(Mário Quintana, Da preguiça como método de trabalho)
Domingos Caldas Barbosa, em suas modinhas, escrevia assim sobre aquilo que Sérgio Buarque de Holanda chamou de “suavidade dengosa e açucarada”: “Se não tens mais quem te sirva/ O teu moleque sou eu,/ Chegadinho do Brasil/ Aqui’stá que todo é teu” e “Ah nhanhá, venha escutar/ Amor puro e verdadeiro,/ Com preguiçosa doçura/ Que é Amor de Brasileiro”. O que aparece nos trechos das modinhas de Caldas Barbosa, da segunda metade do século 18, é o anúncio da composição de um traço ingênuo da origem brasileira, a partir da vida colonial miscigenada; uma espécie de afetividade radical porque incorporada e evidenciada como um tempo propositivo da experiência de um próprio. Essa malemolência amorosa se alimenta, diz Mário Faustino, da poesia popular e de um vocabulário que já se pode chamar de “muito brasileiro”, mesmo que ainda misturado e permeado de algumas alusões clássicas. Ela é um traço que sempre foi tido como ingênuo, mas que agora se instala como um elemento às avessas de nossa composição em meio à alegria desesperada do tempo presente que é, também, um vetor imposto por uma afetividade desincorporada e praticamente desfeita.
A circunstância quase interrogativa lançada logo no começo de Raízes do Brasil – “somos ainda hoje uns desterrados em nossa própria terra” –, por exemplo, tem desdobramentos em torno dessa questão porque, para Sérgio Buarque, isso advém do fato de termos trazido de países muito distantes as nossas formas de convívio, ideias e instituições e de lançá-las em um ambiente hostil. Esse ambiente tem a ver com o que ele argumenta ao dizer que “todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”. Este um outro, o nosso próprio – que Caldas Barbosa nomeia como “chegadinho do Brasil” e “amor de brasileiro”, clima e paisagem diferentes – tem a ver também com outra demanda para a atividade produtora, que para nós seria muito “menos valiosa que a contemplação e o amor”; é o ócio que importa muito mais que o negócio, lembra Sérgio Buarque. Ou seja, num ajuste de contas, um certo empenho para a preguiça como nosso próprio ou praticamente como sugestão de um pathos; não como uma oposição à ideia de trabalho, mas, sim – para nós –, como uma compósita à outra ideia de trabalho. Quase a construção de um éthos tão particular e singular, que nos remeteria diretamente ao traço de nossa hospitalidade radical também desesperada.
Os desdobramentos disso estão, principalmente, nos trabalhos de Oswald e Mário de Andrade. Oswald, numa articulação inteligente e bárbara, que vem de seu pensamento para a cultura brasileira através de seus poemas e textos, anota no seu Manifesto da poesia pau-brasil que somos “bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos”. Podemos pensar que ele elabora para a origem da cultura brasileira um espaço constituído entre a floresta e a escola – “O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica” – que é habitado por uma possibilidade imaginativa que estaria, por sua vez, vinculada a um imaginário rural que implode a formação de nossas cartografias urbanas tão absurdamente orgânicas e descontroladas. Essa seria, para Oswald, a “Festa da raça”, expressão que dá título a um poema de sua série chamada História do Brasil: “Hu certo animal se acha também nestas partes/ A que chama Preguiça/ Tem hua guedelha grande no toutiço/ E se move como passos tam vagarosos/ Que ainda que ande quinze dias aturado/ Não vencerá a distância de hu tiro de pedra”. No poema, não estamos apenas diante da descrição de um bicho de nossa floresta, mas, numa bipolaridade, estamos diante de um caráter do nosso horizonte formativo. É o que ele chama de uma “perspectiva de outra ordem”, que inclui a sábia preguiça solar, a reza, a energia silenciosa e a hospitalidade. Daí, a utopia antropofágica, a tarefa da alegria e a máxima: “Nunca fomos catequizados”.
HERÓI NACIONAL
O projeto de Mário de Andrade, grosso modo, tem a ver com a tentativa de entendimento do que seria ou pode vir a ser esse caráter do qual fala Oswald. Quando publica Macunaíma, em 1928, estabelece, via o barroco de Marini, um scherzo, que vem do verbo italiano scherzare (brincar, jogar), um jogo e um livro de pura brincadeira: “malicio nele o fenômeno” e “a falta de caráter do herói nacional”. A expressão “Ai... que preguiça...”, que permeia toda a narrativa pela boca indolente do personagem Macunaíma, imprime aquilo que Mário pensava como um “sintoma da cultura nacional”. É possível ler isso em várias passagens desse seu livro, como quando escreve: “Principiou um calorão que tomou a jangada, se alastrou nas águas e dourou a face limpa do ar. Macunaíma deitado na jangada lagarteava numa quebreira azul. E o silêncio alargando tudo...
– Ai... que preguiça... O herói suspirou. Se ouvia o murmurejo da onda, só. Veio um enfaro feliz subindo pelo corpo de Macunaíma, era bom...”.
Mas já num texto de 1918, intitulado A divina preguiça (em que pese o adjetivo divino que desfaz o impedimento sugerido por Paulo Prado se o Brasil seria, na visão do português, um degredo ou um purgatório), Mário postula acerca do que chamou “uma visão nova do mundo” em torno dessa questão, ao dizer que “via a Terra, modorrada de calor, redondinha, vestida de um imenso gramado esmeraldino sobre o qual a humanidade toda se deitara, chapéu nos olhos, mãos nas cavas dos coletes, pausas pantagruélicas culminando no espaço, a dormir, a dormir serenamente, num gigantesco, universal convescote”. O que se nota é que, para Mário, essa indolência é a armadilha de nossa bipolaridade. Em algumas de suas cartas, esse “sintoma” também aparece com veemência; numa delas, para o seu Tio Pio, ele fala do quanto sua concepção de vida é marcada por uma “amorosa contemplação e paciência” e que por isso não seria alegre nem triste, mas, sim, “maravilhosamente sábia”. O que, de certo modo, retoma a sugestão das modinhas de Caldas Barbosa e a preguiça solar e sábia de Oswald de Andrade.
Mas um personagem que sempre me chamou muito a atenção em torno dessa ideia da preguiça como a constituição de um pathos e também de um éthos de nossa origem é Riobaldo, o narrador de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Interessante notar que, como se trata muito mais de uma narrativa de aventuras jagunças no sertão de Minas Gerais, a quietude malemolente de Riobaldo invariavelmente passa despercebida. O apontamento é que, desde o começo do romance,“– Nonada.”, ele já se encontra terno e indolente: “Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede”, diz calmo ao interlocutor enquanto fabula a sua história entre amorosa e pactuária. Não só deitado numa rede, mas também num “abrenúncio” da existência, da convivência com o diabo, das suas melancolias e da frase indômita que o persegue: “Viver é negócio muito perigoso...”. Ora, dentro da frase que Riobaldo repete num sem-número de variantes, há a palavra negócio que identifica a vida moderna como ambivalente, se pensada numa trajetória contingente, acidental, inoperante e, por que não, no caso brasileiro, naturalmente dedicada ao ócio ou radicalmente à preguiça como espaço de imaginação.
MANOEL RICARDO DE LIMA, poeta e professor de Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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