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Intimidade e guerrilha em um teatro de portas abertas

Companhias pernambucanas investem em encenações de espetáculos em espaços domésticos, proporcionando uma proximidade maior com o seu público

TEXTO PETHRUS TIBÚRCIO
FOTOS RICARDO MACIEL

01 de Março de 2015

O Teatro de Fronteira realizou, desde abril de 2014, 35 apresentações

O Teatro de Fronteira realizou, desde abril de 2014, 35 apresentações

Foto Ricardo Maciel

Em 2014, o Recife começou a fecundar um movimento de teatro feito com roupa jogada no chão, poeira debaixo dos móveis, que acomoda o público em cadeiras desiguais e acontece no risco de ser interrompido pelo barulho da campainha. No começo do ano, o Janeiro de Grandes Espetáculos, um dos maiores festivais do Recife dedicados às artes cênicas, fez uma mostra especialmente voltada ao teatro realizado dentro de casa. Os principais nomes que compõem essa cena, hoje, são ligados ao Teatro de Fronteira, à Hazzô, à Companhia Maravilhas, ao Teatro de Quinta da Casa.17, à Casa Outrora, à Cena Off e ao Três de Copas.

O uso das salas e quartos no lugar dos espaços mais tradicionais acontece ora por artifício, ora por necessidade. Ou, como disse Márcia La Cruz, uma das integrantes da Companhia Maravilhas e idealizadora do Teatro de Quinta, de uma correlação entre essas duas coisas. “No caso da Companhia Maravilhas, não tem espaço para o ‘ou’. Eu sou uma artista, uma atriz. O teatro é minha ferramenta, meu meio de vida e de onde tiro meu sustento. Então, diante de uma crise, criei um artifício para permanecer atuando. Ou seja, diante de um quadro que poderia me levar à estagnação – à crise –, encontrei o impulso para perpetuar meu movimento: a inovação.”

O Teatro de Quinta da Casa.17, projeto da Companhia Maravilhas, começou em maio de 2014 e, em agosto, passou a ser itinerante. Procurando fundir teatro e literatura, ele tem a seguinte proposta: a cada mês, um novo autor pernambucano, novo elenco e nova residência. A proposta inicial foi desenvolver a autonomia dos artistas, fazendo o convite para realizarem suas criações com os recursos que têm nas mãos. “O Teatro de Quinta sempre foi feito em residência, casa ou apartamento, porque nos interessa investigar tanto a autonomia do artista quanto a possibilidade de contracenar com a memória viva de um espaço. Digo memória viva porque trabalhamos com casas habitadas. As pessoas moram lá onde a Casa.17 se instala. Como interpretar com o público assim tão perto? Como pôr em diálogo a encenação e a memória viva daquela casa, seus móveis, quadros, porta-retratos? Por alguns instantes, esses elementos se tornarão signos de um espetáculo, e fazer isso é uma forma de investigar a autonomia do artista”, diz Márcia La Cruz.

O projeto, que realizou seis espetáculos entre maio e novembro do ano passado, ganhou o prêmio Brasil Criativo e reuniu um público de cerca de 800 pessoas, mesmo com divulgação discreta, que procura respeitar a privacidade dos moradores.


"Diante da crise, criei um artifício para permanecer atuando", Márcia La Cruz

O Teatro de Fronteira fez, desde abril do ano passado, cerca de 35 apresentações, divididas em quatro textos, e estima um público de quase mil pessoas no período. La Cruz ressalta isso como forma de refutar as afirmações de que “o teatro vai mal”, redirecionando esse “vai mal” às políticas públicas de subsídio ao teatro.

Com isso, tanto ela quanto Rodrigo Dourado, coordenador do grupo Teatro de Fronteira, negam qualquer visão de que o teatro em casa é, na verdade, apenas um sintoma de um mau momento. “Ao contrário, ele parte dessa constatação precisamente para combatê-la”, diz. Para Dourado, é justamente por perceber fragilidades nas relações entre teatro e cidade, e entre teatro e público, que surge como reação o convite para essa experiência. “Se o espectador é chamado para esse espaço de intimidade é, precisamente, porque o teatro precisa reorganizar a ‘casa’, reaproximar, convidar o espectador a conhecê-lo de perto no seu caráter mais artesanal para, só então, ser capaz de renegociar sua importância como coisa pública.”

“Acho que o público de teatro do Recife é muito distante, difícil de trazer para a cena. As pessoas ficam intimidadas de entrar no teatro, a grande imprensa não ajuda e o público fica sem saber o que está acontecendo. Apesar disso, a gente tem recebido pessoas que estão muito a fim de uma experiência nova com teatro. Chamá-los para a intimidade é fazer isso ser convidativo, gostoso, é quase um reaprendizado”, pontua Dourado, ressaltando que a experiência com o público não precisa ser necessariamente massiva.

O ESPAÇO
Um dos lugares que a Companhia Maravilhas usou foi a Casa Outrora, do ator e diretor Jorge Clésio, que a utiliza como residência, loja de móveis antigos e, agora, como espaço teatral, produzindo montagens próprias de teatro domiciliar. Lá, as atrizes Luciana Pontual, Hilda Torres e o ator Cleyton Cabral protagonizaram textos do escritor Marcelino Freire. O espetáculo foi uma boa experiência de aproveitamento quase integral do espaço domiciliar, do diálogo possível com a rua e do uso dos cômodos como personagens. A cena de Luciana Pontual, por exemplo, interagia com a vizinhança da Rua da Glória e era construída, portanto, em uma narrativa que exemplifica bem a ideia de horizontalidade entre artista e público que o teatro domiciliar procura. Pendurada em uma janela, Luciana gritava suas falas para os pedestres e entregava a eles parte da responsabilidade daquele solo.


Projeto da Companhia Maravilhas, Teatro de Quinta encena, a cada mês, um autor pernambucano

Quando se fala de “guerrilha” dentro de Teatro em Casa – como um dos motivos, mas não como o único e tampouco como principal –, as lutas de grupos e movimentos sociais que já há algum tempo reclamam do fechamento de espaços voltados a apresentações teatrais no Recife imediatamente são lembrados. O sucateamento e o encarecimento dos aluguéis dificultam o trabalho dos artistas, que contam com poucos e espaçados editais locais de incentivo. Isso levou Rodrigo Dourado a criar o selo Projeto Fora da Lei, que ajuda a localizar os espetáculos que foram feitos sem incentivos. “Os impactos sociais desse descaso político não se restringem aos equipamentos culturais. Eles tocam artistas que ficam sem espaços para exercerem trabalhos ou pesquisas e se tornam invisíveis ao poder público, a ponto de os gestores de cultura local tomarem decisões importantes para vida pública cultural sem nem dialogar com a classe”, completa Márcia La Cruz.

A iniciativa é, na verdade, mais a retomada de uma prática antiga e que já acontece com certa força em outros locais. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Festival Home Theatre – Festival Internacional de Cenas em Casa teve sua primeira edição em março de 2013, espalhando-se por mais de 50 casas por diversos bairros da cidade. O festival já expandiu sua experimentação para outros ambientes de intimidade e convivência, como prédios. Na mostra Meu Prédio Tem História, por exemplo, foram coletadas histórias de oito apartamentos, na Pavuna, que serviram de base para a criação de histórias apresentadas dentro das casas dos moradores.

Essas e outras iniciativas apontam para um processo no qual o morador e o público estão diretamente envolvidos na criação, promovendo um deslocamento (ou compartilhamento) de olhar interessante entre tema e processo e também do lugar do espectador, de quem é retirada parcialmente a passividade, pelo poder exponenciado de interferir nas narrativas. Em Complexo de Cumbuca, por exemplo, o ator Rodrigo Cavalcanti modifica texto e cenas, improvisando histórias e piadas a partir de uma condução compartilhada com o público. De roupas casuais, ele espera os “convidados” na porta do apartamento e oferece “chá ou café?”, quebrando o tradicional afastamento entre ator e público, permitindo, já de cara, o envolvimento das pessoas na continuidade da noite.

OUTRAS ÉPOCAS
Momentos em que a casa virou espaço cênico são bastante conhecidos: no período de repressão pós-1964, por exemplo, era bastante comum os artistas fugirem da censura se reunindo nas próprias casas e fazendo saraus. No filme Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda, por exemplo, o grupo de teatro Vivencial Diversiones é mostrado realizando suas apresentações no espaço doméstico como forma de burlar os censores. José Manoel Sobrinho, diretor e produtor teatral no Sesc, e João Denys, professor na Universidade Federal de Pernambuco, são alguns dos que, em outros momentos, já exercitaram o teatro em casa.


Coletivo de Teatro Domiciliar reúne integrantes de todas as companhias

O esquema de “pague quanto puder” – no qual o preço não é estipulado e o público diz e decide quanto quer ou pode pagar – foi um dos tópicos discutidos em uma série de quatro vídeos gravados pelo coletivo Três de Copas, com os representantes dos grupos do Movimento de Teatro em Casa. Para o Teatro de Quinta, a ação é uma forma de fazer o público repensar a valorização do artista e seu reconhecimento enquanto profissional.

Marcia conta que “já teve gente que deu R$10, R$20 ou R$100” e diz que acha que o valor cobrado deve ser o mesmo do mercado. Dourado comenta que prefere ver o público como “colaborador” e por isso entrega a ele a função de definir o valor do ingresso, pontuando que acredita que foi justamente o poder entregue ao mercado que desvalorizou os artistas. A Cena Off, representada por Daniel Barros, assumiu o esquema do “pague quanto puder” objetivamente: como forma de atrair o público que não tem dinheiro para pagar valores tabelados.

Parte do material de divulgação do movimento, pelo menos a de algumas companhias, é feita pelo grupo Três de Copas, composto por Ricardo Maciel, Flávia Gomes e Kelen Linck. “Ao longo de 2014, nós registramos todos os espetáculos de teatro domiciliar, usando fotografia e vídeo. Acompanhamos o ano todo para dar um suporte aos grupos, mas não somos uma companhia teatral”, conta Ricardo. Foram também os responsáveis pela série de vídeos que coloca o movimento em uma roda de diálogo. Além disso, cederam uma moradia na Rua Princesa Isabel para a realização de um espetáculo do Cena Off, com quem cocriaram o Acontece enquanto você não quer ver. A Hazzô começou a trabalhar com teatro domiciliar em maio de 2014, depois de ver a iniciativa do Teatro de Quinta.

O Teatro de Fronteira anuncia pelo menos três ações de desdobramento para 2015. A primeira delas é a Roda Teatro na Minha Casa, na qual eles se colocam abertos para realizarem seus espetáculos nas casas de quem os convidar. O segundo projeto é o Roda Teatro Experimentos Ocultos, no qual, a cada dois meses, eles vão reunir pessoas inscritas em algum endereço do centro da cidade, e as levarão, sem anunciar, ao destino, a casa de artistas pré-selecionados, que performarão sobre sua vida e arte, dentro de suas casas. Conta, ainda, que agora os grupos passam a se encontrar e pensar ações juntos. “Enquanto coletivo, faremos, em 2015, a 1ª Mostra de Teatro em Casa. Estamos procurando incentivos, mas, se for o caso, faremos a mostra do mesmo jeito que fazemos nossos espetáculos. A gente vem para mostrar que está vivo e que nesta cidade se faz teatro, sim”, completa Rodrigo. 

PETHRUS TIBÚRCIO, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.
RICARDO MACIEL, fotógrafo.

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