Ao mesmo tempo, não quer dizer que, ao tratar essa variedade, os filmes sejam considerados, entre si, incomunicáveis. Tem sido, sem dúvida, instigante caminhar de uma obra a outra, carregando as imagens deixadas por elas, percebendo algumas permanências e contradições; aproximar-se do cinema com outros cinemas. Esse passeio traz algo para a experiência com o festival que vai bem além do fetiche de acúmulo cinéfilo; ele nos coloca em uma rota, em que olhar para trás, para o que já foi visto, é imprescindível.
Dito isso, começar o dia, como o de ontem, com o clássico Tudo que o céu permite (1955), a obra-prima de Douglas Sirk, coloca-nos diante de imagens das quais pode ser mais difícil tomar distância no decorrer do dia. A cor em Sirk, a busca quase desesperada por beleza em seus planos, por beleza numa Hollywood em crise, num subúrbio mesquinho de classe média, tem no filme o seu próprio apelo por um outro modo de vida, longe da frivolidade das festas suburbanas — jantares e coquetéis — em favor de outra frivolidade, da cor, do branco da neve, dos pinheiros altos no campo e dos animais à janela.
Fora do filme, a busca de Sirk desestabiliza a ideia do cinema e da política do cinema com um gesto de simples exposição de uma realidade. Carregando a materialidade tão dura do filme, das cores meticulosamente distribuídas na imagem, do som cuidadosamente produzido, é mais difícil seguir adiante para outras sessões sem ter o cinema como uma agressiva e abrangente mise-en-scène. É com essa imagem que entro na sessão de Baronesa, que abriu a Mostra Competitiva do festival neste domingo (5/11).
O longa, dirigido por Juliana Antunes, foi premiado como melhor filme na Mostra de Tiradentes este ano e tem sido recebido com alguma controvérsia. Baronesa se aproxima de três personagens adultas, duas mulheres e um homem, que habitam Juliana, no caso um bairro da periferia de Belo Horizonte. Quando uma guerra do tráfico se anuncia na região, uma dessas mulheres, que trabalha como traficante, decide ir para Baronesa, morro do município de Santa Luzia, e começa a organizar uma mudança.
As críticas ao filme apontam para uma estereotipização do personagem negro, pela identificação com o tráfico e, entendo, também por uma maneira de filmar os personagens que se apresentam com mais força como filme, como um olhar construído em cena, olhar do outro para a realidade dos personagens, agressivo talvez por se aproximar daquele que filma com todo o aparato de uma linguagem cinematográfica, com um entendimento de cena, produção e distribuição. Diferente de A vizinhança do tigre (de Affonso Uchoa, 2014) — que tem sido um ponto de comparação constante para Baronesa —, há menos espaço para uma mise-en-scène conduzida pelos próprios personagens. Os quadros parecem cuidadosamente pré-concebidos, com planos mais fechados e cenas que se organizam de um modo um pouco mais narrativo.
Lógico, é preciso reconhecer que o filme e os personagens se referem a algo além de si próprio, a um conjunto de relações que se dá em algum lugar que temos como “realidade”. Mas o filme, em si, também é um objeto desse real, e não apenas sua representação. Não se trata de defender o filme pelo filme como algo alheio às circunstâncias da sociedade. Pelo contrário: se o filme está inserido dentro da realidade, questões de classe, raça e gênero o perpassam tanto quanto perpassam qualquer outro objeto dessa realidade, da macropolítica às relações familiares.
Em um momento de Baronesa, a mise-en-scéne tão cuidadosa de Juliana Antunes parece se desfazer com o barulho de tiros, quando a câmera cai e os personagens correm por abrigo. É um equívoco. Tenha sido aquele momento antecipado ou não por Antunes ou pela produção do filme, é ainda parte da materialidade do filme e não um simples reflexo do que acontece naquele espaço “real”. É possível que naquele momento as duas materialidades, a do filme de Juliana Antunes e a da vida no morro de Juliana, tenham, por um momento, se encontrado. E é também possível que não, que Baronesa, distribuído e exibido para uma plateia majoritariamente branca e de classe média no Cinema do Museu, nunca apreenda nada dessa outra materialidade.
A construção solitária de um novo espaço e uma nova possibilidade de habitação, ao final do filme, é uma imagem específica de Baronesa, de uma esperança talvez ausente de outros espaços. É a esperança do plano final de Tudo que o céu permite, que nos atinge pelo olhar contemplativo, doloroso dos personagens. É, de fato, uma esperança visual, e não deve ser por isso uma esperança menos real.
CESAR CASTANHA é jornalista, crítico de cinema e autor do blog Milos Morpha.