Cobertura

Em caso de fim de mundo

Optando pelo afeto como parte de uma poética que transita entre o real e o mágico, o cult e o comercial, Juliana Rojas veio ao Janela Internacional de Cinema para exibir dois novos filmes

TEXTO Cesar Castanha

08 de Novembro de 2017

Em 'As boas maneiras', Clara (Isabél Zuaa) é contratada por Ana (Marjorie Estiano) para trabalhar como empregada doméstica

Em 'As boas maneiras', Clara (Isabél Zuaa) é contratada por Ana (Marjorie Estiano) para trabalhar como empregada doméstica

Foto Divulgação

Em 2014, quando Sinfonia da necrópole foi exibido no VII Janela Internacional de Cinema do Recife, o ator Eduardo Gomes, protagonista do filme, apresentou a sessão com uma fala que, segundo ele, era como a diretora Juliana Rojas costumava abrir as exibições daquele que era o seu primeiro longa-metragem. “Este filme”, disse o ator, “tem como inspiração as peças de Brecht, os musicais da Disney e alguns maravilhosos filmes brasileiros dos anos 1980 como Lua de cristal”. Na época, essa frase me marcou como um gesto até subversivo de afiliação afetiva a um cinema comercial geralmente menosprezado, e profundamente vinculado à indústria televisiva.

O mais interessante daquele momento, no entanto, talvez tenha sido se deparar com o próprio Sinfonia da necrópole e descobrir um filme de fato comprometido com cada uma das suas referências. Exibido originalmente, com um outro corte, na TV Cultura, o musical se constrói a partir desses gostos individuais tão distintos e tira da combinação algo novo, um produto da nostalgia de uma cineasta ainda muito jovem; uma nostalgia autoconsciente, mas engajada a seus objetos de afeto.

Este ano, Juliana Rojas veio, ela mesma, à décima edição do festival para apresentar seus dois novos trabalhos. O primeiro, o curta-metragem A passagem do cometa; o segundo, o longa As boas maneiras, que dirigiu com Marco Dutra, retomando a parceria do longa Trabalhar cansa (2009). Ainda persistem, nesses filmes, todos os interesses mencionados por Eduardo Gomes em 2014, mas talvez já não faça sentido listá-los antes de cada sessão. A amálgama da formação estética de Juliana Rojas está sofisticada a um ponto que já não pode ser tratada como um conjunto de referências, mas como afetos cinematográficos que ela procura levar adiante.

Há, em seus filmes, uma falta lúdica de sentido que nos remete à sensação de assistir àqueles programas infantis da TV Cultura nos anos 1990, como Ra-tim-bum, Castelo ra-tim-bum e Mundo da lua. Nas realizações da cineasta, no entanto, o absurdo mágico se vincula também a uma estética realista, ou talvez quase realista, nunca aderindo totalmente nem à realidade nem à fantasia. Embora os filmes solo de Marco Dutra também habitem entre esses caminhos, partem de um realismo mais duro, mesmo que o gênero surja a partir dessa “concretude” do real. Em Quando eu era vivo, por exemplo, a monotonia da volta pra casa do pai faz com que o filho se perca em um delírio de luto pela perda da mãe, do irmão, da esposa e do filho. A fantasia, no filme, leva, então, o personagem a buscar uma reaproximação com seu pai, mas isso não sacrifica a sua associação a uma estética realista. Pelo contrário, a alucinação se apoia na dolorosa monotonia do cotidiano, e o real precisa do devaneio para se reconfigurar.

O REAL EM ROJAS
No curta A passagem do cometa e no longa As boas maneiras, o fantástico está presente desde a materialidade da imagem, com cores fortes, limpas, que perturbam a posição de realismo social do primeiro filme e faz do segundo uma mistura muito curiosa, e bem-vinda, de Maurício de Souza com Jacques Tourneur.

O curta-metragem se passa em 1986, na última passagem do cometa Halley. Essa ambientação histórica se dá em dois espaços fechados e bastante esvaziados em termos de cenografia: uma sala de espera e um consultório de uma clínica clandestina de aborto. Os anos 1980 se revelam quase que exclusivamente no figurino das personagens, nessas cores claras que poderiam remeter até a uma caricatura da época. Mas caricato, em termos uma representação histórica, é o que A passagem do cometa não é. É no gesto final do filme, o de olhar para o cometa, que a força dessa ambientação vem à tona. “Como as coisas serão daqui a 70 anos?”, pergunta uma das personagens. É raro que uma crítica tão direta ao presente se vincule a uma total recusa da nostalgia, como faz este filme.

Aqui, o curta foi exibido como parte da primeira sessão da mostra competitiva de curtas nacionais, intitulada Em caso de fim de mundo, mas me parece que foi o único filme dessa leva a acessar a dor de se estar constantemente diante do fim, inerente ao “ser o outro” no mundo (todos os curtas da sessão tratavam de personagens marginalizados de alguma maneira: mulheres, filhos de desaparecidos políticos, evangélicos, pessoas negras e LGBTs).

As boas maneiras também sustenta uma sensação de apocalipse, mas no sentido de buscar um afeto diante do fim. Muito tem se falado sobre a inadequação do riso (muito presente na sessão de domingo, 5/11) em um filme tão implacavelmente triste. Clara (Isabél Zuaa) é contratada por Ana (Marjorie Estiano) para trabalhar como empregada doméstica e futuramente babá do filho que ela espera. A aproximação entre Clara e Ana é a construção de uma esperança diante de uma solidão macabra, de um estar junto que pode ser o bastante para resistir ao fardo do desprezo.

A escolha pelo afeto, mesmo quando confrontada com a crueldade da existência e com a certeza de que esse afeto pouco pode evitar o fim do mundo, é uma tomada de posição dos dois filmes. Um posicionamento realmente difícil, incômodo, e por isso talvez seja mais confortável lê-lo a partir de sua comicidade. Rojas e Dutra, afinal, buscam os rastros mais dolorosos de uma mitologia e estética infantis. A passagem do cometa e, principalmente, As boas maneiras entendem, acredito, que a dor do fim do mundo é conhecida por qualquer criança e que cada um de nossos afetos mais individuais, nossos refúgios estéticos, são um modo particular de reconhecê-la, de lidar com ela e, sem escolha, levá-la adiante.

CESAR CASTANHA é jornalista, crítico de cinema e autor do blog Milos Morpha.

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