no período do golpe militar, e sua relação com o poder

TEXTO Luciana Veras

01 de Março de 2015

Tancredo Neves e o então presidente João Goulart, durante assinatura de convênio com norte-americanos

Tancredo Neves e o então presidente João Goulart, durante assinatura de convênio com norte-americanos

Foto Divulgação

Primeiro de março de 1961: em um dos seus primeiros atos como presidente dos Estados Unidos da América, John Fitzgerald Kennedy assina e divulga a executive order 10924, decreto presidencial que instituía o programa de voluntários Corpos da Paz. Seis meses depois, o congresso norte-americano autoriza a iniciativa por meio do Peace Corps Act (Pub. L. 87-293), sacramentando, assim, os desejos do primeiro governante católico do país. “Os Corpos da Paz serão um conjunto de homens e mulheres treinados e mandados para o exterior pelo governo dos Estados Unidos, ou por meio de instituições e organizações privadas, para ajudar países estrangeiros a aplacar suas necessidades urgentes de mão de obra habilidosa. É nossa esperança ter entre quinhentas e mil pessoas em ação até o fim desse ano”, disse JFK em seu discurso.

Março de 2015: o professor universitário, pesquisador e documentarista Fernando Weller se prepara para mais uma etapa de filmagens de Steven esteve aqui, a que se dedica desde 2008. “Neste ano, comecei a ouvir relatos da presença dos americanos no sertão de Pernambuco. Ninguém sabia disso. A presença deles em Natal é conhecida, e virou filme, mas o fato de os americanos terem estado aqui nos anos 1960 é ainda ignorado por muitos”, observa Weller, formado em Cinema pela Universidade Federal Fluminense e atualmente professor e doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.

Que relatos eram esses? “Fabulações, histórias pessoais, lendas de espiões… Em Afogados da Ingazeira, por exemplo, corria o boato de que Steven Spielberg tinha vivido lá na década de 1960. A partir do boato, fui atrás da história, que trata de uma verdadeira ocupação branca norte-americana em Pernambuco”, responde Weller. O título do seu filme brinca com essa improvável passagem do diretor de Tubarão e O resgate do soldado Ryan por paisagens sertanejas, porém, fala de um Steven verdadeiro, um dos voluntários que ingressou nos Corpos da Paz e foi um dos milhares de jovens ianques a serviço de uma política externa que prestava bastante atenção aos movimentos da América Latina, em especial ao Brasil, então governado por João Goulart.

“Os Corpos da Paz eram um dos braços dessa ocupação, que se inicia, na verdade, com a revolução cubana de 1959 e com a constatação, por parte dos Estados Unidos, de que o Nordeste do Brasil era uma área com potencial altamente subversivo. Faziam parte de um projeto mais amplo, a Aliança para o Progresso, que derramou muito dinheiro nos países latino-americanos. Em Pernambuco, alguns desses programas eram feitos junto com a Sudene e incluíam ações de eletrificação rural, modernização da indústria da cana, educação e saúde”, detalha Weller. Ele conta que, em 1961, quando Kennedy ainda vivia, Miguel Arraes era governador de Pernambuco e as Ligas Camponesas já incomodavam, o escritório recifense da United States Agency for International Development – USAid (a agência para o desenvolvimento internacional criada por JFK no mesmo ano dos Corpos da Paz) era um dos dois maiores do mundo.

CONTINGENTE DE 30 MIL
O Recife chegou a receber 30 mil norte-americanos, segundo Weller. Um contingente impossível de ser ignorado, no entanto, não muito discutido em sala de aula ou mesmo citado na historiografia oficial do estado – que trata os 24 anos da invasão holandesa no século 17 com pompa e minúcias. É impossível dissociar a atuação desses estrangeiros do contexto da Guerra Fria vivido após a vitória dos aliados em 1945, e a subsequente polarização do mundo entre os capitalistas do free world e os comunistas de Stálin. Os Corpos da Paz aludem tanto ao espírito expansionista norte-americano – com aquela missão de manter a ordem universal que eles atribuíram a si – como ao temor que Kennedy e seus partidários tinham de uma “vermelhização” da América do Sul. “Tenho certeza de que o programa será uma fonte de satisfação para os americanos e uma contribuição para a paz mundial”, apregoava JFK em seu discurso.

O curioso é que os Corpos da Paz passaram a atrair uma juventude encorajada por razões distintas. “O clima dos direitos civis dos anos 1960 propiciava o engajamento dos jovens imbuídos desse espírito libertário, mas, quando se aproxima o fim da década, começam a chegar os rapazes que não queriam servir no Vietnã. O programa passa a ser uma rota de fuga. E o que acontece? Muitos americanos vêm para defender uma ideologia liberal e terminam por se tornar simpáticos às causas dos trabalhadores rurais ou mesmo dos que lutavam contra a ditadura militar. Há casos de alguns que foram presos e torturados pelo DOPS”, aponta Fernando Weller, que já percorreu milhares de quilômetros na pesquisa e nas primeiras filmagens.


Entre as ações desenvolvidas pelo programa de "colaboração", constavam medidas de educação e saúde. Foto: Divulgação

BUSCA DE FONTES
Desde 2012, quando Steven esteve aqui foi agraciado com recursos do Funcultura audiovisual para desenvolvimento de roteiro, o diretor já esteve em Afogados da Ingazeira que, supostamente, acolheu Spielberg, em Petrolina, Orobó, Belo Jardim e Timbaúba, no interior pernambucano, e ainda no Rio de Janeiro e em São Paulo. Fora do país, visitou Washington e Boston. Entrevistou dezenas de personagens, entre veteranos dos Corpos da Paz e brasileiros que auxiliaram o programa ou acolheram os estrangeiros. Teve acesso a um rico material iconográfico nos arquivos norte-americanos. Entretanto, a mesma sorte não lhe sorriu no congênere brasileiro, o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. “O acesso às fontes de informação histórica é incrivelmente difícil. Aqui não existe a cultura da memória. Já nos EUA, tem-se acesso a tudo. A maioria dos filmes feitos pelos Corpos da Paz com propósito de divulgar o programa ou para ser exibida aos voluntários é de domínio público e pode ser vista e usada”, explica Weller.

Em 2013, o documentário ganhou outro aporte financeiro do Funcultura, dessa vez sob a rubrica de produção de longa-metragem. Já no segundo semestre de 2014, quando mais da metade da pesquisa estava concluída, veio a aprovação no edital do Longa Doc do Ministério da Cultura – o único projeto do estado a figurar no rol dos premiados. Com o selo da Jaraguá Produções, em parceria com a Plano 9, o filme vem sendo captado em HD, com fotografia de Nicolas Hallet e montagem de João Maria (“estamos filmando e montando ao mesmo tempo”, adianta o diretor). A previsão é de lançamento em 2016.

Fernando Weller percebe Steven esteve aqui não como um documentário clássico a reconstituir a história do programa inventado por John F. Kennedy, mas como um mosaico fílmico em que a memória dos sujeitos se impõe sobre as instituições. Afinal, nada é novidade na participação norte-americana no golpe que derrubou Jango e instaurou a ditadura militar brasileira, no papel do embaixador Lincoln Gordon no apoio que os EUA deram às Forças Armadas (Gordon é visto em uma das imagens mais marcantes obtidas na pesquisa do filme ao lado do então presidente brasileiro Jango, do primeiro-ministro Tancredo Neves e do sargento Shriver, o primeiro diretor e um dos porta-vozes do programa, na assinatura do convênio para implantação no Brasil, em 1962) e na intensificação não apenas dos Corpos da Paz, mas de todos os programas norte-americanos ramificados no Brasil a partir da colaboração do regime de exceção.

“Os aspectos mais inusitados e importantes são outros. Tenho a impressão de que a presença norte-americana divertia as pessoas, que os acolhiam como se não existisse a Guerra Fria. Ao mesmo tempo, a parte dessa juventude que vinha de lá fugida, exatamente dos dilemas dessa Guerra Fria nos EUA ou para escapar do Vietnã, era vista como se fossem espiões ou os imperialistas que implantariam o plano americano. Mas a presença dos norte-americanos, embora disfarçada, não era inócua. Eles financiaram a criação de sindicatos rurais para competir com as antigas Ligas Camponesas, nos esforços contra o fantasma do comunismo, e assim formaram, indiretamente, os quadros políticos de várias cidades. Como faziam isso? Escolhiam um camponês, davam a ele uma formação e depois o levavam aos Estados Unidos, onde ele aperfeiçoava os estudos que havia recebido. Quando retornava, não demorava a participar da política daquele município. Em vários casos, esse mesmo camponês virou prefeito”, afirma o diretor, para quem o filme pretende mostrar, a partir de exemplos como esse, que “apesar das instituições, existem os sujeitos, que tornam as histórias mais complexas do que qualquer estereótipo”.

O Steven do título não foi localizado. “Desapareceu no mundo”, nas palavras de Fernando Weller. Ele era um dos que integravam o “imenso reservatório de homens e mulheres ansiosos para sacrificar suas energias, seu tempo e seus laboriosos esforços para a causa da paz mundial e do progresso humano”, como esbravejou JFK no seu discurso, dois anos antes de ser assassinado, talvez sem fazer ideia de que seus Corpos da Paz seguiriam a existir após meio século, com atuação em 139 países, algo bem típico para (qualquer que seja) a doutrina do tio Sam, ou que tampouco virassem objeto de investigação cinematográfica que se assemelha a uma prospecção arqueológica no passado recente, e ainda não muito iluminado, do Brasil e da “terra dos altos coqueiros”. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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