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Preguiça: Virtude disfarçada de pecado capital

Enaltecida por filósofos da Grécia Antiga, mas perseguida pela Igreja, por regimes políticos e econômicos, a “aversão ao trabalho” recupera status, por conta de mudanças sociais e culturais

TEXTO Gilson Oliveira

01 de Março de 2012

Ilustração Victor Zalma

Em sua forma original, a fábula A cigarra e a formiga, escrita por Esopo cerca de 500 anos a.C. e recontada por Jean de La Fontaine no século 17, termina com a primeira ouvindo da segunda, após pedir um pouco de comida: “Se você passou o verão cantando, que tal passar o inverno dançando?”. Moral da história: “Os preguiçosos colhem o que merecem”. Mas, numa versão moderna, de autor desconhecido, a narrativa tem desfecho diferente, com a cigarra dizendo à formiga que vai a Paris porque um produtor gostou de sua voz, e perguntando se a outra queria alguma coisa de lá. “Sim”, respondeu a formiga: “Se você encontrar o La Fontaine, manda ele pra ‘PQP’!”. Moral da história: “Aproveite sua vida, saiba dosar trabalho e lazer, pois trabalho em demasia só traz benefício em fábulas do La Fontaine!”.

Uma espécie de terceira moral da história surge, naturalmente, quando se faz a comparação entre os dois textos: a visão que a humanidade (ou pelo menos parte dela) tem hoje da preguiça é diversa da que predominava nas épocas dos dois famosos fabulistas e em outros períodos históricos, inclusive por ter sido classificada por São Tomás de Aquino, no século 13, entre os sete pecados capitais – aqueles que geram muitos outros pecados. Para o santo-filósofo, a preguiça (ou acídia) “era um tédio ou tristeza em relação aos bens interiores e aos bens do espírito”, o que afastava o ser humano de Deus, por não “conhecer e dominar suas paixões, extirpar de si os vícios (...) procurar a felicidade e a operação mais elevada e mais perfeita”.

Um dos filósofos contemporâneos com ideias radicalmente opostas às do pensador católico é Adauto Novaes, que organizou o bem-sucedido ciclo de conferências Elogio à preguiça, realizado no ano passado em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília. Tem mais: com a “conivência” do filósofo francês Francis Wolf (que abordou o tema A apologia grega da preguiça) e de alguns dos mais renomados intelectuais brasileiros, como Marilena Chauí (Sobre o direito à preguiça), Sérgio Paulo Rouanet (Preguiça e ócio na ética iluminista), Olgária Matos (Educação para a preguiça), Maria Rita Kehl (Boêmia e malandragem: a preguiça na cadência do samba) e José Miguel Wisnik (Ócio, labor e obra).

O tom das conferências do ciclo foi dado pelo próprio Novaes na apresentação do evento, iniciada com a reprodução de um texto do pintor russo Kazimir Malevich, intitulado A preguiça como verdade definitiva do homem: “O trabalho deve ser maldito, como ensinam as lendas sobre o paraíso, enquanto a preguiça deve ser o objetivo essencial do homem. Mas foi o inverso que aconteceu. É esta inversão que gostaria de passar a limpo”. A apresentação de Novaes – que está organizando a edição de um livro com o conteúdo de todas as conferências – faz uma síntese histórica dos vários olhares lançados sobre a preguiça, que foi “vilipendiada pelos moralistas, em nome da religião, e o é igualmente pelos economistas, em nome do trabalho”. Enquanto a obra não chega, a íntegra das conferências pode ser assistida no elogioapreguiça.com.br.


A preguiça foi classificada por São Tomás de Aquino, no século 13, como um dos sete pecados capitais. Imagem: Reprodução

NEG-ÓCIOS
Considerada pelos sociólogos uma das épocas em que o ser humano mais tem sido absorvido pelo trabalho, o que o leva a viver mergulhado no estresse e repetir frases como “não tenho tempo”, a atual é também aquela em que o ócio – considerado irmão gêmeo da preguiça, por significar falta de ocupação – desfruta de grande status. Provavelmente, nunca se tornará paradigma de virtude capital, mas o próprio capital (financeiro) já não vê como “pecado”, por exemplo, um costume que durante muito tempo estigmatizou como preguiçoso o povo espanhol: a sesta. Pelo contrário. Muitas são as empresas que criaram confortáveis salas para os funcionários descansarem após a refeição.

Essa mudança na postura empresarial foi tema de uma reportagem publicada pela revista Istoé Dinheiro, com o título O despertar da soneca: “O mundo corporativo acorda para o sono. Tirar o clássico cochilo depois do almoço transforma-se em modo de vida em empresas dos Estados Unidos, Japão, China e Europa. (...) Virou tendência amparada na ciência. Um estudo realizado pela Nasa mostra que 40 minutos de repouso no meio de uma jornada aumenta em 34% a performance das pessoas. (…) No Japão, as empresas o adotaram (o cochilo) como norma e brotam os ‘salões de sesta’. Na China, as pessoas também são obrigadas a dedicar alguns minutos ao descanso total. O xiu-xi (sesta) faz parte da Constituição. Não adotá-lo é sinônimo de penalidades”.

Compondo esse novo olhar estão as profundas transformações ocorridas, nos últimos anos, nos campos da moral e da cultura, e, principalmente, nas esferas da inovação tecnológica, da produção e do trabalho. “A revolução que se avizinha, a grande revolução ocidental depois da Revolução Industrial, é a Revolução do Ócio”, afirmou o filósofo Gerd Bornheim, falecido em 2002. São vividos tempos de “formigas-cigarras”, em que o mundo do espetáculo, do entretenimento e do lazer faz a fortuna e a fama de muitos. Tempos de neg-ócios, neologismo empregado pela também filósofa Suzana Albornoz, no livro Trabalho e utopia na modernidade.


Para a filósofa Marilena Chauí, as ideias de Lafargue sobre a relação entre economia e religião precedem as de Max Weber. Foto: Divulgação

Não sem motivo, um dos principais gurus do mundo de hoje é o sociólogo italiano Domenico de Masi, autor de O ócio criativo, no qual estão presentes frases como: “O homem que trabalha perde um tempo precioso”. A questão de De Masi não é com a labuta em si, mas com o modelo de produção adotado nos EUA e outros países, no qual prevalece a competitividade radical e a idolatria do trabalho, levando o profissional ao estresse e à depressão. Acrescente-se a isso o fato de ser um modelo típico da Era Industrial, com os trabalhadores subordinados às máquinas e usando apenas o corpo – nunca o potencial do cérebro –, o que efetivamente cria estreita relação entre a quantidade de tempo de trabalho e a produtividade.

TRABALHO “CABEÇA”
No mundo atual, conhecido como Era Pós-industrial, o trabalho físico é feito pelas máquinas tradicionais e o mental por outro tipo de máquina, o computador, deixando o ser humano com mais tempo livre e com a tarefa básica de criar, ter ideias, na qual ele é insubstituível, pois nenhum aparelho, por mais inteligente que seja, consegue superá-lo nesse campo. Os historiadores apontam que essa nova era começa depois da Segunda Guerra Mundial – quando se amplia a comunicação entre os povos, ocorre a difusão de novas tecnologias e a base econômica sofre profundas mudanças – e é caracterizada pelo crescimento do setor de serviços (que absorve atualmente cerca de 60% da mão de obra do planeta), pelo incremento da informação e pela transformação do conhecimento e da criatividade em “matérias-primas” fundamentais.

É nesse cenário – em que o uso das mãos e dos pés está sendo cada vez mais substituído pelo uso da cabeça, com predominância de trabalhos intelectuais, científicos e artísticos – que deve reinar o ócio criativo, o qual, segundo De Masi, não é o “não fazer nada” (curtir um dolce far niente, como dizem seus conterrâneos), e, sim, uma mistura de atividades, em que o trabalho se confunde com o aprendizado e com a brincadeira. Como exemplo de atividades que se fundem ao aprendizado, ele cita as de um grupo de cientistas realizando uma experiência inovadora; entre as que parecem brincadeiras, ele inclui as de uma equipe cinematográfica, que se diverte durante a produção de uma comédia.“Eu mesmo, quando dou aula, vivo o ócio criativo”, diz.


O filósofo Adauto Novaes conceitua a preguiça de modo oposto ao de Tomás de Aquino. Foto: Divulgação

Além de analisar e discutir essa realidade, O ócio criativo mostra as descobertas e inovações humanas desde a pré-história até os dias hoje, e traz, entre as curiosidades, o fato de que a Era Pós-industrial – na qual um grande número de profissionais trabalha em casa, dispondo de mais tempo para o lazer, os familiares e os amigos – se assemelha à Era pré-industrial, que tinha a agricultura como base econômica e permitia que, muitas vezes, as pessoas não distinguissem trabalho e brincadeira. Nessa época, o camponês e o artesão viviam no mesmo lugar em que trabalhavam e misturavam os ofícios com as tarefas domésticas e as diversões. Nesse aspecto, tudo era – e é – muito bonito, mas como é que fica a questão do desemprego, que não dá trégua, em razão da própria reorganização do mundo? De Masi não tem resposta pronta para isso, embora tenha estudado o tema e publicado livros como O futuro do trabalho.

UM DIREITO
“Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho.” Assim começa o panfleto O direito à preguiça, de Paul Lafargue, que obteve repercussão mundial logo que foi difundido na França, em 1880, e continua influente, como demonstra uma edição organizada em 2001 por Domenico De Masi, o qual preferiu rebatizá-lo como O direito ao ócio. No Brasil, a primeira edição data de 1980, ou seja, 100 anos depois de sua publicação no jornal socialista L’Égalité.

O longo eclipse sofrido pela obra no país deve-se à repressão desencadeada, ao longo do século 20, contra as ideias socialistas. Além do seu tom demolidor e irônico, a começar pelo título, O direito à preguiça (que, originalmente, teria o mesmo nome atribuído por De Masi, mas acabou assim titulado por conta dos choques de Lafargue com a Igreja, ao aludir aos pecados capitais), encontra na biografia do autor elementos pouco recomendáveis em certos contextos políticos. Entre eles, o fato de Lafargue ter sido fundador da Internacional Operária e do Partido Socialista Francês e secretário e genro do “pai do comunismo”, sobre o qual, em 1890, escreveu um longo e apaixonado relato intitulado Recordações pessoais sobre Karl Marx.


Em Macunaíma, Grande Othelo (D) interpreta personagem que se tornou símbolo da preguiça no país. Foto: Divulgação

Inimigo número um do que chamou de “a religião do trabalho”, Lafargue, como acentuou a filósofa Olgária Matos, em prefácio da edição de 2003 de O direito à preguiça, foi um “pioneiro quando observou que libertar o trabalhador não significa fazer desaparecer o capital ou os capitalistas, mas permitir ao operário livrar-se de sua ‘alma’ ”, na qual foi ideologicamente instalada verdadeira servidão voluntária. Visando livrar os trabalhadores da alienação e despertá-los para sua missão de rebelar-se contra a sociedade, e assim mudá-la, o escritor recorreu aos pensadores da Grécia Clássica, que achavam o trabalho físico degradante, pois impedia as atividades do intelecto, e até a Jesus Cristo, dizendo que ele, em seu Sermão da montanha, insinuou a preguiça: “Contemplai o crescimento dos lírios dos campos; eles não trabalham nem fiam, e não obstante, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho”.

Autor da proposta de jornadas de trabalho de três horas, ainda hoje vista como grande utopia, Lafargue parecia ter mesmo o dom da antecipação. É o que também observa Marilena Chauí, na apresentação da edição de 1999 do mais famoso livro do escritor. De acordo com a filósofa, as ideias dele sobre a relação entre a economia e a religião precedem um clássico do assunto, Ética protestante e espírito do capitalismo, de Max Weber. O que ninguém, nem o próprio Lafargue, pôde antecipar foi a maneira como ele morreu: num pacto de suicídio com sua mulher, Laura Marx, em 1911. A carta-testemunho que deixou revela o motivo do ato: preferiu matar-se antes “que a impiedosa velhice (...) acabe por paralisar as minhas energias (...) fazendo de mim um peso para os outros e para mim mesmo”. Coerente com seus princípios até na hora da morte, o grande advogado da preguiça não queria dar trabalho a ninguém.

MÃE DO PROGRESSO
Em um poema intitulado Filosofia, diz Ascenso Ferreira: “Hora de comer – comer!/ Hora de dormir – dormir!/ Hora de vadiar – vadiar!/ Hora de trabalhar?/ – Pernas pro ar, que ninguém é de ferro!”. O também poeta Mário Quintana não fez por menos e, além de criar um aforismo muito conhecido – “A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda” –, ainda escreveu o livro Da preguiça como método de trabalho. Mesmo que sejam apenas preguiçosos “teóricos”, levando uma vida pessoal e profissional intensamente ativa, há diversos autores que teceram e tecem loas ao “não fazer nada”. Por verem nisso uma forma de fazer muitas coisas. Bons exemplos? O filósofo Bertrand Russel, autor de Elogio ao ócio, e o Prêmio Nobel de Literatura, Albert Camus: “São os ociosos que transformam o mundo, porque os outros não têm tempo algum”.


O socialista francês Paul Lafargue chegou a propor jornada de trabalho de três horas diárias. Imagem: Reprodução

Essa visão fica mais compreensível ao considerar-se que a palavra trabalho, em sua origem etimológica, indica uma atividade típica dos escravos – algo que faz sofrer, tira a liberdade e impede o desenvolvimento do espírito. Caso da francesa travail e da espanhola trabajo, originárias da latina tripalium, denominação de um instrumento de tortura formado por três (tri) paus (palus). O certo é que muitos artistas também mexeram seus próprios pauzinhos e defenderam aquela que sempre foi o maior contraponto ao trabalho –“Quem cedo madruga, fica o dia inteiro com sono”, atestou o poeta romano Ovídio, nascido em 43 a.C., parodiando, segundo registros, uma frase que séculos depois teria no Brasil a seguinte forma: “Deus ajuda a quem cedo madruga”.

Relançado em 2011 pela Companhia das Letras, um livro moderno que louva a preguiça, no que ela tem de inimiga da pressa, é A lentidão, do tcheco Milan Kundera, que pergunta logo no começo: “Por que o prazer da lentidão desapareceu? Ah, para onde foram aqueles que antigamente gostavam de flanar? Onde estão eles, aqueles heróis preguiçosos das canções populares, aqueles vagabundos que vagavam de moinho em moinho e dormiam sob as estrelas?”. Profusa no restante do mundo, a produção artística que tematiza a preguiça é bastante expressiva no Brasil e está presente, inclusive, nos títulos de várias obras. No teatro, um exemplo é Farsa da boa preguiça, de Ariano Suassuna; no campo jornalístico, O livro da preguiça, de Gillian Borges; na área musical, ABC do preguiçoso, de Xangai; no âmbito do romance, um dos livros mais conhecidos não traz a palavra preguiça na capa, mas, mesmo assim, tornou-se um dos seus grandes símbolos: Macunaíma, de Mário de Andrade. Basta dizer que o herói passou seis anos para aprender a falar e a primeira frase que disse foi: “Ai... que preguiça...”

Mas, num país em que a cultura popular é forte até como expressão econômica, não se podem esquecer certas frases, encontráveis em porta de banheiro público, a exemplo de: “A preguiça é a mãe de todos os vícios e, como mãe, deve ser respeitada”. 

GILSON DE OLIVEIRA, jornalista.

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